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A Praia

«I try to be as progressive as I can possibly be, as long as I don't have to try too hard.» (Lou Reed)

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sexta-feira, outubro 31, 2003

Dogville


Já haveria maniqueísmo nos dois filmes de Lars von Trier de que gostei muito - admito que sim - e no entanto eram duas obras-primas. Dancer in the Dark e Breaking the Waves eram duas histórias do bem contra o mal, do amor contra a maldade. Dogville também o é. Uma foragida pede acolhimento numa pequena aldeia. Não exige absolutamente nada. Dispõe-se a ajudar no que for preciso. E a aldeia, embora desconfiada a princípio, vai acolhendo a estrangeira e integrando-a. Até que, progressivamente, começa a maltratá-la e a abusar dela. Vejo aqui dois temas importantes: 1. de como as pessoas podem ser particularmente cruéis com aqueles que são bons, na medida em que os que são infinitamente bons não impõem um limite, não oferecem uma resistência, a alteridade de que mais ou menos todos precisamos; e 2. de como a maldade encarna com frequência as vestes do maior moralismo, assume a postura da superioridade moral e, portanto, da maior hipocrisia.
Dogville é, além disso, um filme sobre a América, o que - não fosse dar-se o caso de o espectador ter estado distraído - é sublinhado de forma insistente no genérico final, com as (excelentes) fotografias em que não falta sequer Nixon, e com David Bowie a cantar "Young Americans". É sobre a América como encarnação de uma atitude self-rigteous, moralista, que ao mesmo tempo se permite a si própria a maior crueldade. Suponho que também se podia dizer que é um filme sobre o protestantismo, sobre a América WASP, e o próprio Lars von Trier sublinha isso quando diz que está a tornar-se católico.
Mas estará? A meu ver, o filme é totalmente desprezível, porque os personagens - em particular os maus - não têm nenhuma espécie de ambiguidade moral. O filme é uma condenação daquela humanidade, porque não admite que aquelas maldades estejam presentes, de maior ou menor forma, em todas as pessoas. O que, por exemplo, em Nelson Rodrigues - que em certa medida aborda temas parecidos - é compreensão da ambiguidade e das sombras que habitam, involuntária e inconscientemente, as cabeças das pessoas, no caso de von Trier é apenas a maldade dos outros - no caso, especialmente, dos americanos. Suponho que o filme agrada a muitas pessoas porque não há nada mais confortável do que esta condenação da maldade dos outros (esses filhos-da-puta, na expressão popular). O filme não sugere, nem sequer permite, que o espectador jamais se coloque do ponto de vista dos maus.
Por fim, a solução final, apocalíptica, tratando-se de um filme sobre a América, aparece aos meus olhos - que não sou um paranóico do anti-terrorismo - como uma apologia do 11 de Setembro. Nesse sentido, tendo a concordar com Augusto Seabra, cujo texto no Público inicialmente (antes de ver o filme) me pareceu uma acumulação disparatada de adjectivos. Uma vez que não se vê o menor distanciamento em relação à solução que finalmente Grace adopta, a moral do filme é repugnante. Espanta-me que os profissionais da indignação contra o terrorismo, os anti-anti-americanismo, ainda não tenham dito nada sobre isto.
 

quinta-feira, outubro 30, 2003

30 anos
Aos 30, resta-me tentar contrabalançar com o optimismo da razão o inescapável pessimismo da vontade.
 
Sempre Coen


Acho que Crueldade Intolerável é ao mesmo tempo a favor do casamento e do divórcio.
[Ethan Coen]

