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A Praia

«I try to be as progressive as I can possibly be, as long as I don't have to try too hard.» (Lou Reed)

teguivel@gmail.com

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terça-feira, setembro 30, 2003

A página, essa relíquia do passado
Estou a corrigir um trabalho de um aluno e de repente surge-me a seguinte frase: "nas próximas páginas..." Paro: páginas? E só aí me dou conta de que este texto é um trabalho de um aluno, não um email nem um blog. Se ele não chamasse a atenção, na minha cabeça eu continuava a ler posts.
 

segunda-feira, setembro 29, 2003

Avaliações
Na secção de desporto do Público, vale a pena ler Bruno Prata (apesar de portista) e as crónicas de Nuno Ribeiro, às terças, sobre a Liga Espanhola. Mas também nunca falho os "positivo" e "negativo" de cada jogo, que confiro com as notas atribuídas aos jogadores. Hoje, por exemplo, é destacada a prestação do guarda-redes do Nacional da Madeira no jogo contra o Benfica:

"Nuno Carrapato: O guarda-redes do Nacional teve ontem uma exibição de luxo. Defendeu tudo o que era defensável e até o que parecia não ser. Foi o melhor jogador em campo". Nota: 7 (em 10).

Estou a pensar seguir este método nas avaliações dos meus alunos:
"Fulano: o seu trabalho é notável. Discute com rigor e inteligência as questões abertas pela bibliografia, e ainda abre pistas para pensar novas questões. É o melhor trabalho de todos." E no fim da torrente hiperbólica de elogios, dou-lhes 14 (em 20).

Vão adorar.
 
Chatear o Lomba, no regresso
(1) O Lomba regressou, e sugere a bíblia em lugar da acupunctura (escreve-se assim). Já fiz umas sessões da segunda, nunca da primeira. Custaram-me os olhos da cara e bastou-me chegar à praia - desta vez, à propriamente dita - no hemisfério sul para perceber de que é que eu andava realmente à procura por trás das agulhas.

(2) A relativa atenção dada pela imprensa à morte de Edward Said serve de pretexto para Lomba denunciar a esquerda (ou a ignorância, ou as duas que são gémeas) que controla os jornais, uma vez que, quando morreram, Robert Nozick ou Bernard Williams não mereceram a mesma atenção. Não é preciso pensar muito para perceber que Said foi notícia por ser um intelectual politicamente muito activo, ainda para mais numa causa muito noticiada, a da Palestina. O Lomba pode estar descansado que quando Huntington ou Fukuyama morrerem - and, yes, the day shall come - a imprensa, mesmo ignorante e de esquerda, lhes vai dar imensa atenção.

(3) Entre a «partida» e o «regresso» do Pedro Lomba conheci-o pessoalmente. Nessa ocasião - que foi, de resto, mais que trivialmente agradável - fiquei a saber que ele ia voltar ao blog e manifestei-lhe várias vezes como a notícia me deixava contente. (E ia deixar também várias pessoas que eu conheço). E, apesar das bocas, deixou - muito, mesmo.
 

domingo, setembro 28, 2003

Branco mais branco


Li o Pacheco falando da «marcha branca» de Lisboa indirectamente, a partir da experiência que viveu em Bruxelas. Nada que ver:
"Quase que não havia cartazes e os poucos que havia tinham sido feitos por aqueles que os traziam. Raramente tinham o tamanho de um vulgar cartaz de anúncio de um concerto de rock e estavam perdidos no meio de manifestantes de mãos nuas, sem autocolantes, sem símbolos, sem nada. Não havia palavras de ordem, ninguém gritava nada - o silêncio «contra o silêncio»."

Li as notícias dos jornais: texto e mais texto.
Li o Barnabé, um comentário curto. Estava lá tudo, os factos e o significado.
 

sábado, setembro 27, 2003

Downtown


When you're alone and life is making you lonely, you can always go
Downtown.
When you've got worries, all the noise and the hurry seems to help, I know.
Downtown.
Just listen to the music of the traffic in the city
Linger on the sidewalk where the neon signs are pretty.
How can you lose?

The lights are much brighter there, you can forget all your troubles, forget all your cares.
So go
Downtown
things will be great when you're
Downtown.
No finer place, for sure
Downtown
Everything's waiting for you.

Don't hang around and let your problems surround you, there are movie shows
Downtown.
Maybe you know some little places to go to where they never close.
Downtown
Just listen to the rhythm of a gentle Bossa Nova.
You'll be dancing with 'em too before the night is over.
Happy again.

The lights are much brighter there, you can forget all your troubles, forget all your cares.
So go
Downtown
where all the lights are bright
Downtown
waiting for you tonight
Downtown.
Ev'rything's waiting for you
 
Se pudesse, retirava a frase
Arrependi-me depressa de ter escrito a frase "o elemento mais perigoso do ponto de vista da política internacional contemporânea é a administração Bush". Arrependi-me tão depressa que foi antes de mudar de ideias. Eu explico:
Citando-a assim, fragmentariamente, como faz o maradona - embora tenha o cuidado de recomendar que se vá ler o que eu escrevo antes dessa frase -, essa ideia sugere, não uma análise sobre a política internacional no seu conjunto, mas uma apreciação de carácter moral sobre Bush (ou os EUA), por contraposição a Saddam Hussein ou Bin Laden. Se formularmos a questão como "quem é pior", não teremos dúvidas em responder Saddam; mas, se a formularmos como "quem é mais perigoso do ponto de vista da ordem política internacional", ainda faz sentido hoje ter dúvidas sobre que Saddam era quase inofensivo comparado com Bush?
A questão de saber se é melhor ou pior interessa aos partidários da administração Bush; a questão relativa à política internacional - que, desculpem lá, é mais séria - interessa-me a mim.
Já sou crescido o suficiente para dever ter medido as palavras: sei que a maior parte dos títulos sobrevive aos textos (de cujos conteúdos já ninguém se lembra) e muitas frases sobrevivem e distorcem os contextos. O contexto, no caso, era enfatizar que, do ponto de vista dos três aspectos determinantes para a evolução da política internacional enunciados por Waltz - nenhum deles o terrorismo -, o papel da administração Bush é muito mais relevante e por isso mais pernicioso do que o da própria al-Qaeda.
Bastaria ter citado as minhas duas frases para se ter percebido: "A al-Qaeda é horrível, nesse sentido não é trivial - mas não é o fundamental sobre a política internacional contemporânea. (...) É por isso que tem sentido dizer que o elemento mais perigoso do ponto de vista da política internacional contemporânea é a administração Bush."
Como a comparação do "mais" e do "menos" acaba por obscurecer em vez de esclarecer o que procuro discutir, se fosse a tempo retirava a frase.
 
O Brasil em Campo


Ando há semanas para falar no livro de Alex Bellos Futebol - o Brasil em Campo (existe tanto em edição inglesa como em impecável tradução brasileira), que adorei. É um livro extraordinariamente bem escrito e é um retrato notável do Brasil nos seus mais diversos aspectos - desigualdade social, religião, política, etc. - feito a partir de histórias relacionadas com o futebol. Bellos, jornalista do Guardian que nos últimos anos tem trabalhado como correspondente no Rio de Janeiro, é visivelmente um apaixonado pelo Brasil que investiga de forma séria e brilhante o objecto da sua paixão. Duvido que no mundo académico da Sociologia se tenha nos últimos anos produzido algum retrato do Brasil tão bem feito como este.
Agora, se o livro é excelente, espreitem o site!
(acho que é o primeiro ponto de exclamação que escrevo no blog. Justifica-se).
 
Durão


Fazendo jus ao seu nome, o primeiro-ministro de Portugal diz ao Público de hoje que Sticky Fingers foi o álbum dos Rolling Stones que "mais o marcou".
 
Coming out

(Processo «este gajo não é de esquerda». Evidence #1)
 

quinta-feira, setembro 25, 2003

Big Brothel
Adorei o primeiro Big Brother e diverti-me muito com o Big Brother dos Famosos (a noite em que a Cinha Jardim, o Cadete e a Julie Sargent abandonaram a casa foi das mais divertidas de 2001). Desta vez, só acompanho a série através dos posts do Filipe Nunes, mas ocorreu-me que talvez estivesse na altura de uma mudança de nome.
 
O senso comum sobre o 11.9 (3)
Acho que a esquerda que em 11.9 discutiu o Chile caíu numa esparrela. Compreendo perfeitamente que há razões para lembrar o Chile mais do que muitos outros regimes autoritários do século XX, sobretudo razões afectivas e de memória. O golpe de Pinochet teve um lugar especial na formação política de uma geração, desde logo pelo papel desempenhado nessa história pela mais importante democracia do mundo e também certamente pela proximidade temporal com a revolução portuguesa.
No entanto, colocar esse tema na agenda da discussão foi uma armadilha consciente ou inconscientemente - quem me conhece sabe que eu não dou demasiado valor a esta distinção - colocada pelo Pedro Mexia. Do arsenal retórico de João Miguel Tavares, Pedro Lomba, Pedro Mexia, Luciano Amaral e outros faz parte a ideia de que 11.9.2001 abriu um fosso entre os que percebiam o essencial, que é a condenação daqueles ataques, e aqueles que não percebiam o essencial, e por isso os relativizavam. (Para ilustrar a distinção essencial convocam-se umas declarações da Diana Andringa que, se não me engano, a própria teve na altura o cuidado de desmentir como tendo sido desenquadradas e por isso deturpadas). Foi isso, de acordo com esta retórica, que depois do 11.9 aproximou da direita os que até aí nem sequer eram da direita.
Pondo-se a discutir o Chile, a esquerda fez exactamente o que eles queriam, que foi não parecer suficientemente chocada com os atentados de Nova Iorque e Washington.
Ora, a discussão essencial não é sobre a gravidade do crime, que pessoas sensatas não porão em causa. A discussão essencial - que realmente questiona o apoio que os supracitados autores dão à administração Bush - é sobre o significado que esses atentados terroristas têm para a política internacional contemporânea. A al-Qaeda é horrível, nesse sentido não é trivial - mas não é o fundamental sobre a política internacional contemporânea. É por isso que há outras coisas para discutir depois de 11.9.2001 que não a al-Qaeda e o Pinochet. É por isso que tem sentido dizer que o elemento mais perigoso do ponto de vista da política internacional contemporânea é a administração Bush.
 
O senso comum sobre o 11.9 (2)
O «mundo antigo» acabou, nessa manhã soalheira e tranquila, quando dois aviões se precipitaram sobre duas torres da mais cosmopolita cidade que a Humanidade jamais conheceu (...) porque a potência (...) dominante (...) percebeu que (...) havia uma nova guerra a travar, em nome das mesmas referências civilizacionais e do melhor sistema de governo até hoje inventado: a democracia liberal.