A minha história com os Coen, como quase todas as histórias de que gosto, começa na segunda metade da década de oitenta (neste caso, em 1989), quando vi Miller's Crossing. Contar isto não vem a propósito, a não ser pelo gosto obsessivo de lembrar coisas desse tempo. Na altura eu não tinha nenhuma ideia de quem eram os Coen. O filme, que se chamava em português História de Gangsters e tinha como actor principal Gabriel Byrne, impressionou-me imenso. Talvez tenha sido mesmo uma das primeiras vezes em que me dei conta de que estava a desenvolver um gosto inteiramente estético, predominantemente visual, pelo cinema. Não era o tema que era bom - era o filme. Tinha dezasseis anos e fiquei bastante feliz com a descoberta.
Com os filmes posteriores os Coen nunca me decepcionaram - embora Barton Fink (1991) me tivesse parecido demasiado ocupado em encher o olho do espectador e só Fargo (1996) fosse, a meu ver, uma autêntica obra-prima (realização, diálogos e fotografia). Bem sei que uma obra-prima já é muito, mas fico geralmente com a sensação de que os Coen têm talento para mais do que aquilo que fazem.
Visto por esse prisma, Crueldade Intolerável também é assim. Mas eu, pela crítica e pelas imagens de televisão, tinha sido levado a pensar que o filme era uma comédia romântica com George Clooney e Catherine Zeta-Jones, que, mais ou menos por acaso, pelo meio, teria uns pozinhos de Coen. Nada disso: é um Coen inteiro, na linha de The Big Lebowsky (1998). Respeitando a estrutura simples da comédia romântica, é muito divertido, inteiramente nonsense, delirante - e os dois actores (sobretudo ele) encaixam muito bem.
 
Lomba no DN
Só agora li o texto do Pedro Lomba no Diário de Notícias desta semana. Muito inspirado, muito divertido: o texto e os dois kalkitos.
 
O narcisista dependente


O mais curioso na megalomania narcísica é o facto de, apesar de o sujeito se afirmar como o centro do mundo, ser totalmente dependente e vulnerável em relação à confirmação pelos outros do seu narcisismo. Isso vê-se no Calvin, como se vê no Nelson Rodrigues e em outros lados.
 
Trabalhar para o baú
Passou-se um agradável final de tarde no São Luís, no «É a cultura, estúpido!». Impressionou-me particularmente - adivinhem - o Pedro Mexia. O Mexia, pelo que tenho visto, tem por regra não falar de improviso, mas ler em público textos escritos. Há anos que defendo que textos bem escritos e bem lidos são preferíveis a improvisações inspiradas, contra o que é o consenso generalizado. Pelos vistos, o Mexia não transige - e pode fazê-lo porque escreve com grande clareza. Começou por falar de O Senhor Henri, de Gonçalo Tavares, e do último livro de Jorge Gomes Miranda, naquele tom muito sério e muito claro que caracteriza as recensões que lhe tenho lido no Diário de Notícias. Mas teve sobretudo graça quando depois falou de dois livros que não leu: as Incursões Literárias, de Mário Soares, e o Sulistas, Elitistas e Liberais q.b., de Luís Filipe Menezes. No caso de Menezes, foi um exercício de escrita com graça, embora, por virtude do assunto, fácil; no caso de Soares, para além da graça foi uma desmontagem muito eficaz e certeira do mito balofo do «Soares culto». O público riu abundantemente - e o José Mário Silva pagou a pesada factura de ter de falar a seguir ao Mexia, o que naquelas circunstâncias era quase impossível.
Perguntei depois ao Mexia o que é que ele ia fazer com o texto - escrito, insisto - sobre o Soares e o Menezes, e ele disse-me que nada, não vai publicar. O que confirma o que eu já suspeitava: o homem tem tanto talento que se dá ao luxo de deixar esquecidos óptimos textos que tem, enquanto outros desgraçados, como eu, veneram e cultivam cada linha que escrevem como se fossem plantas delicadas a precisar de ar e de luz.
 

quarta-feira, outubro 29, 2003

Alegria
Muito me têm dito que eu sou vaidoso, sobretudo desde que comecei o blog. É verdade: envaidecem-me estes três posts.
 

terça-feira, outubro 28, 2003

Garrincha
(ao Cristóvão de Moura)



Faz hoje 70 anos que Mané Garrincha nasceu.

Quando Manuel Francisco dos Santos nasceu em 28 de outubro de 1933, a parteira notou que as pernas do bebê eram tortas. Sua perna esquerda era curvada para fora e a direita curvada para dentro. Com o tratamento ortopédico adequado, suas pernas poderiam ter se endireitado em pouco tempo. Mas estávamos em Pau Grande, uma cidadezinha limitada em matéria de médicos especialistas e ainda mais limitada em matéria de expectativas paternas. Manuel - Mané - cresceu como se um golpe de vento tivesse soprado suas pernas para o lado, como num desenho animado, deixando os membros desfigurados em curvas paralelas.
Pau Grande pode estar a apenas setenta quilômetros do Rio de Janeiro, mas em 1940 era um outro mundo - um paraíso campestre, aninhado entre montanhas e rodeado de rios, cachoeiras e florestas. Mané era um doce menino. Pequeno como uma garrincha, dizia sua irmã mais velha Rosa, e o apelido pegou. Mais tarde seria comparado a um passarinho pela maneira como passava voando pelos zagueiros. Durante a infância tinha uma relação diferente com seus amigos emplumados - gostava de matá-los. Garrincha passou a juventude caçando, pescando, transando e jogando futebol. Demonstrava um talento intuitivo para as quatro atividades.
Por causa de seu alinhamento especial, Garrincha era capaz de se mover em direções imprevisíveis. Também possuía uma aceleração excepcional. Combinando ambas, desenvolveu um drible imarcável, e logo se tornou o melhor jogador da cidade. Aos 14 anos, começou a trabalhar na fábrica de tecidos local, como faziam todos em Pau Grande. Mas Garrincha era um empregado pavoroso. Foi demitido por preguiça e somente readmitido porque o presidente do clube de futebol da fábrica - o Esporte Clube Pau Grande - o queria no time.
(...) Garrincha foi o jogador, segundo o dramaturgo Nelson Rodrigues, que ensinou a torcida a rir. Seu jeito de palhaço no campo talvez seja melhor ilustrado pela ocasião em que, diante do gol vazio, preferiu continuar driblando. Garrincha tinha passado por três defensores e driblado o goleiro. Mas, ao invés de marcar, esperou que um zagueiro voltasse. Garrincha desviou o corpo e o adversário teve que se segurar no poste para não cair. Então ele entrou com bola e tudo. Fez uma embaixada, colocou a bola debaixo do braço e voltou passeando para o centro do campo.
O jogo era um amistoso entre o Brasil e a Fiorentina de Itália, último compromisso do Brasil antes da Copa de 1958 na Suécia. Quando Garrincha fez o gol, o estádio caiu no silêncio, não fosse pelos gritos de seus conterrâneos. De raiva. Estavam apavorados: tamanha irresponsabilidade podia custar caro num jogo decisivo.
(...) Por volta de 1958 o Brasil sentia a pressão de seu potencial não realizado. O país ainda não tinha vencido uma Copa do Mundo. Tanto em 1950 como em 1954 haviam perdido por fragilidade emocional no momento crucial - primeiro contra os corajosos uruguaios e depois contra os violentos húngaros. Em 1958 a comissão técnica introduziu um psicólogo para certificar-se de que o time estava mentalmente preparado. Os testes forneceram uma base pseudo-científica para as brincadeiras de Garrincha. Seu nível de agressividade era zero e ele tinha inteligência abaixo da média - sua pontuação não era suficiente nem para motorista de ônibus. (Nos mesmos testes, Pelé foi considerado «obviamente infantil», desprovido do senso de responsabilidade necessário para o espírito da equipe. Mas para ele havia uma desculpa. Tinha apenas 17 anos.)
(...) Garrincha não jogou as duas primeiras partidas, uma vitória de 3x0 sobre a Áustria e um empate sem gols contra a Inglaterra. Pelé também não. O terceiro jogo era contra a URSS. Estávamos na época do satélite Sputnik. A propaganda da guerra fria gerou um medo dos métodos «científicos» dos soviéticos. Vicente Feola, o treinador, mexeu na escalação do time e lançou suas armas secretas.