Há dias em que nada nos encanta como a prosa lírica de um José Manuel Fernandes. Pode argumentar-se que o autor é insistente e rebarbativo, pouco sofisticado, dogmático até. Eu não recomendo a sua leitura todos os dias. Mas apenas de vez em quando, se possível quando as circunstâncias lhe convocam um tom mais épico, penso que os seus editoriais merecem os nossos minutos de contemplação.
 
O senso comum sobre o 11.9
E se o terrorismo não fosse "a mais importante ameaça que a humanidade defronta no plano político e internacional dos nossos dias"? É precisamente isto que sustenta o texto de Kenneth Waltz que coloquei aqui no dia 11 de Setembro, e é precisamente esta ideia que esteve e continua a estar arredada do debate público sobre o 11 de Setembro e as suas consequências para a ordem política internacional. O que faz a singularidade desse texto de Waltz são três coisas: 1. o facto de desafiar o senso comum; 2. o facto de esse desafio provir do autor que - não sendo, longe disso, incontestado - é reconhecido como o mais importante no estudo académico das relações internacionais; 3. o facto de o seu argumento ser exposto de forma extraordinariamente clara.
Vale a pena notar que o texto de Joseph Nye que o Público, naturalmente, publicou nesse dia, sendo vastamente crítico da administração Bush, não põe, nem de longe nem de perto, tão radicalmente em causa os pressupostos em que a sua política se baseia. Joseph Nye representa, na disciplina académica das Relações Internacionais contemporâneas, uma corrente rival, geralmente vista como mais "de esquerda" que a de Waltz. Nye ocupou funções de responsabilidade na administração Clinton e é ferozmente crítico de Bush porque acha que a luta contra o terrorismo só pode ser combatida de forma multilateral - e não porque sustente que o terrorismo não é a questão essencial da política internacional contemporânea. (O texto de Nye veste-se, além disso, com uma retórica patriótica que Waltz dispensa, provavelmente porque Nye é hoje muito mais um político do que um académico).
As razões de Waltz para questionar o senso comum são essencialmente duas. Em primeiro lugar, a cooperação entre Estados e grupos terroristas com uma lógica apocalíptica do tipo da que se manifestou em 11.9.2001 é muito improvável. De acordo com Waltz, a preocupação principal de qualquer dirigente de um Estado é manter-se no poder, o que o constrange dentro de comportamentos relativamente previsíveis e racionais. Em segundo lugar, uma organização terrorista do tipo da Al-Qaeda, ainda que possa realizar acções muito chocantes e incomodativas, não será, sem o apoio de um Estado (que Waltz, como vimos, exclui), capaz de pôr em causa um Estado poderoso como os EUA nem o sistema internacional no seu conjunto.
Seguindo esta lógica, para Waltz o essencial da política internacional - do que decide da guerra e da paz, da morte e da miséria - continua a derivar de três elementos que são muito anteriores ao 11 de Setembro: o equilíbrio de poder entre as grandes potências (hoje em dia largamente desequilibrado); a existência e disseminação das armas nucleares; a persistência e multiplicação de crises. E é em função da evolução destes três parâmetros, diz Waltz, que a política internacional se está a tornar mais perigosa e a linha de acção da administração Bush (procurando aumentar o desnível de poder entre os EUA e as outras potências; gerando condições objectivas para a proliferação das armas nucleares; contribuindo para o agravamento e alastramento de crises) é condenável.
É obviamente legítimo questionar os pressupostos em que assenta o raciocínio de Waltz. Deve, no entanto, reconhecer-se que ele apresenta uma explicação para já bastante plausível sobre a evolução recente da política internacional (e com base na qual produziu algumas previsões notavelmente certeiras). E deve assinalar-se que é este ponto de vista, e não o de Nye, que o senso comum exclui do debate. Sobre isto escreverei outro post.
 
Uma boa notícia às vezes não vem só
E deixamos de estar sujeitos a insinuações de antisemitismo por condenarmos a política do governo Sharon.
 
Finalmente uma notícia decente
Apesar de, segundo Pedro Namora - devo chamar-lhe "imbecil", ou citá-lo chega? - dizer que "os portugueses têm o juiz Rui Teixeira no coração", o Tribunal Constitucional reconheceu o óbvio, designadamente considerando que a não-apreciação do recurso da prisão preventiva de Paulo Pedroso pelo Tribunal da Relação, no final de Julho, consistiu na violação de um direito fundamental da defesa. É desde há meses a primeira notícia que suscita a esperança de que este julgamento venha a decorrer segundo procedimentos justos.
 
Já arranjei o meu duplo
 
Viver não é preciso
O facto de eu por vezes não escrever no blog durante longos intervalos pode levar a pensar que eu, como outros, acho que viver é mais importante que blogar. Nada disso: blogar é que é o mais importante. Acontece é que no blogging, como na música, tanta falta faz o som como o silêncio.
 

quarta-feira, setembro 24, 2003

Afinidades


I don't trust my inner feelings
inner feelings come and go.


[excerto de "That don't make it junk", de Ten New Songs]

(Eu não conhecia o impressionante poema que o Pedro Mexia pôs no Dicionário, porque o The Future é o único disco do Cohen a que nunca dei a atenção devida. Mas desisto - se o Mexia trata o Cohen como "Mestre", em que é que, de essencial, vamos conseguir divergir?)
 

terça-feira, setembro 23, 2003

Marx (por outras palavras)
Hoje em dia, não há mulher nenhuma que aceite colocar-se na dependência económica do marido.
Surpreendentemente, quase toda a gente aceita como natural colocar-se na dependência económica do emprego.
 

sexta-feira, setembro 19, 2003

Parceiro na blogosfera
Nos últimos trinta anos, jantámos muitas vezes nos mesmos sítios, andámos pelas mesmas casas, partilhámos os mesmos quartos, dirigimos um jornal a meias (1982-87), falámos ao telefone a maior parte dos dias. Cada um pelo seu pé, chegámos juntos à blogosfera.
 
Fanny e Alexander


Revi o Fanny e Alexander do Bergman no Cine 222 - sala imprestável, todas as cadeiras partidas. Tinha visto o filme duas vezes quando estreou, em 1983, com dez anos, o que me parece um absurdo sem explicação possível. E, no entanto (ou exactamente por isso), há cenas de que eu me lembrava muito bem.
Alexander é um rapaz de nove ou dez anos, Fanny a sua irmã que talvez tenha seis. A mãe deles é jovem e muito bonita, o pai mais velho. Com o filme ainda no começo, o pai morre. Mas morre com tempo suficiente para chamar os filhos para os ver pela última vez. Fanny comparece obedientemente à ocasião e dá a mão ao pai quando ele lha pede. Alexander estrebucha, aproxima-se, afasta-se, foge e encolhe-se, esconde-se a um canto. Imediatamente depois o pai morre.
Na cena seguinte Fanny e Alexander seguem lado a lado no cortejo fúnebre. Alexander vai murmurando entre dentes, como uma ladaínha (em inglês, que foi como o vi legendado): "Fart, piss, cock, fart, piss, cock, shit, piss, cock, fart..." A irmã olha-o nos olhos e sorri-lhe docemente.
No núcleo do filme - que dura três horas - Fanny e Alexander vão viver para casa do bispo (protestante, naturalmente) que se casou com a mãe e os maltrata. Alexander mente ao bispo com convicção, ostensivamente, jurando sobre a Bíblia uma coisa que todos sabem ser mentira. Alexander expõe-se ao castigo, obedece perante a força quando não aguenta mais a dor e - ainda assim - nunca cede.

A minha história não é a de Alexander, e isto é só um aviso para não gerar equívocos quanto ao que se segue. Vi as cenas descritas quando tinha dez anos e lembrava-me delas até hoje. Dois anos depois, em 14 de Setembro de 1985, a minha mãe teve um grave acidente de automóvel em França, na sequência do qual esteve quase duas semanas em coma profundo. Durante essas duas semanas nós não sabíamos, obviamente, se ela resistiria. Mas a recuperação foi rápida, talvez até espantosamente rápida: no início do mês de Outubro ela estava tão melhor que pudemos deslocar-nos a França para a ver.
Lembro-me perfeitamente da primeira vez que a vi. A euforia de ela ir ficar boa não me tinha preparado - suponho que nada poderia ter-me preparado - para o reencontro. Ela - tinha então 35 anos - deslocava-se de cadeira de rodas, creio que não falava, tinha os olhos muito abertos, apalpava-me os bolsos e fazia gestos com as mãos pedindo-me a mim cigarros.

Fanny. Alexander. Cock, shit, piss, etc...
 
As perguntas que nunca me farão
Telefonaram-me do Jornal de Letras, para eu responder a um inquérito. Por um momento vivi a euforia contida de ir finalmente ser questionado sobre os livros que ando a ler.
(Já estive para mandar espontaneamente para o Mil Folhas do Público a resposta ao inquérito, com uma indicação do género "achei que vos podia interessar").
Mas não: querem saber o que eu acho das praxes.
As praxes, a geração rasca, o movimento estudantil - há famas de que um homem nunca mais se livra.
(Fiz o costume: disse "não tenho nada de interessante para dizer sobre o assunto" e acedi a responder).
 
O meu avô e a blogosfera
(resposta a Paulo Varela Gomes)

O meu avô está viciado na blogosfera. Há queixas de que passa os dias obsessivamente em frente ao computador, a ler blogs (tem mais de trinta nos favoritos), a receber e enviar emails, a escrever delírios. Todos os dias entre as quatro e as cinco da manhã me manda uma mensagem, e presumo (ou espero?) que depois se vá deitar.
 
Citações
Fui ver as literatices do Pedro Mexia ontem à casa Pessoa. Gostei daquilo de que discordei: nunca tinha visto ninguém, de uma penada, dizer que não se interessava por Ricardo Reis, por não se interessar por meros jogos literários, nem por Alberto Caeiro, por não gostar de platitudes filosóficas nem se interessar pela natureza. Depois da palestra, tentei argumentar com Mexia que ele não tinha razão, e ele tentou argumentar comigo que tinha, e ficámos ambos na posição inicial.
Mas do que eu gostei mais na palestra foi do facto de o Mexia (no período a que eu assisti, pois cheguei com uns dez minutos de atraso) ter-se dado ao trabalho (e ao prazer) de recitar o poema em linha recta do Álvaro de Campos e os últimos dois parágrafos de uma entrada do Livro do Desassossego. Citou, mais do que interpretou. Acho que há quem olhe para a citação de textos mais ou menos conhecidos como um exercício preguiçoso e inútil. Mas o que eu constato muitas vezes é que os textos que cito dizem de mim o que eu queria dizer não só sem saber dizê-lo mas sem sequer saber que o queria dizer. E só constato isto a posteriori, muitas vezes semanas ou meses depois de ter citado apenas pelo prazer de citar.
As citações dizem, e dizem sempre mais e outra coisa conforme quem as diz, e não precisam nem podem ter sempre justificação.
 

quinta-feira, setembro 18, 2003

O anonimato crucial
Confessam-me alguns famosos bloggers que só escrevem o que escrevem porque sabem que a família não lê.
Não, não foi o abrupto.
 