Logo depois do pontapé inicial, Garrincha disparou como um míssil contra a defesa soviética. Depois de quarenta segundos de dribles hipnotizantes, chutou na trave. Antes do primeiro minuto, Pelé também acertou a trave, depois de um passe de Garrincha. A blitz dos primeiros três minutos, terminando com um gol de Vavá, demonstrou uma audácia e habilidade jamais vistas no futebol internacional. Muitos consideram que foram os três minutos mais espetaculares do futebol brasileiro em todos os tempos.
(...) Em 1962, Garrincha viveu seu momento de maior glória no futebol doméstico - o bicampeonato estadual pelo Botafogo. Era também o início do fim. As pernas tortas haviam sido sua força. Agora eram sua fraqueza. O modo pelo qual a tíbia encontrava o fêmur significava que a cada vez que ele fazia um giro de corpo a cartilagem do joelho ia rompendo, o que era um problema mesmo sem a violência causada pela vida esportiva. Primeiro disseram que precisava de uma operação, em 1959, mas ele decidiu não fazê-la. Sua rezadeira em Pau Grande tinha dito que se ele operasse jamais jogaria novamente.
Enquanto havia certo romantismo no fato de ser um espírito livre nos gramados, fora dele os amigos de Garrincha começavam a se preocupar com sua simplicidade. Sugeriram que contratasse um consultor financeiro. Dois funcionários do banco foram a sua casa em Pau Grande e ficaram chocados ao encontrar dinheiro apodrecendo nos armários da cozinha, atrás dos móveis e numa fruteira. Sua casa era um pardieiro. O bicampeão do mundo vivia nas mesmas condições de um operário miserável.
O Botafogo tinha se aproveitado da ingenuidade de Garrincha. Os dirigentes sempre fizeram com que assinasse contratos em branco, que preenchiam com os salários mais baixos possíveis. Também prometeram dinheiro que nunca foi pago. Garrincha era o principal produto de venda do clube, e ainda assim não ganhava tanto quanto seus companheiros. Quando reclamava, a torcida virava-se contra ele, acusando-o de individualista e mercenário.
Havia outra complicação: as mulheres. Garrincha casou-se aos 18 anos - antes de assinar com o Botafogo. Sua esposa, Nair, era uma operária de fábrica, de aparência comum, cuja gravidez forçara o casamento. Ignorante e sem aspirações, ela se distinguiu em uma atividade: filhas. Nair deu à luz oito filhas dele em pouco mais de uma década. Enquanto ele ia para o Rio, ela ficava em Pau Grande.
(...) Além das filhas com Nair, ele teve mais duas crianças com uma antiga namorada de Pau Grande que ele sustentava no Rio e mais um filho na Suécia com uma garota local durante uma excursão do Botafogo. Também teve um caso com uma atriz que era a ex-amante do vice-presidente. Até que conheceu Elza Soares.
Em Elza, Garrincha encontrou sua alma-gêmea. Ela era uma conhecida cantora de samba, que, como ele, vinha de origem humilde. Ainda assim o momento foi de pouca sorte. Seu caso de amor coincidiu com as exigências de Garrincha ao Botafogo por salários mais altos. Quando o caso tornou-se público foi usado como prova de que ele era egoísta e interesseiro. Elza foi retratada como uma espertalhona do mundo artístico e destruidora de casamentos. A opinião pública virou-se contra o casal. Para sua própria segurança, o consultor de Garrincha o escondeu por uns tempos num sítio na periferia do Rio.
Mesmo assim Garrincha e Elza continuaram juntos. Para os anos 1960, eles eram o casal símbolo do Brasil, o país da improvisação e da musicalidade, do triunfo sobre as adversidades. Eram os maiores talentos nas coisas favoritas do país - futebol e samba.
Elza teve uma infância trágica em uma das favelas cariocas. Foi estuprada aos 12 anos e, por ter engravidado, forçada a se casar com o estuprador. Seus três primeiros filhos morreram ao nascer e ela teve outros quatro antes de completar 25 anos. Ainda assim Elza encontrou seu caminho graças à voz fenomenal. Aos 18 anos, venceu um concurso de rádio que a levou à carreira de cantora. Quando conheceu Garrincha já era uma estrela estabelecida e tinha cantado com Louis Armstrong.
Por volta de 1963 o joelho de Garrincha estava num estado tão ruim que ele era incapaz de disputar dois jogos seguidos. A cartilagem estilhaçada fazia com que inchasse de líquido, tornando necessário que fosse regularmente perfurado para drenagem. Médicos que o viram ficaram espantados que ainda estivesse jogando futebol. Mas tanto o atleta quanto o clube estavam satisfeitos em adiar a operação - o Botafogo precisava dele para garantir a receita de bilheteria e Garrincha sabia que se parasse por um tempo ficaria numa posição mais fraca para negociar. Acabou fazendo a operação, em 1964, porém nunca mais foi o mesmo jogador.
(...) Garrincha gostava de carros. E dirigia mal. Uma vez atropelou seu pai, e teve também um acidente com Elza em que ela perdeu vários dentes. Depois de voltar da Inglaterra [Copa do Mundo de 1966] ele foi dirigindo até Pau Grande com a mãe de Elza para encontrar as filhas. Na viagem de volta bateu num caminhão a 80 quilômetros por hora. O carro capotou. A sogra morreu.
O acidente fez com que entrasse em depressão. Garrincha tentou se matar com gás - uma das primeiras entre diversas tentativas de suicídio. Sua carreira de jogador tinha acabado e ele tinha matado a mãe da mulher que amava. E não ajudava em nada o fato de que bebia demais desde a juventude. Durante a carreira ele impressionava os colegas por sua capacidade, e pelo gosto, de se embriagar. Quando pendurou as chuteiras, o alcoolismo se agravou ainda mais.
(...) Sem rendimento nem poupança, Garrincha pediu à CBD um empréstimo para comprar uma casa. Foi recusado. No mesmo dia desapareceu e foi encontrado bêbado e chorando na porta de uma igreja no centro do Rio.
Elza achou que uma mudança de cenário talvez pudesse tirá-lo dessa. Os dois se mudaram para Roma. Elza conseguiu trabalho como cantora mas Garrincha não tinha nada a fazer exceto beber. Envergonhado demais para ficar filando cigarros, fumava guimbas apanhadas do chão. Finalmente, foi nomeado «embaixador do café» pelo Instituto Brasileiro do Café. Não era um trabalho difícil. Tudo que precisava fazer era comparecer a algumas feiras de comércio europeias e cumprimentar as pessoas no estande brasileiro. Falhou espetacularmente.
Um italiano em Bolonha perguntou: «Então, esse café brasileiro - é bom mesmo?»
Garrincha respondeu: «Não sei. Nunca bebi. Mas te digo uma coisa - a cachaça brasileira é fantástica.»
Na volta ao Brasil, Elza teve uma idéia para que Garrincha parasse de beber: eles teriam um filho. Manuel Garrincha dos Santos Júnior - Garrinchinha - nasceu em 9 de julho de 1976. Mas com um bebê na casa a situação ficou ainda pior. Garrincha começou a bater nela. Elza se mudou, temendo que ele ficasse violento com a criança. Depois de 15 anos juntos, a relação chegava ao fim.
Garrincha casou-se pela terceira vez. Sua nova mulher deu à luz mais uma filha sua, a décima. Mas seu comportamento não mudou. Em 19 de janeiro de 1983, Garrincha passou a manhã bebendo. Quando chegou em casa à tarde sentiu-se mal e foi deitar. Uma ambulância de uma clínica próxima foi chamada. Os médicos nem mesmo o reconheceram. Seu corpo estava inchado de álcool, irreconhecível em relação ao ágil atleta de sua juventude. Foi internado e depois transferido para um hospital psiquiátrico em coma alcoólica. Morreu às 6 horas da manhã seguinte.
Tinha 49 anos e deixou 13 filhos.
A tragédia o perseguiu além do túmulo. Seu filho com Elza, Garrinchinha, morreu dois anos depois, aos nove. Estava voltando de carona de uma partida de futebol quando o carro caiu num rio e ele se afogou. Era o mesmo trecho de estrada em que a mãe de Elza tinha morrido duas décadas antes.
Seu outro filho no Brasil, com a antiga namorada Iraci, tornou-se jogador. Neném começou no Fluminense e foi transferido para o Belenenses de Portugal. Acabou jogando na Suíça. Também morreu num acidente de carro em 1992, aos 28 anos.
Duas das oito filhas com Nair morreram de câncer com pouco mais de quarenta anos. As outras moram em Pau Grande e no Rio de Janeiro.
O único filho sobrevivente de Garrincha - de sua aventura sueca - se chama Ulf e vive em Halmstad, perto de Malmoe.