OPA
Será que ele acaba por ceder à minha OPA?
 

quarta-feira, setembro 17, 2003

Uma utopia política
Parece que a Política XXI vai ser extinta no fim-de-semana, dez anos depois de ter nascido. Deu-me vontade de me reinscrever. Pelo menos depois de extinta não deve ter reuniões.
 
De um clube de que eu não gosto
Sou do Sporting. Não é por acaso: as escolhas afectivas, enraizadas, não são por acaso, mesmo que não saibamos explicar exactamente as razões. Talvez um destes dias eu tente falar sobre isto.
Entretanto, vou ter que juntar às minhas escolhas um blog optimista sobre o Benfica, para que o André me chamou a atenção, porque é muito bom. Quando eu explicar por que odeio o Benfica, não terá nada que ver com o que se lê ali.
 

sexta-feira, setembro 12, 2003

Carta em público
[Isto é uma "carta" para o Pedro Mexia, mas é pública até porque, por uma combinação de pudor e circunstâncias, nós não nos conhecemos pessoalmente].

Pedro,
Acho que compreendo as razões por que às vezes te apetece ir embora. Não sou sequer grande fã dos teus textos sobre política. Ontem mesmo comentei que se primeiro te tivesse conhecido enquanto colunista político do DN, provavelmente nunca me teria tornado num admirador teu. (Eu sei que a palavra é incómoda, é para os dois, tem paciência). Os teus posts que mais me impressionaram foram outras coisas - como aquele, na Coluna Infame, sobre a rapariga que viste passar por ti a caminho de ir comprar preservativos. Quando apanhei essas coisas, fiquei emocionado com a descoberta.
Para além desses posts sensacionais, impressionou-me a integridade pessoal em momentos decisivos.
Se não queres escrever sobre política, I couldn't care less. Também não é pelas discussões sobre política, como porventura já terás percebido, que eu ando por aqui. (E isto sem menosprezo para a política; só não é a minha Praia).

Há vários dias que eu sabia - e eu não te conheço, claro - que a tua relação com o blog não anda boa. Do Lomba também soube antes de ele encerrar a loja. As razões são as que tu dizes mas talvez não sejam só as que tu dizes -

por exemplo, na polémica de 10.9 tu foste injusto tanto com a Ana Sá Lopes, que eu não conheço, como com o Daniel Oliveira, que eu conheço muito bem. Tu fizeste uma provocação, e a ASL respondeu-te na mesma moeda: nem mais, nem menos. Ao Daniel é fácil dizer que ele "está na política essencialmente pelo gosto pela discussão", porque quase que é verdade. E as discussões cansam: a mim cansavam-me tanto que houve um dia em que ele e a Francisca me deram uma t-shirt com uma frase estampada, para eu não ter de voltar a repeti-la: essa conversa não me interessa p'ra nada.
Há muita gente que adora discussões. Eu já vi o Daniel discutir os assuntos mais incríveis. A injustiça é que ele é dos poucos que, adorando discussões, não se pela por uma boa gritaria. Nem se irrita, nem perde o sentido de humor, nem tem especial gosto em «ganhar» a discussão. Diz-me lá: à esquerda ou à direita, quantas pessoas conheces tu assim?

- mas ia dizendo: acho que não são só as razões que tu dizes. Manter um blog pessoal, num tom pessoal, como tu fazes e o Lomba fazia, é (por muito que o "Mexia" não seja o Mexia) um desafio muito grande e uma erosão permanente. Compreendo isso.
Mas digo-te uma coisa, a ti que não te conheço, e uma coisa que não disse ao Lomba: não te perdoaria se te fosses embora.
 

quinta-feira, setembro 11, 2003

A Rosa de Hiroxima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh nao se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atómica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada

[Vinícius de Moraes, 1946]
 
A minha escolha para o 11 de Setembro
A continuidade da política internacional
Kenneth Waltz


Na manhã de 11 de Setembro de 2001, as Torres Gémeas do World Trade Center, símbolos do capitalismo mundial, foram derrubadas por terroristas. Em seguida, uma parte do Pentágono, símbolo do poder militar americano, foi destruída. Os actos terroristas, aparentemente organizados por Osama bin Laden e executados por membros da al-Qaeda, foram abertamente condenados por toda a parte do mundo. Contudo, é preciso que nos perguntemos se o impacto dos atentados na política americana e na política internacional será profundo e duradouro.
Foi na política e nas opções políticas [policies] dos Estados Unidos que se notaram efeitos imediatos mais importantes. Num instante, a nova administração Bush mudou de um unilateralismo estridente para um multilateralismo urgente. No entanto, a nova abordagem multilateral foi adoptada apenas para responder a necessidades imediatas e prementes: os Estados Unidos precisavam das capacidades de policiamento e recolha de informações de outros Estados de forma a poderem perseguir e capturar terroristas. Mas no plano militar a resposta americana desmentiu redondamente o subtítulo de um livro recém-publicado: O Paradoxo do Poder Americano: Por que é que a única superpotência não pode agir sozinha, de Joseph S. Nye. A América organizou e conduziu sozinha a campanha do Afeganistão, recusando rudemente a oferta de tropas britânicas para participar nos combates feita pelo primeiro-ministro Blair.
Existem muitas outras indicações de que os impulsos multilaterais americanos são estritamente limitados. Proclamando uma «guerra contra o terrorismo», Bush conferiu aos terroristas a dignidade de soldados e, de forma quase acidental, atribuiu às forças americanas a missão impossível de derrotarem militarmente um «ismo». O presidente Bush alegou, no entanto, que os prisioneiros de Guantanamo são criminosos e não soldados, e que por isso não estão ao abrigo da Convenção de Genebra. A tentativa americana de fazer as suas próprias regras internacionais – ignorando o bem-estar dos americanos que combatem no estrangeiro e que podem vir a ser capturados por países que se recusem a chamar-lhes soldados – é um exemplo extremo de unilateralismo.
Os novos desafios não mudaram os velhos hábitos. Dou apenas mais dois exemplos. Os ministros dos negócios estrangeiros da NATO prometeram trazer a Rússia directamente às consultas da NATO. Lord Robertson, secretário-geral da NATO, propôs-se dar à Rússia um estatuto igual aos outros membros, incluindo o direito de veto, em problemas como o terror e a estabilidade regional. Mas a campanha americana no Afeganistão correu lindamente, e depois disso ninguém ouviu dizer mais nada sobre a ideia de a NATO se tornar 19+1. Quando os líderes mundiais, trajados nos seus casacos da dinastia Tang, se reuniram na conferência APEC em Xangai em Outubro de 2001, o presidente Bush deu a impressão de que ele e o presidente Putin se poriam de acordo quanto a interpretações e modificações a fazer ao Tratado Anti-Mísseis Balísticos (ABM). Em vez disso, Bush renunciou ao tratado e comunicou que os Estados Unidos se retiravam dele.
No início da administração Bush, consultar outros países queria dizer que nós lhes diríamos o que tencionávamos fazer e depois o faríamos, quer lhes agradasse quer não. Exceptuando em assuntos específicos e limitados, essa prática não mudou. Há, no entanto, algumas mudanças que são mais acentuadas. O 11 de Setembro elevou o Secretário de Estado [Colin Powell] da quase invisibilidade à notoriedade – embora faça sentido perguntarmo-nos em que medida é que a notoriedade diplomática se traduzirá em influência sobre as opções políticas. Depois de ter feito campanha contra a reconstrução de nações [nation-building], o presidente Bush acolhe-a agora como a orientação política americana para o Afeganistão – embora se justifique que nos perguntemos se ele virá a mostrar tanto zelo na reconstrução como mostrou em fazer a guerra. A guerra contra os terroristas elevou o Paquistão de pária punido a parceiro privilegiado. Mas durante a Guerra Fria o Paquistão subiu e desceu nas graças americanas consoante a pressão das ameaças da União Soviética. Temos que perguntar-nos, como fazem os paquistaneses, se tal padrão persistirá agora. Em nome do combate aos terroristas, as liberdades, tanto dos cidadãos americanos como dos estrangeiros residentes no país, foram reduzidas. Esta mudança é de temer que dure.
O combate aos terroristas forneceu à administração Bush um pretexto para fazer aquilo que de qualquer maneira ela queria fazer. A administração obteve do Congresso todo o dinheiro que procurava para a defesa nacional antimíssil. Os actos terroristas minaram o anterior acordo inter-partidário para reduções. A administração liquidou o tratado ABM sem protestos significativos internos ou externos. Ela obteve aumentos brutais nos orçamentos das forças armadas a fim de combater as fracas forças que os terroristas conseguem reunir. Embora os terroristas possam ser terrivelmente incomodativos, eles dificilmente ameaçam a estrutura de uma sociedade ou a segurança do Estado.
Os terroristas causaram mudanças no comportamento e na política americana no curto prazo, mas as alterações vão no sentido estabelecido por anteriores alterações. Serão as mudanças na estrutura da política internacional e no comportamento das outras nações mais significativas? Lê-se no New York Times que “o mundo mudou, os desenvolvimentos tecnológicos deram a pequenos grupos de pessoas um tipo de poder destrutivo que antes estava apenas ao alcance de governos nacionais”. Supostamente os fracos tornaram-se fortes – será verdade? Escolhendo inteligentemente os seus alvos, os terroristas foram muitas vezes capazes de usar recursos escassos para causar danos desproporcionados. O historiador diplomático John Lewis Gaddis sustenta que, agora que o território nacional está em risco, a segurança nacional se tornou verdadeiramente «nacional», e chama a isto “uma revolução no pensamento estratégico”. Será que os ataques terroristas produziram uma revolução estratégica, ou deixam no essencial intactos os pressupostos fundamentais da política internacional? Para a maioria dos países ao longo da História, incluindo os Estados Unidos durante a guerra de 1812, o território nacional esteve algumas vezes em risco.
Desde o desaparecimento da União Soviética, a política internacional tem sido marcada por três factos essenciais. O primeiro é o enorme desequilíbrio de poder no mundo. Nunca desde Roma um só Estado se tinha aproximado tanto de obter o domínio do mundo. Em 1997, os gastos americanos em forças armadas eram superiores aos dos cinco países com maiores orçamentos militares seguintes; em 2000, excediam os dos oito seguintes. Os orçamentos de defesa da maioria dos países estão estabilizados ou em declínio, ao passo que o da América cresce a um ritmo cada vez mais elevado. Do ponto de vista económico, tecnológico e militar, os Estados Unidos são de longe o país dominante. Nenhum país ou grupo de países pode esperar desafiá-los no espaço de uma geração. Após a derrota da União Soviética, os Estados Unidos tornaram-se vencedores vingativos. Mantiveram o seu domínio sobre as políticas externas e militares da Europa Ocidental e acrescentaram três países do antigo império soviético à lista da NATO, anunciando que outros se seguiriam. Os velhos membros da NATO não mostraram entusiasmo pelo alargamento, nem vontade de partilhar os custos, mas ainda assim aquiesceram sem reagir à política de engrandecimento americano. Agora, a guerra aos terroristas permite aos Estados Unidos estabelecerem bases na fronteira sul da Rússia e continuarem a fazer o cerco tanto à Rússia como à China. O Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, anunciou que, se isso for necessário para prosseguir a guerra aos terroristas, os Estados Unidos entrarão militarmente em mais 15 países. No seu discurso do Estado da União de 29 de Janeiro de 2002, o presidente Bush apontou os três países seguintes que poderão sentir a nossa ira (Iraque, Irão e Coreia do Norte) e ameaçou instalar-se em qualquer país que se mostre “tímido perante o terror”. Concretizando a ameaça, acrescentou: “Não cometam equívocos sobre isto: se não agirem, a América agirá”. Hoje, o Afeganistão e as Filipinas; amanhã, quem sabe?
O terrorismo não altera o primeiro facto essencial da política internacional – o largo desequilíbrio de poder mundial. Ao contrário, o efeito do 11 de Setembro foi o de reforçar o poder americano e alargar a sua presença militar pelo mundo.
O segundo facto essencial da política internacional é a existência de armas nucleares – a maioria delas nas mãos dos Estados Unidos – e a sua progressiva disseminação para outros países. Também aqui, o terror prossegue tendências anteriores. Tendo estabelecido um acordo com a Rússia para reduzirem o seu arsenal nuclear, os Estados Unidos anunciaram em Janeiro de 2002 que, em vez de desmantelarem ogivas, as armazenariam. E, embora o 11 de Setembro tenha mostrado que as defesas nacionais anti-míssil são irrelevantes face aos meios de ataque mais prováveis, a administração Bush usou o terror como pretexto para renunciar ao tratado ABM.
O melhor que se pode dizer sobre as defesas antimíssil é que não funcionarão. (Se funcionassem, uma corrida offence-defence resultaria, com consequências bem conhecidas). É fácil furar as defesas antimíssil. Em matéria de nuclear, as armas ofensivas são muito mais baratas do que as defensivas. Os outros Estados podem multiplicar as suas ogivas; podem baralhar as defesas enviando iscos e propagando palha; podem flanquear as defesas enviando ogivas de várias formas possíveis – por avião, por navio, por mísseis de cruzeiro, por mísseis disparados em trajectórias deprimidas. A defesa antimíssil seria o mais complicado sistema alguma vez montado, e teria de funcionar de forma praticamente perfeita logo que confrontado com o seu primeiro teste realista – o teste de um ataque inimigo. Algumas ogivas podem sempre passar, e tanto quem ataca como quem defende sabe isso. Nenhum presidente confiará em tal sistema; procurará, em vez disso, evitar agir de forma que possa provocar um ataque. Com ou sem defesas antimíssil, os constrangimentos que a política americana tem de enfrentar são, em suma, os mesmos.
O pior é que as defesas nucleares, embora sejam permeáveis como uma peneira, terão efeitos destruidores tanto sobre os outros como sobre os próprios Estados Unidos. Relatórios dos serviços de informação americanos dizem que as defesas antinucleares americanas podem impelir a China a multiplicar por dez o seu arsenal nuclear e a colocar várias ogivas em cada míssil. E a seguir à China virão a Índia e o Paquistão. O presidente Putin teme que o resultado disto seja “uma corrida febril e descontrolada ao armamento nas fronteiras do nosso país”. O Japão, que já se sente desconfortável com o aumento das capacidades militares e económicas da China, ficará ainda mais desconfortável à medida que a China procure contrariar as defesas que os americanos tencionam construir. Uma vez que a nova administração Bush está a rasgar o conjunto dos acordos que submeteram as armas nucleares a um mínimo de controlo, e uma vez que não ofereceu nada para os substituir, há outros países que procuram de forma mais intensa olhar pelos seus próprios interesses. A Coreia do Norte, o Iraque, o Irão e outros sabem que só pela dissuasão os Estados Unidos podem ser sustidos. As armas de destruição massiva são o único meio pelo qual eles podem esperar deter os Estados Unidos; não podem esperar detê-los através do armamento convencional. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos usaram as armas nucleares para compensar o poderio da União Soviética em forças convencionais. Hoje, outros países podem utilizar as armas nucleares para compensar o nosso. Em matéria de armas nucleares, assim como noutras matérias, o unilateralismo americano prevalece: a administração Bush recusa-se a ratificar tratados que os próprios Estados Unidos patrocinaram (o tratado de interdição alargada de testes nucleares [Comprehensive Test Ban Treaty]) e a honrar tratados que ratificaram (o tratado ABM).
Os terroristas não alteram o segundo facto brutal da política internacional: são as armas nucleares que governam as relações militares entre os países que as possuem. Além disso, as políticas americanas estimulam a proliferação vertical [aumento do armamento nuclear de um mesmo país, n.t.] e promovem a disseminação de um país para outro.
O terceiro facto essencial da política internacional é a preponderância de crises que infestam o mundo, na maioria das quais os Estados Unidos estão directa ou indirectamente envolvidos. A Argentina está numa barafunda política e económica; a Tchechénia é uma ferida aberta na política russa; a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, ambas fortemente armadas, estão como de costume de armas apontadas uma à outra; o problema de Taiwan afecta todos os Estados da região; a desintegração da Indonésia, caso venha a ocorrer, ameaça destabilizar o Sudeste asiático; o prolongado conflito entre a Índia e o Paquistão por Caxemira é exacerbado pela guerra aos terroristas, assim como o interminável conflito entre a Palestina e Israel. Se os Estados Unidos decidirem instalar-se em mais países ou atacá-los, mais crises serão acrescentadas a esta já longa lista.
Os terroristas não alteram o terceiro facto essencial da política internacional: a persistência e acumulação de crises. Na verdade, ao perseguirem os terroristas e ameaçarem atacar Estados que os acolham, os Estados Unidos acrescentarão novas crises a uma lista já longa.
Muito mais do que interromper a continuidade da política internacional, o aumento da actividade terrorista é uma resposta a mudanças que ocorreram nas últimas duas décadas. Antes do declínio e desaparecimento da União Soviética, os Estados fracos e os descontentes podiam esperar ganhar alguma coisa lançando uma superpotência contra a outra. Agora os fracos e os descontentes estão sozinhos. Sem surpresa, atiram-se aos Estados Unidos como o agente ou símbolo do seu sofrimento. Os actos terroristas de 11 de Setembro impeliram os Estados Unidos a alargar as suas já insufladas forças militares e a estender a sua influência a partes do mundo que os seus tentáculos não tinham ainda alcançado.
Feliz ou infelizmente, os terroristas contribuem para a continuidade da política internacional. Dão sequência a tendências já em curso. Por que é que a perspectiva do terror não altera os factos essenciais da política internacional? Porque todos os Estados – sejam autoritários ou democráticos, tradicionais ou modernos, religiosos ou seculares – temem ser seus alvos. Os governos prezam a estabilidade, e acima de tudo prezam a continuação dos seus próprios regimes. O terror é uma ameaça à estabilidade dos Estados e à tranquilidade dos seus governantes. Por isso é que o presidente Bush pôde com tanta facilidade reunir uma coligação com um quilómetro de tamanho.
Contudo, como o terrorismo é uma arma de fracos, os terroristas não ameaçam seriamente a segurança dos Estados. Os Estados não se vêem por isso compelidos a unir-se para contrabalançar a relação de forças mundial. Os atentados terroristas não alteram as principais bases em que assenta a política internacional nem alteram uma situação de recorrentes crises. É por isso que, embora tenha um quilómetro de tamanho, a coligação anti-terrorista tem apenas um centímetro de espessura.
 
Notas sobre o texto que se segue
O texto que compõe o próximo post - um texto enorme, em Times 12 a espaço e meio ocupa seis páginas, pelo que deve ser difícil de ler no ecrã - é provavelmente o que mais me impressionou de entre todas as análises que li sobre a política internacional pós-11 de Setembro. E é um texto escrito a quente: o que sabemos é que foi terminado antes de Março de 2002, ou seja, até seis meses depois dos atentados, pois é essa a data do prefácio do livro em que o texto se encontra. Este livro, Worlds in Collision - Terror and the Future of the Global Order, organizado por Ken Booth e Tim Dunne (London, Palgrave, 2002) - é uma impressionante colecção de 31 ensaios de muitos dos mais significativos e diversificados autores anglo-saxónicos da área das Relações Internacionais sobre as consequências do 11 de Setembro. Entre esses 31 há previsões para todos os gostos, mas parece-me que nenhum tão simples, sistemático e até ver acertado sobre o que poderia acontecer.
Se eu não me tivesse dedicado a traduzir este texto, ele nunca seria publicado em Portugal. (Uma vez que é a minha estreia na tradução, peço com especial ênfase que me dirijam comentários e críticas). Kenneth Waltz é o mais citado autor das Relações Internacionais vivo e tem um único livro traduzido em Portugal - o seu clássico Theory of International Politics, de 1979, editado no ano passado em Portugal pela Gradiva. A tradução é tão má que às vezes penso que era sinceramente preferível terem estado quietos.
Waltz não agrada à esquerda nem agrada à direita, por razões que já explico.
É americano, filho de alemães emigrados para os EUA e nascido em 1924. O seu livro mais importante é o mencionado TIP e, vinte anos antes dele, Man, The State and War. Waltz é também autor de um ensaio muito famoso, que está online, sobre as vantagens e os riscos da disseminação das armas nucleares por mais Estados: ele sustenta que, dentro de certas condições, há mais vantagens que riscos.
Waltz é raramente apreciado à esquerda (mas há excepções: por exemplo, Fred Halliday, um marxista), o que a meu ver é um erro. Mas Waltz tem hoje o estatuto de mais importante autor "Realista" vivo, e a esquerda tende a não gostar do "Realismo". De forma simplificada, esta corrente, que é a mais importante em Relações Internacionais, assenta na ideia de que os agentes decisivos da política internacional são os Estados e em particular as grandes potências, que a política internacional é feita muito mais de competição do que de cooperação, que os Estados são tendencialmente egoístas e que, portanto, o poder e em particular as capacidades militares são os elementos determinantes na política internacional.
Esta visão - chamada de "pessimista" - pode, num sentido muito limitado, ser considerada conservadora, uma vez que o "Realismo" alega descrever "a realidade tal como ela é" e oculta o papel que as ideias - incluindo o próprio "Realismo" - têm em moldar o mundo que descrevem.
Mais do que isso, o Realismo tende a ser identificado com a direita americana e com posições belicistas - mas estas duas ideias são, ambas, completamente disparatadas.
Todos os nomes mais importantes do "Realismo" americano subscreveram um anúncio de uma página no NYT, em Setembro de 2002, contra a guerra ao Iraque este ano. Já na década de 1960, aquele que era então o principal teórico vivo do "Realismo", Hans Morgenthau, se tinha oposto vivamente à guerra no Vietname. Defender que o poder, e designadamente o poder militar, é o elemento determinante das relações internacionais não equivale a defender a guerra. A convicção dos "Realistas" é a de que o Estado deve perseguir o interesse nacional, gerir o equilíbrio de poder e não se meter em guerras expansionistas desnecessárias e perigosas.