[Alex Bellos, 2002, Futebol - o Brasil em Campo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editores, pp. 89-97]

O resto do livro é tão bom como este excerto. Não vejo razões, que não a distracção dos editores, para que não seja publicado em Portugal. A Elza Soares já me tinha referido aqui.
 

domingo, outubro 26, 2003

O silêncio é bom para os outros
O caso da Casa Pia tem servido para algumas pessoas pensarem e dizerem coisas importantes; no meio de tudo, temos pelo menos o benefício de que muitas coisas que estavam por discutir são agora discutidas. Outros refugiam-se na "ausência de certezas" e no repúdio pela confusão para decretarem uma condenação do comportamento de todos, e de todos por igual. Diz Lomba:
"Todos se queixam. Ninguém assume o seu papel. Ninguém se coloca à altura. Estamos à mercê dos pequenos."
O efeito, pretendido ou não, da retórica do silêncio é impedir o julgamento crítico sobre o que se está a passar, a avaliação de quais são os comportamentos realmente condenáveis e quais o não são. Se Lomba deseja mesmo o silêncio, é livre de o praticar; mas a retórica do silêncio e da dúvida destina-se aos outros, não a nós mesmos.
De tudo o que saíu, destaco o texto do Daniel, que merecia uma audiência muito maior do que a dos blogs, e o do Pedro Magalhães.
 
Quem gosta da vida vai ao cinema


O King está a oferecer sessões de cinema às onze da manhã. Para mim, não foi uma experiência inédita. Em Bruxelas, em 1991, havia (não sei se ainda há) sessões de "pequeno-almoço no cinema" aos domingos, por volta das dez da manhã. Levantámo-nos às nove, mas não foi só isso: é que tínhamo-nos deitado às três da manhã por termos ido ao cinema. Bruxelas era uma espécie de paraíso do cinema, até porque é pequena e facilmente percorrível, e nós estávamos alojados numas águas furtadas na Grand Place (eu repito: na Grand Place).
Na véspera tínhamos ido ver uma porcaria - o Robin Hood do Kevin Costner - mas que eu achei que se aguentava muito bem porque o som era stereo surround, uma novidade para mim. E foi no Kinepolis, 27 salas de cinema no mesmo lugar, o que na altura para nós era praticamente inimaginável.
Às dez da manhã estávamos de novo no cinema, a tomar café com leite e torradas (ou pelo menos é assim que a minha cabeça o recorda), e depois a ver (mais uma vez) Os Fabulosos Irmãos Baker, com o Jeff Bridges, um dos meus actores preferidos, e a Michelle Pfeiffer, por quem tive durante muitos anos uma paixão insuperável. A sala estava cheia, com gente mais ou menos da nossa idade. A Pfeiffer era fantástica e cantava.
Lembro-me bem de sair da sala para o mundo pouco depois do meio-dia. Fomos passar o dia a Ostende, para ver o mar do norte de que falava o Brel. Não tinha interesse nenhum.

Uma vez, em 1994, fui entrevistado pela Catarina Portas para o Diário de Notícias. Era uma entrevista light, não para falar de política - embora o pretexto fosse o facto de eu ser candidato ao Parlamento Europeu -, com perguntas de algibeira. Lembro-me de às tantas ela me ter perguntado o que eu faria se tivesse apenas 24 horas de vida. O que me ocorreu envergonhou-me, porque o achei muito triste: ia ao cinema. Ela não achou triste e perguntou-me o que eu queria ver: eu respondi Da Vida das Marionetas, do Bergman, e Always, do Spielberg, dois filmes que eu nunca mais vi e que, agora que penso nisso, acentuam a tristeza da ideia.
Ir ao cinema directo depois de acordar e só depois enfrentar a vida é a coisa mais parecida que eu conheço com esse meu «último desejo».

Lembro-me também de em 1989 ter lido um texto de João Mário Grilo de que não retive mais nada senão isto: "Quem gosta da vida vai ao cinema, porque é lá que tudo acontece".
 

sábado, outubro 25, 2003

Um juiz prático
Leio no artigo de Miguel Sousa Tavares que o famoso juiz Rui Teixeira brindou com as seguintes palavras um arguido no momento em que o condenava a 19 anos de cadeia pelo homicídio da própria mulher:
"Infelizmente, o senhor existe".
Problema que, se houvesse pena de morte, se poderia resolver.
 