A tese que o texto de Waltz que aqui coloco sustenta é simples, é clara e é contundente: os atentados de 11 de Setembro, embora impressionantes, fazem sentido no quadro da evolução da política internacional verificado desde o final da década de 1980 e, longe de inaugurarem mudanças radicais, confirmam tendências pré-existentes. Num mundo não-bipolar, com uma superpotência única, os Estados fracos e os desfavorecidos, que antes procuravam tirar algum partido da rivalidade entre as duas superpotências, imputam à superpotência restante a causa das suas desgraças. O terrorismo é, no entanto, uma arma de fracos, que não porá substancialmente em risco a sobrevivência dos Estados e não os fará unirem-se contra um inimigo comum. Portanto, causará certamente alguns estragos mas não alterará as relações de forças. É também quase impossível que qualquer Estado se ponha seriamente nas mãos de terroristas; em qualquer caso, é com a gestão da relação com os Estados e entre eles que a administração americana devia preocupar-se, e não com o terrorismo em geral.
No quinto parágrafo, Waltz confronta-se com uma série de transformações importantes ocorridas na política internacional imediatamente após o 11 de Setembro e pergunta-se se elas vão durar; na generalidade dos casos, responde que não. Retrospectivamente, o que impressiona é que acertou em quase tudo.
Para Waltz, nos primeiros meses de 2002 já era visível que a guerra ao terrorismo acentuaria a predisposição da superpotência para agir sem dar atenção aos seus parceiros internacionais (unilateralismo) e para reforçar o enorme desequilíbrio de poder existente no mundo. Esta tendência foi reforçada com a chegada de Bush jr. à Casa Branca, mas precede-a largamente. O quadro que Waltz traça a partir daqui não é famoso: a supremacia americana não conseguirá pacificar o mundo pela força, sem negociação, pelo que o terrorismo continuará e crescerá. O aumento do seu poderio militar criará inevitavelmente receios da parte de outros países, que terão eles próprios de se reforçar militarmente, como a China. Se assim for, a Rússia, o Japão, a Índia e o Paquistão não poderão ficar sossegados, e por aí adiante. Estados como a Coreia do Norte e o Irão, em face do ímpeto expansionista americano, sabem que a única forma de protegerem os seus próprios regimes é através da obtenção de armas nucleares. A guerra ao terrorismo também tornará mais difícil negociar soluções pacíficas em Cachemira, na Palestina ou na Tchechénia.
Alternativas? De acordo com a retórica dos "Realistas", eles preocupam-se essencialmente com o que é, e não com o que devia ser. No entanto, desde os finais da década de 1970 que Waltz é um feroz crítico da corrida armamentista prosseguida por Reagan e todos os presidentes seguintes. A prossecução do interesse nacional americano não deveria requerer um agravamento progressivo das crises internacionais, nem uma propensão belicista - e os "Realistas" sempre recusaram como perigosa a retórica maniqueísta do bem contra o mal. Requeriria uma gestão mais racional dos equilíbrios de poder.
Os "Realistas", apesar da retórica, não acertam sempre. Waltz foi incapaz de prever o fim da Guerra Fria, e em Theory of International Politics há mesmo uma passagem muito mal-tratada pelo tempo, que prevê que a União Soviética permaneça um Estado importante cem anos mais tarde - durou pouco mais de dez... Apesar da retórica do "Realismo", os "Realistas" são humanos como os outros, e enganam-se.
No entanto, este texto tem a virtude da sistematização teórica, isto é, de ser capaz de discutir as excitantes novidades por relação com os elementos que a teoria conseguiu abstrair como essenciais para caracterizar qualquer situação concreta. Em suma, para o bem e para o mal, para os "Realistas" o mundo não nasce outra vez todos os dias.
E agora, à esquerda e à direita, suspendam o Chomsky e a retórica do Tony Blair e dêem-se ao trabalho. Se no final acharem que o texto não valeu a pena, aceito protestos.
 
Impronunciável
Num artigo que escrevi para o Público logo após o 11 de Setembro de 2001, comecei com a seguinte frase:

“É indescritível o horror, a incompreensão e até o pânico que sentimos perante as imagens dos atentados nos EUA.”

E mais à frente referi-me a que havia alguma coisa de “impronunciável” no que eu sentia perante a tragédia, sem ser capaz de identificar o que era.
O impronunciável, penso agora, era a estética.
O post anterior a este não se destina a lembrar o acto de guerra singular mais criminoso da História (até agora). Nem essencialmente a demonstrar a insanidade do carrasco americano que lançou a bomba de Hiroxima.
É só que o homem que olhou para o cogumelo atómico tem que ter sabido que naquele cor-de-rosa e azul ia a morte de centenas de milhares de pessoas, de uma cidade inteira, de crianças. Como ao olhar para as Torres Gémeas perfuradas pelos aviões e ao ouvir até os gritos, soube que todo o tipo de pessoas estava a morrer e ia morrer ali – naquele instante, naqueles minutos, naquelas horas. Perante a bola de fogo ficou horrorizado. Ficou em pânico, apesar de ser na televisão.
E não compreendeu - isto é, não se compreendeu - porque nunca tinha imaginado que a brutalidade do fim do mundo pudesse ser um espectáculo real.

No outro dia eu estava no Rio de Janeiro e entrei numa loja de fotografias em que na parede, como demonstração da qualidade das ampliações, estava uma foto enorme das Torres Gémeas - intactas. Estava comigo, por acaso, um nova-iorquino que viu ao vivo o segundo avião a embater na torre. Olhámos para aquilo e um para o outro, incrédulos e estupefactos. Parecia não poder haver nada mais absurdo do que a exposição daquelas imagens. Foi nessa altura que comentei a estética do avião quase atravessando a torre. Acho que precisei da caução dele ao lado para conseguir sequer pensá-lo.
 
Onze de Setembro


The whole sky is lit up in the prettiest blues and pinks I’ve ever seen in my life. It was just great.

O céu inteiro iluminou-se dos mais belos azuis e cor-de-rosa que vi na minha vida. Foi fantástico.

[Foi assim, segundo leio no Economist, que o piloto americano do Enola-Gay, o avião que em 6 de Agosto de 1945 lançou a primeira bomba atómica da História, sobre a cidade japonesa de Hiroxima, descreveu o momento].
 

quarta-feira, setembro 10, 2003

Pré-histórias


Dos meus amigos na blogosfera, os mais antigos são estes. Ouvimos juntos, muitas vezes (embora não em 1972), o disco do Sérgio Godinho donde vem o Barnabé (nesse disco estão "A Noite Passada", o "Pode alguém ser quem não é?" e o "O'Neill", e por isso é um dos meus preferidos).
O título deste blog tem a marca de uma casa, de um património que foi construído comigo lá metido, e de que também por isso gosto muito. Do Daniel e do André teria - provavelmente, terei - histórias intermináveis. O Pedro Oliveira é um caso peculiar: fizemos amizade uns bons dez anos depois de nos termos conhecido. Mas, sem quebrar o pudor dele, que é muito, sempre digo que as coisas mais significativas às vezes tardam a chegar. O Rui é mais propriamente um amigo dos amigos, mas é um caso, como os que tiverem lido a parte dele na polémica do blog do PVG já perceberam. Ao Celso e à Rosa conheço pior, embora ela tenha um blog peculiar que é muito bonito e de que eu gosto muito.
Isto vai animar.
 
Finalmente os links
Já se dizia por aí que eu não tinha lista de links porque se tivesse só poria um blog na lista. É falso. Era inépcia. Consegui escolher 10+1 blogs de que gosto. Bem sei que é pouco, mas eu conheço relativamente mal a blogosfera.
Para eu gostar de um blog não basta gostar de um ou outro post. É preciso começar a habituar-me ao mecanismo, conhecer a personagem que escreve (enquanto personagem que escreve, não como pessoa para lá do que escreve). Por isso, gosto sobretudo de blogs pessoais ou com poucas pessoas, que são também para os seus autores os mais difíceis, os mais arriscados e aqueles em que uma fase má é mais indisfarçável.
Gosto do abrupto. Já disse mal aqui de algumas das suas características, voltarei certamente a esse ponto, mas também hei-de escrever sobre aspectos nele de que gosto. Ao Pacheco não é preciso amá-lo nem odiá-lo, e não convém. Sabido isto, é difícil não reconhecer que o abrupto é das melhores páginas de Portugal, porque é bonito e porque tem ideias interessantes sobre uma série de assuntos diferentes. Não leio todos os posts, mas leio-o quase todos os dias.
Todos os posts leio do Dicionário do Diabo. Já falei aqui tanto sobre ele que penso que não vale a pena insistir. Junto também os links para A Coluna Infame e Flor de Obsessão, apesar de serem lojas encerradas, porque muito do que o Mexia escrevia no primeiro e do que o Lomba escreveu nos dois merece ser relido, como se fosse um livro. Aliás, se eu já tivesse alguma vez escrito um livro, diria ao Lomba, do alto da minha experiência: - deixa lá o livro, não interessa nada, concentra-te mas é em fazer um bom blog. Eu acho que os blogs não têm necessariamente que ser para ler e deitar fora.
A estes acrescento ainda o Cristóvão de Moura, do Paulo Varela Gomes, por razões que nem vale a pena tornar a explicar, e o Blogo existo, uma das páginas que eu conheço pior nesta lista, mas a que fui remetido por um post do PVG e onde li várias coisas interessantes. Não tenho nenhuma ideia sobre o seu autor. E junto também a bomba inteligente, embora muito do que lá sai me passe ao lado, porque gosto do tom semi-fútil, auto-irónico, e do facto de ser um blog sem merdas, em que a autora escreve o que lhe apetece.
Nos colectivos ponho quatro. A Caderneta da Bola é uma autêntica mina para todos os que nos viciámos em futebol entre as décadas de 1980 e 1990. É bem escrito e tem tudo - mas tudo - o que há para saber sobre os ídolos obscuros que eu achava então que o meu clube devia contratar (por exemplo, Jorge Plácido), os que o meu clube efectivamente contratou e por consequência geraram esperanças (Bozinowsky) e os que acompanhávamos porque eram a sensação de um campeonato ou outro (por exemplo, Radi). Para ser perfeita, à Caderneta só faltam os bonecos.
Orgulho-me de ter sido eu a falar da Caderneta a vários membros do Desejo Casar e do País Relativo que a desconheciam, e em consequência disso 48 horas depois o link já lá estava nas páginas deles. Com o Desejo Casar tenho para sempre um ressentimento mal resolvido desde que a Ana Sá Lopes o elegeu (ainda por cima na página da Vanessa) como blog preferido. Survival of the fittest. O País Relativo é a rapaziada com quem eu mais converso (e ontem por causa disso quase me duplicaram o site-meter). Promovo amigos? Se não os achasse bons para que os queria como amigos?
O Barnabé é a novidade mais recente, e aquela que gera maiores expectativas. Por isso mesmo, vai ter um post próprio.
 
Sweet, sweet words


Na altura do mundial do México eu tinha treze anos e nenhuma razão para gostar da Argentina. Fui brasilófilo desde muito novo, por razões que não sei explicar: em 1982 chorei quando o Brasil foi eliminado pela Itália; em 1986 voltei a chorar, no escuro do cinema (África Minha), logo depois de o Brasil ter perdido com a França nos penalties. Lembro-me de que o que mais me doía na altura era pensar que teriam que passar quatro anos - quatro longos anos, quatro impensáveis anos, uma vida, quantas mortes? - até que o Brasil pudesse voltar a ser campeão do Mundo. Em 1986, para mim 1990 era uma hipótese matemática, não um horizonte de vida. Em 1982 suponho que o jogo tinha sido perdido para toda a eternidade.
Depois, em 1990, o Brasil perdeu para a Argentina, e eu já não chorei mas fiquei com uma neura; e em 1998 passei mal a noite e tive pesadelos depois da derrota por 3-0 com a França.
Eu não tinha, portanto, nenhuma razão para gostar do Maradona em 1986, de quem tinha apenas a ideia de que era um menino mimado que tinha agredido um jogador do Brasil (e consequentemente sido expulso) em 1982. Mas no Verão de 1986, pela televisão, em Sintra, acabei a desfrutar do futebol como nunca antes e nunca mais depois. Os jogos do Maradona, em especial contra a Inglaterra e contra a Bélgica, deixaram-me deslumbrado, emocionado, feliz. O que o Maradona fazia nas minhas tardes ou noites, no ecrã, era sempre uma surpresa, e era cada vez mais impossível, e cada vez mais triunfal.
Quando no ano passado o primeiro golo dele contra a Inglaterra foi considerado o melhor golo de sempre na história dos mundiais de futebol, senti uma alegria como se fosse o prémio, não a um jogador da minha equipa, mas a um amigo de infância. Lembro-me da tarde desse jogo, e fiquei quase comovido por terem confirmado que eu vivi e me emocionei em directo com um acontecimento histórico tão feliz.
As palavras que este senhor escreve sobre mim não se agradecem, até porque eu não saberia como.
A paixão pela bola, não a perdi. Mas costumava jogá-la com o talento possível e um empenhamento inexcedível, ao passo que hoje não posso com uma gata pelo rabo.

 
É pr'amanhã
Eu não ia dizer nada, porque ando a preparar uma surpresa, que já me deu algum trabalho, e as surpresas por definição não se anunciam. Mas agora que o Mexia disse um disparate destes, que "a esquerda [ia] assobiar para o ar e evocar o Chile", não consigo deixar de dizer que há semanas que ando a pensar no que vou publicar a 11 de Setembro e que nunca me tinha acontecido isto com post nenhum. E, obviamente, não vou falar do Chile.
Será que o Mexia imagina que depois do onze de setembro só a direita - e, nesta matéria, ele é da direita - é que pensa sobre política internacional? Estou embasbacado.
Já agora: o que vem aí é longo, muito longo. Sei que muita gente acha que os blogs são uns rebuçados de leitura rápida, que nem são propriamente para ler, mas para olhar e ver mais ou menos o que é que lá está. Eu acho que fazem mal. Os blogs que eu mais aprecio - e o do Mexia é desde sempre o que eu mais aprecio - são cuidados em cada palavra. O principal do que eu tenho para publicar amanhã - que não é um texto meu - é enorme e vai ser provavelmente preciso imprimir para ler. Mas eu acho que vale a pena, claro que acho: é óptimo. Nem de outra forma eu o publicaria sendo tão grande.
 

terça-feira, setembro 09, 2003

Uma polémica sobre o marxismo
Uma polémica sobre o marxismo? Ó filho, tu com esta idade ainda te vais meter numa polémica sobre o marxismo? Sabes há quanto tempo há polémicas sobre o marxismo? E o que é que tu julgas que sabes sobre o marxismo para poderes dizer numa polémica?
 
Conversa para entreter enquanto esperamos a Sua Segunda Vinda


Tinham-me dito que o meu blog era "uma ilha". (Também me tinham dito que pelo meu blog se via que eu me acho "a bala que matou o Kennedy", mas isso é outra história). Terão os leitores mais atentos reparado que ontem a ilha estendeu umas pontes: resolveu responder ao Pacheco sobre o Bloco de Esquerda e deu uma bicada a uns amigos que conhece bem (enfim, uns muito bem, outros mais ou menos, e outros não de todo).
Já toda a gente sabia que o Pacheco não responderia. O Pacheco tem um granda site-meter: são multidões que todos os dias se precipitam para abrir a página dele. O Pacheco dá conversa a pequenos site-meters, que em consequência crescem, desde que daí não advenham nenhumas maçadas desagradáveis para O Maior Dos Site-Meters. Adivinharam: foi mesmo no marxismo-leninismo que ele aprendeu isto, e continua todo satisfeito.
Os amigos, pelo seu lado, responderam. Era de esperar: os amigos respondem quando a gente lhes fala. O que eu não esperava é que fizessem onze teses sobre uma boca. Em jeito de resposta, lanço onze comentários em forma de "não vos vou deixar aí a falar sozinhos". Ponto por ponto:

10. Pois, começo pelo primeiro. São eles que explicam a definição de marxismo light que eu tinha deixado apenas subentendida:

"Devíamos ter lido mais Marx do que aquele que lemos e isto lembra-nos que o devemos fazer mais, nomeadamente abandonando os positivismos para os quais as nossas vidas e as académicas em particular nos empurram."

Os positivismos são aquilo a que eu chamei "a agenda do dia". Estamos de acordo: são eles que fazem a sua própria caracterização.

1. "O principal erro de todo o marxismo é ter sido pós-marxista. Nós somos tão marxistas como Marx, quando dizia: «eu não sou marxista». Nós somos marxistas da tendência Marx. Como as coisas andam é preciso querer negar muito a realidade para não ser marxista light."

Aqui a minha terminologia é melhor que a deles. Pós-marxistas somos todos, pelo menos todos os que achamos que não é possível ressuscitar os mortos (por isso eu disse que Cox, que muito aprecio, é pós-marxista e neo-gramsciano, ao passo que Wallerstein, que não me interessa, é neomarxista).
Não gosto nada da frase "como as coisas andam é preciso querer negar muito a realidade para não ser marxista light", porque é muito arrogante. Há pós-marxistas (como o Cox) que são muito interessantes, e aqueles a quem eu chamei marxistas soft têm tanto direito como o País Relativo a reclamar-se da "realidade".

2. "De acordo com a recente biografia de Francis Wheen, o próprio Karl Marx era um marxista light. Orgulhoso e pop."

Não gostei nada da biografia de Francis Wheen, que aliás deixei a meio embora tencione retomar. Pareceu-me uma grande aldrabice. Muito pop mesmo. Não acho que o Marx fosse assim tão light. Suspeito que vocês acabem por romantizar excessivamente a personagem Marx, o que é uma forma, voluntária ou involuntária, de o domesticar politicamente (é assim como pôr a efígie do Che num relógio da Swatch).

3. "O exercício tipológico contém uma denegação irrecusável da cidadania discursiva do objecto. O que esta bela frase quer dizer é que não aceitamos ser metidos em gaiolas com vizinhos marxistas que não conhecemos, não queremos conhecer e não escolhemos."

Claro: era uma boca.

4. "Discordamos do uso dado pelo Ivan à categoria «light». Fiorella Manoia, cantautora gauche italiana, já tinha avisado: «Il cacciatore uccide sempre per giocare». E nós não queremos ser as vítimas cinegéticas da montaria do Ivan. O que se entende por marxismo light? Existe uma gradação numa variável que é contínua, ou existe uma diferença qualitativa?"

A parte em italiano não percebi e não tenho dicionário. A palavra cinegética também não percebi (e também não tenho dicionário). Pensando nisso, sim, acho que há uma gradação: quanto mais light, mais longe da leitura de Marx. Acho que podia explicar o «marxismo» de Held ou de Giddens mais ou menos assim: leram Marx mas isso não lhes conformou especialmente a maneira de ver o mundo, é apenas um autor entre muitos e muitos outros. O Marx no mesmo pé que o Rawls ou o Habermas, por exemplo. O Pedro, que eu já conheço há muitos anos, sempre foi assim. Lembro-me de que numa das primeiras conversas que tivemos, em 1995, eu comentei que o Gellner (acabadinho de morrer) era um liberal interessante porque conhecia bem o marxismo, e o Pedro riu-se porque achou que isso não era critério para classificar um autor - como se ter estudado bem Marx fosse o teste decisivo. Na altura eu achava, e em certa medida continuo a achar, que ter lido Marx e isso ter causado um impacto no pensamento fazia uma grande diferença. Entre os sociólogos portugueses que nós estudávamos, havia uma grande diferença entre os que tinham mesmo estudado o Marx - BSS, Augusto Santos Silva, José Luís Garcia - e aqueles para quem o Marx era essencialmente estranho. Mas vou dar um exemplo de um óptimo cientista social, que eu prezo, e a quem o Marx é essencialmente estranho: o Pedro Magalhães.

5. "«Toda a vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem a teoria ao misticismo encontram a sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática.» Um gajo lê isto (tese VIII) e fica obrigatoriamente preocupado essencialmente com a agenda diária."

Bem, não vou discutir as Teses sobre Feuerbach, mas esta interpretação é uma tolice. Há uma diferença entre a "prática" e a "agenda do dia" (o que eles chamam os "positivismos").

6. "O nosso Giddens - podem saltar este ponto."