I never meant to be an academic
Passam hoje cinco anos que morreu Susan Strange, professora de Relações Internacionais e Economia Política Internacional, durante muitos anos na London School of Economics. (Acabaria a carreira na Universidade de Warwick, e coincidimos lá no ano em que lá vivi, mas na altura eu não sabia da existência dela). Strange é das autoras mais curiosas das Relações Internacionais recentes, sobretudo pela clareza no que escreve e pela falta de respeito que mostra pelo bolor das convenções académicas. O meu primeiro contacto com ela foi através de um texto de 1982 sobre «regimes internacionais» (um assunto que não recomendo a ninguém), chamado "Cave! hic dragones - a critique of regime analysis" (em Stephen Krasner, org., International regimes), que me impressionou muito. O estilo singular de Strange é bem resumido no título que ela deu a um artigo de polémica com Stephen Krasner sobre o impacto da globalização nas relações internacionais - "Wake up, Krasner! The world has changed".
Gosto muito em particular deste texto autobiográfico, que havia o projecto de traduzir e publicar na Praia, a revista que nunca foi. O texto é um fantástico depoimento pessoal, que reflecte sobre a experiência de vida de Susan Strange desde estudante universitária durante a II Guerra Mundial a jornalista (no Economist e no Observer), a professora universitária quase por acidente. Fala com franqueza, abertura e até certo descaramento sobre as peripécias e mesquinhezas do mundo académico, compara-o com o jornalismo e também reflecte o facto de, no meio de tudo, ter arranjado tempo para ser mãe de seis filhos. Sobre a disciplina que eu estudo, conclui o seguinte:
"International relations stands as the one social science with barriers to entry so low that anyone can jump them. It has been and will remain the richer for keeping those barriers low."
 

sexta-feira, outubro 24, 2003

Inapagável


Pelos 81 anos do meu avô, por acaso numa sexta-feira, o meu dia preferido da semana - talvez porque quando eu era miúdo era o dia de ficarmos em casa dos meus avós. À noite ele falava muito, até que eu adormecia, e ao sábado de manhã fazíamos, desde os meus nove anos, um jornal a meias.
Para não tornar estas recordações xaroposas, sempre digo que acho que não é possível que o mundo continue depois com a perfeição dos dez anos; é difícil, senão mesmo impossível. Mas tudo o que acontece depois acontece contra o pano de fundo da infância que, boa ou má, é inapagável.
No Rio de Janeiro havia um cartaz que dizia qualquer coisa como isto: "perder para o neto, isso sim é vitória". Para o meu avô, tem sido sempre assim. Na verdade, da vida não tenho maior desejo que o de fazer exactamente o mesmo.
 
Mundo-Cão
(ao buba, provavelmente o blog mais sénior da blogosfera portuguesa)



[Mutts]
 
Mexia sobre o pipi
Excelente texto, altamente recomendável, de Pedro Mexia sobre o livro do meu pipi. Os aspectos que Mexia resolveu sublinhar são muito próximos daqueles que eu próprio também destaquei no post que escrevi sobre o assunto.
 

quinta-feira, outubro 23, 2003

Proto
O soviético Pina Moura acusa Durão Barroso de ser protomaoísta. Os analistas dividem-se sobre se Pina Moura sabe o que quer dizer «proto».
 
Conversas vazias
Vi assim na televisão na terça-feira: jornalistas perseguindo Ferro Rodrigues no que julgo seriam os jardins do Palácio do Rato, perguntando se a liderança dele estava em causa, e ele respondendo e rindo-se: "perguntem ao Sócrates", que vinha ao lado.
Ninguém reparou em nada? Às vezes parece-me que os jornalistas disparam perguntas automáticas a cujas respostas nem prestam atenção. Estão todos fadados para fazer entrevistas a treinadores e futebolistas: "a nossa equipa esteve bem", "vamos dar o nosso melhor", "respeitamos o adversário", "prognósticos só no fim do jogo".
 