Pois, o ponto sobre o Giddens é um bocado enfadonho. São factos, não há muito a dizer. No entanto, eu sou céptico já em relação a Consequências da Modernidade (1990) e não acho que Reflexive Modernization (1994) tenha nada de muito novo ou interessante (já está inundado de uma teoria abstrusa sobre a "tradição"). Depois disso é o descalabro, repito, intelectualmente o descalabro. Acho que já escrevi isto: consta que o homem não escreve os livros, dita-os.

7. "Gostamos do jovem Marx da Questão Judaica. O Marx marcadamente hegeliano, que vê no Estado a actualidade da ideia ética e o único mecanismo de superação da conflitualidade entre família e sociedade civil. Gostamos do Marx que faz o panegírico da burguesia e das revoluções liberais e que vê naquela o único motor verdadeiramente progressista da história, que é também a história da luta de classes."

Lamento dizer: A Questão Judaica beats me. Embora impressionem os elogios de Marx à burguesia revolucionária, penso que há uma certa moda que vai a caminho de descontextualizar estes elogios. Está a criar-se um heroi pop, conforme o ponto 2, e cheira-me que isso não é muito rigoroso.

8. Aquilo que o País Relativo reclama da herança de Marx é um programa progressista vago:

"Fazer das pessoas cidadãos de corpo inteiro, libertá-las das grilhetas da ignorância, desigualdade e fanatismo religioso que as mantinham presas à terra."

Para isto suponho que Marx não é necessário; houve tantos socialistas na História.
A citação do L. Cohen não deve ser para mim, que estudo relações internacionais (quer dizer, guerras e bombas na maior parte dos casos entre países) e que sou gozado na blogosfera por transcrever citações do Nelson Rodrigues e dizer que em certas quantidades aprecio a misogenia.

9. "Gostamos do Engels e dos marxistas críticos de Marx, do Bernstein e do Gramsci, ah! e dos Situacionistas (Boredom is always counterrevolutionary!). Não gostamos dos marxismos com hífen, é sempre a piorar."

NS/NR

11. "Tudo o que os marxistas têm feito até agora é interpretar Marx de maneiras diferentes, o importante é recuperá-lo."

I beg your pardon: como é que vão recuperá-lo sem o interpretar? Estão à espera da Sua Segunda Vinda?

PS. Tinha acabado de obter a autorização do Mexia para não ser visto como um marxista, e a primeira coisa que me acontece a seguir é meter-me numa destas discussões esotéricas que são a marca distintiva de qualquer marxista. Olha, às tantas sou, que se lixe.
 

segunda-feira, setembro 08, 2003

O Revolucionário-chui
O Vianinha nega, de alto a baixo, o meu teatro. E por que o nega? É simples: - porque eu não faço propaganda política, porque eu não engulo a arte sectária. Em suma: - o Vianinha queria que o Boca de Ouro parasse a peça e apresentasse um atestado de ideologia. Mas ele quer mais. Não basta o personagem. Exige também do autor o mesmo atestado. A minha vontade é perguntar ao Vianinha: - "Ô, rapaz! Você é revolucionário ou «tira»?"

[Nelson Rodrigues, texto de 14 de abril de 1961, citado por Ruy Castro, op. cit., p.320].
 
Parabéns pelo post
 
O insone ideológico
Será que já fiquei um bocadinho mais de esquerda com o post anterior?
Espero que sim. Estou farto de dormir mal.
 
Douta vigarice
A propósito de blogs sérios, quem tem pachorra para a teoria da conspiração trotsquista com que o Pacheco se propõe revelar a verdadeira natureza do Bloco de Esquerda? Com ela fundamenta a ideia de que o BE e os neonazis são, no essencial, equivalentes.
A que pretexto é que diz que o PSR tem um símbolo para consumo interno e outro - o sinistro quatro por cima da foice e do martelo, por supuesto o verdadeiro - para consumo internacional?
A foice e o martelo com o 4 em cima compunham efectivamente o símbolo do PSR até 1992 e são ainda hoje o símbolo da IV Internacional de que o PSR faz parte. A pertença à IV Internacional é pública: o Pacheco «descobriu-a» em documentos oficiais que estão online. Dentro da IV Internacional há partidos com o símbolo clássico do trotsquismo e outros com os mais variados, frequentemente à volta da estrelinha.
E por que é que devemos acreditar que a verdade sobre o Bloco de Esquerda se encontra nos documentos do PSR e não no comportamento do Bloco? Como é que o Pacheco prova que é uma força internacional obscura, e não as pressões eleitorais a que se sujeita uma força parlamentar como outra qualquer, que determina a agenda do Bloco de Esquerda?
Acha que o BE está no fundo a organizar subrepticiamente a revolução conduzida à força fora do Parlamento? Com que forças, o apoio de quem? Do radical chic?
E, se procura trazer à transparência tantas genealogias escondidas, por que é que não é mais reflexivo sobre a sua própria relação com o marxismo-leninismo? Como foi? Porquê? Até quando? Quantos anos depois de 1974? Com que idade? E deixou marcas ou limpou tudo como se nunca tivesse acontecido?

Ah!, e eu também tenho uma boa tese: no essencial dos seus mecanismos mentais, o Pacheco permanece um maoísta. Agora, seguindo o seu belo estilo, digo-vos que quando tiver tempo e paciência fundamento esta ideia. Mas eu sei.
 
Tipologia de marxismos


Dá nisto a idade: dou por mim no carro a ouvir over and over o Sinatra a cantar (e eu com ele) o Strangers in the Night. Deve ser por isso que consta na blogosfera - não na séria, claro, apenas na fútil, na que se permite ir à fnac do chiado e almoçar em grupo perto da Artilharia Um - que eu já não sou de esquerda.
Por causa da Praia, deixei de ser marxista e passei a "quando muito um marxiano". As subtilezas dos marxismos merecem, precisam, de subtis e científicas tipologias: estou sempre a tentar inventar novas para iluminar os meus alunos. Nas matérias que eu dou, há os neo-marxistas, como Wallerstein e toda a rapaziada da dependência e do sistema-mundo (de Gunder Frank a Arrighi). São os que continuam a trabalhar basicamente com as categorias teóricas do marxismo clássico (e isto quer dizer provavelmente mais Lenine do que Marx). Com estes não tenho absolutamente nada a ver: para pesar de Meu Pai, nunca li Lenine. Depois há os pós-marxistas, como o Robert Cox, que utilizam apenas uma parte dos conceitos de Marx e deitam fora muitos outros; no caso do Cox, é pós-marxista porque é neo-gramsciano. Gramo à brava, mas é areia demais para a minha camioneta. A seguir há os marxistas soft, como o Boaventura Sousa Santos ou o Zygmunt Bauman: não fazem a menor intenção de continuar a trabalhar dentro da tradição do marxismo, mas obviamente continuam a achar muitas das ideias dessa tradição inspiradoras. Embora não trabalhem infinitamente categorias já centenárias, têm ainda assim uma ortodoxia própria. E dão-me uma certa nostalgia do esforço conceptual que os pós e os neo fazem, ao procurarem trabalhar no interior do marxismo. Em suma, às vezes parece-me que têm os inconvenientes mas perderam as vantagens. São para mim, claro, leituras próximas.
Depois há os marxistas light, como o Giddens até aos anos 1980 (não agora, de maneira nenhuma) ou o David Held: leram o seu Marx mas estão demasiado preocupados com a agenda do dia. São o País Relativo da teoria.
Por fim há os ultra-light: do marxismo clássico mantêm algum jargão, mas não têm tempo para ler livros antigos: Le Monde Diplomatique e milhões de sucedâneos que, por boa educação, não vou indicar precisamente. Destes gosto menos do que de todos.
Fora disto, há indivíduos que, quanto mais não fosse pelo contexto social em que foram nados e criados, nunca tiveram cabeça para partido - donde, ficaram fora do marxismo logo na condição nº1 -, mas ainda assim acham que aprenderam mais com o Marx do que com muitas outras leituras. É o caso de EH Carr, que de propriamente marxista não tem nada. Talvez fosse o caso do autor da Praia, se ele se tivesse dedicado a tantas leituras como os seus alunos por vezes parecem acreditar - alunos que ele poucas vezes desengana.
 

sábado, setembro 06, 2003

Bandeira Vermelha
Teme-se que na Praia possam surgir em breve novas e gigantescas vagas de narcisismo rememorativo. Passei o serão com um amigo que, por alguma razão, se presta a sessões destas. Reconstituí toda a minha vida política entre 1991 e 1995. Não é disparate dizer, como disse na altura, que me reformei da política aos 22 anos. Já não pensava no assunto há muito tempo e há muitas coisas que me apetece lembrar. Foi noutra vida. Banhistas menos experimentados devem estar prevenidos: ao visitar A Praia podem sentir-se tomados por ondas de irritação e impaciência.
 
A carne mais barata do mercado é a carne negra


[Obrigado ao Adeodato, mais santo e menos ignorante do que eu, graças a quem posso pela primeira vez pôr imagens na Praia].

No Rio, fui ao Teatro Rival ver o show de Elza Soares, "Do cóccix até o pescoço". Elza Soares é uma personagem trágica, de perto de setenta anos, corpo como se tivesse pouco mais de vinte, feito de muitas operações plásticas e uma flexibilidade incrível. Elza foi o grande amor de Garrincha, o herói do futebol brasileiro que morreu em 1983 com 49 anos na miséria e inundado pelo álcool. Elza nasceu na favela, engravidou por violação aos 12 anos, perdeu os três primeiros filhos no parto e teve outros quatro antes dos 25. O seu filho com Garrincha morreu também, em 1985, aos nove anos. Noutra altura quero voltar a falar aqui dos dois.
Penso que Elza Soares é geralmente desconhecida em Portugal. É uma cantora fantástica, que os que gostam do Caetano podem recordar da participação no "Língua", num dos melhores álbuns dele, Velô. A cara de Elza tem as marcas da tragédia. Nas duas primeiras músicas do show, estive estupefacto pelo choque, sem saber como reagir. Só depois percebi que a sua pele repuxada pelas plásticas não é tanto um símbolo de futilidade miserável como de resistência obstinada de uma certa concepção de beleza contra toda a morte e todo o sofrimento. Resistente e provocadora.
O título do cd e do show é retirado de uma música que Caetano fez propositadamente para este disco. Tanto o poema como a música são tipicamente Caetano Veloso; não poderiam ter sido escritas por mais ninguém.

o ciúme dói nos cotovelos
na raiz dos cabelos
gela a sola dos pés
faz os músculos ficarem moles
e o estômago vão
e sem fome

dói da flor da pele ao pó do osso
rói do cóccix até o pescoço

acende uma luz branca em seu umbigo
você ama o inimigo
e se torna inimigo do amor
o ciúme dói do leito à margem
dói pra fora na paisagem
arde ao sol do fim do dia

corre pelas veias na ramagem
atravessa a voz e a melodia

[Caetano Veloso, "Dor de cotovelo"]
 

quinta-feira, setembro 04, 2003

Embebede-se
O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação.
Se um homem escreve bem só quando está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.

[entrada do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, ed. Assírio e Alvim, p.254].
 
Precisas de ter razão
Parental advisory: these lyrics contain certain words that some people may find offensive.

O título "consolida, consolida", que o meu amigo Pedro Adão e Silva deu a um post publicado esta tarde, remete para um texto a que, pelas minhas contas, a blogosfera portuguesa ainda não fez referência, e a que devia - o "FMI" do José Mário Branco. Não estou realmente a ver o Mexia ou o Lomba a terem esse texto assim de cabeça, e talvez a maior parte da esquerda da blogosfera seja demasiado bem comportada para a ter convocado - umbiguista, sim, pessoal, excessiva, exagerada, violenta. No entanto, perdíamos todos, e até a direita da blogosfera, se não lhe dessemos suficiente atenção. JMB escreveu o texto em Fevereiro de 1979 e leu-o num espectáculo ao vivo, se não estou em erro dois anos mais tarde, que está editado em cd com o álbum "Ser solid/tário". É uma extraordinária catarse pessoal do período da revolução, que cospe para a esquerda e para a direita, contra as regras, a ortodoxia, o autoritarismo, depois de JMB ter sido expulso da UDP e, se não estou em erro, depois de lhe ter morrido a mãe. É meia hora de texto dito, que começa em tom de trocadilho e sátira ao FMI e ao refluxo pós-revolucionário

Saímos à rua de cravo na mão... sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, n'é filho? Consolida, filho, consolida...

passa pelo desprezo face aos funcionários dos partidos "organizadores" da revolução

Sempre a merda do futuro! E eu, que me quilhe? Pois, pá: sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu, hã? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá - e eu? José Mário Branco. 37 anos. Isto é que é uma porra! Anda aqui um gajo cheio de boas-intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo - e depois? É só porrada e mal-viver, é? «O menino é mal-criado... O menino é pequeno-burguês... O menino pertence a uma classe sem futuro histórico...» Eu sou parvo, ou quê? Quero ser feliz, porra! Quero ser feliz agora. Que se foda o futuro! Que se foda o progresso! Mais vale só do que mal acompanhado! Vá, mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa!... Filhos da puta de progressistas, o caralho da revolução que vos foda a todos!

e termina na comoção da derrota do PREC

Eu quero ficar sozinho. Mãe, eu não quero pensar mais. Mãe, eu quero morrer, mãe... eu quero des-nascer... ir-me embora, sem sequer ter que me ir embora...

e no desejo de fazer alguma coisa diferente

Lembrar o "Depois do Adeus" e o frágil e ingénuo cravo da rua do Arsenal... lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição... Partir aqui, com a ciência toda do passado. (...) Assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar, gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes...

Quando comecei este blog, o Mexia saudou-me, com palavras simpáticas, como "um marxista" (tolice) que para variar se afirma na primeira pessoa. E eu pensei que tolice, que tantos marxistas a sério (a começar pelo próprio, tantas vezes) falaram e pensaram e se afirmaram na primeira pessoa; mas também pensei se a derrota actual da esquerda não teria começado aí, pelo medo de errar, de ser subjectivo, parcial, desadequado, errado.
Precisas de ter razão...

Sou português. Pequeno-burguês de origem. Filho de professores primários. Artista de variedades. Compositor popular. Aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto. Muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim - para cantar, e para o resto.
 
Quando me aconteceu o mesmo
Feliz ou infelizmente, nem sempre sabemos o país (ou o mundo) em que vivemos. Peguei em A Bola no café e abriu-se uma janela para uma realidade que de outra forma eu desconheceria: Santana Lopes, o da Câmara de Lisboa, o que espalhou uns cartazes na primeira pessoa para o nosso regresso de férias, assina nesse diário desportivo uma página com o subtil título de Politicamente Desportivo. Essa página divide-se em três escrupulosas secções: "análise", "comentário" e "recado". Transcrevo, com vénia, a secção "recado":

O desta semana, se ele me permite, vai para o director deste jornal, Vítor Serpa, que vive um momento difícil pela perda da Senhora Sua Mãe [sic]. No momento em que o primeiro responsável por esta publicação atravessa um momento [sic] tão doloroso devemos-lhe todos palavras de solidariedade e de amizade. Quando me aconteceu o mesmo [sic] senti bem a sua inesquecível presença e o seu grande apoio. Que Deus tenha junto de si, que Deus dê o eterno descanso à alma da mãe do director de A BOLA. O nosso público pesar para ele e para seu pai, Homero Serpa.
 

quarta-feira, setembro 03, 2003

Defesa do Preconceito
Estava a falar com a Joana sobre o Nelson Rodrigues e comentei que talvez o Nelson Rodrigues seja predominantemente uma coisa de homens - embora A Menina sem Estrela seja uma obra de arte universal. E ela confirmou que, pelas citações que eu tenho feito, às vezes lhe parece um assunto de homens - misóginos.
Há algumas diferenças entre eu quando era jovem e eu hoje. Uma das mais importantes é provavelmente esta: há dez anos atrás eu não acreditava em qualquer distinção fundamental entre homens e mulheres. Fui educado assim e presumo que o que tinha vivido não me levava a pensar diferente. Hoje, é quase o contrário: não acredito em praticamente nenhuma distinção fundamental entre os seres humanos que não seja a de sexo. (Por conseguinte, não lhe chamo de "género"). Pratico a misoginia com gosto, embora (espero) com moderação e ironia.
A misogenia não é, certamente, não gostar de mulheres, mas preservar ciosamente alguns preconceitos em relação a elas.
Aliás, de uma forma mais geral - e nisto eu já era assim há dez anos, embora sem grande consciência disso -, considero o preconceito uma das armas mais importantes da inteligência. O preconceito simplifica o mundo e, nessa simplificação, permite ver coisas que o não-preconceito insiste em negar. Além de que um preconceito consciente de si mesmo é sempre um preconceito precavido e auto-irónico, ao passo que o não-preconceito é um dogmatismo cego.
Como toda a gente sabe, os fanáticos do despreconceito tendem a ser chatos e burros. (Ora aí está uma bela operacionalização do que estava a dizer).

A propósito, em resposta a um tipicamente inteligente inquérito jornalístico da revista Manchete sobre "a mulher ideal", em 1957 (45 anos), Nelson Rodrigues disse:
P. Acredita na diferença intelectual entre os sexos?
R. A mulher nunca precisa de inteligência.
P. Nos seus bate-papos diários depois do trabalho, prefere a presença dos homens ou das mulheres?
R. Acho o homem extremamente desagradável.

P.S. Podem chatear-me o que quiserem sobre este assunto. Agradeço no entanto que não me escrevam a dizer que eu acho que as mulheres são, ou devem ser, burras.
 
Futebol relacional
O Murta é o primeiro dos meus amigos que se casa - e eu tenho trinta anos. Tenho amigos casados, é certo, tenho também amigos divorciados, mas nenhum - tirando o meu cunhado, que como se casou dentro da minha família não conta - que se tenha casado enquanto era amigo. O Murta vai dar cabo da estatística.
Mas ao menos fá-lo em estilo - literário. Mandou-me o seguinte texto e (provando que é mesmo meu amigo) autorizou-me a reproduzi-lo aqui.
Então aqui vai, com o orgulho com que eu sempre transcrevo os textos de que gosto e mais ainda quando foram escritos por amigos meus. Reparem:

Como saberás, no início de Outubro terá lugar em Santa Margherita, Itália, um acontecimento da maior importância ao qual não deves faltar sob pretexto algum. Trata-se de uma data fundamental, com especial importância para mim. O local já está marcado e todos devem vir vestidos a rigor. Será uma ocasião simples, mas altamente simbólica. Arranjámos mesmo um tipo vestido de preto para presidir ao ritual. Depois, vai ser até partir. Adivinhaste, cara amiga, caro amigo: falo do grande jogo de futebol que vai ter lugar dia 4 de Outubro, pelas cinco ou pelas seis da tarde, no pavilhão do Istituto Colombo.
Como o casamento, a grande futebolada de dia 4 tem um enorme alcance simbólico. Rito de retorno à infância e encenação catártica de campo de batalha, o prélio permitirá pôr face a face uma série de identidades conflituais que habitam os convidados do nosso casamento: portugueses contra italianos; portugueses contra franceses; italianos contra franceses; homens contra mulheres; solteiros contra casados; divorciados contra solteiros e casados; laicos contra eclesiásticos; ateus contra crentes; crentes católicos contra crentes de outras religiões; todos contra todos; e, finalmente, a partida que eu aguardo especialmente, quando já estivermos todos a cair para o lado: o irmão do noivo contra o irmão da noiva.
Na verdade, o terreno do Instituto Colombo vai tornar-se um marco conceptual na história do futebol. Será a primeira partida de futebol relacional. Com efeito, o futebol, tal como o entendemos hoje, ainda não saiu da infância, marcada pelo paradigma da modernidade. Este velho futebol, em que duas equipas se opõem de maneira estável e irreversível ao longo de 90 minutos, está preso aos velhos princípios da identidade e da não contradição. O novo futebol que nasce a 4 de Outubro é o do ser humano relacional, habitado pelas suas contradições e as suas diversas identidades. Esta pessoa complexa joga um futebol complexo, em que a baliza que defende num momento pode tornar-se aquela em vai tentar marcar golo no momento seguinte. Assim, por exemplo, um português que seja ao mesmo tempo ateu e casado tenderá a jogar ao lado dos portugueses na partida que o opõe aos italianos. No entanto, a sua identidade ateia fá-lo-á jogar também contra os católicos, os quais, se forem portugueses, passam a ser seus adversários. E enquanto casado, ele volta a jogar noutra equipa, juntando-se aos casados de outros credos e nações. Como na vida, cada jogador disputará várias partidas ao mesmo tempo. O terreno de jogo será ele próprio. Uma vez interiorizado este princípio, os jogadores poderão ir ainda mais longe. A minha parte que é de esquerda alinhará contra os convidados de direita, mas poderá mudar de campo em tal ou tal jogada, por influência de uma pequena costela conservadora. O mesmo para o meu princípio activo feminino, que pode, a certo momento fintar o meu lado (apesar de tudo predominante) masculino.
O futebol relacional parece uma utopia, mas não é. Exige mais de cada um de nós, mas é o único capaz de lidar de forma realista com uma psicologia humana avançada. Naquele dia histórico, o futebol será verdadeiramente um jogo universal e nós seremos, todos juntos, os parteiros da mudança.

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