Pacheco traz mais lixo
Não estou propriamente calado sobre o caso da Casa Pia, em particular na vertente Pedroso/ PS. Mandei um texto para o Público sobre o assunto, que porei aqui quando for publicado ou se não for publicado. Acho que responde, embora tenha sido escrito antes, a anões como este e aos seus lamentáveis argumentos oportunistas - mas mais lamentáveis ainda os que nem a cara dão. E também se dirige às reflexões do Pacheco - no blog e na televisão - sobre a suposta "cunha" que a direcção do PS teria tentado meter.
Hoje o Pacheco junta mais lixo ao lixo, publicando no Público coisas diversas, algumas das quais já tinha escrito no blog dele. Destaco duas. A primeira, por muito popular: o PS não tem moral para se indignar com a recente divulgação de escutas porque também a terá praticado quando Paulo Pedroso foi preso. Admitamos que a direcção do PS o fez; há um abismo de diferença entre as duas situações. No caso das escutas que foram utilizadas pelo juiz Rui Teixeira para pedir o levantamento da imunidade parlamentar de Pedroso, as escutas foram feitas pela PJ e validadas pelo juiz. Se os dirigentes do PS - que não tinham escutado, mas sido escutados - achavam que elas constituiam um fundamento alarmante para colocar Paulo Pedroso sob suspeita, o mínimo que podiam fazer era dizê-lo. Era preciso alertar as pessoas para a insanidade de retirar alguma coisa de significativo daquelas escutas. As escutas não foram feitas pelo PS nem seleccionadas pelo PS; os dirigentes do PS limitaram-se a constatar o que foi usado contra eles. Era de doidos. O que se passa agora é que quem fez as escutas as usa para condenar, através da sua exibição selectiva e com a ajuda dos comentadores, quem foi escutado. Se não se perceber que há um abismo de diferença entre as duas coisas, entre divulgar as escutas que se fizeram de outros e divulgar as próprias conversas telefónicas que foram escutadas, não se percebe nada.
Segundo ponto - mais estúpido mas também bastante popular: "Para o PS, o seu deputado é inocente, os outros, pelo contraste do silêncio, são culpados". A desonestidade da frase é flagrante e caracteriza o seu autor. Para o PS, os outros não são culpados; para o PS, o seu deputado é inocente até prova em contrário e tem direito a todas as garantias de defesa que constitucionalmente lhe são dadas para se proteger. O Estado de Direito está em causa quando um indivíduo como Hugo Marçal fica preso durante cinco meses porque o juiz não cumpriu a lei aquando da primeira audição (e apenas por isso, como agora se reconhece). Mas a democracia está em perigo quando são os dirigentes do maior partido da oposição que são tratados sem respeito pelas garantias do Estado de Direito. Só se fosse parvo é que Pacheco não perceberia isto. Pacheco Pereira não é propriamente parvo.
O resto do artigo contém algumas coisas que talvez sejam verdade (não estou em condições de avaliar): que o PS, o PSD e o PCP foram cúmplices na criação do sistema que hoje existe (e que tem que ser escrutinado e, se for caso disso, alterado); e que há paralelismos entre a situação portuguesa e a chamada República dos Juízes italiana. Sobre este assunto, gostava que algum cientista político sério e informado se pronunciasse.
Com a cabeça inclinada na imagem que ilustra a sua coluna de opinião, Pacheco reforça o seu ar grave e douto. Mas a gravidade é esta: no meio de uma campanha visivelmente orquestrada para queimar a direcção do principal partido da oposição nas televisões, Pacheco acha que o mais importante é discorrer sobre as culpas que o PS teve na edificação do sistema e baralhar alguns aspectos essenciais do que está em jogo. Isto é: marcar pontos contra o PS. Que lhe aproveite.
 
Lisboa


Está um dia de outono a começar a arrefecer, mas um céu de um azul intenso e umas nuvens luminosas e muito definidas, como se estivessemos na Springfield dos Simpsons.
 
Lomba & Mexia
Ontem chegaram juntos à festa estes dois percursores da blogosfera pátria. Muitas vezes penso que aqueles dois blogs separados deviam ser um só. Imagino que seja por pudor que não os juntam, para evitarem fazer uma coluna infame -1, mas essa história passada deve ser enterrada, porque é já muito antiga. Se se juntassem podiam fazer as folgas que visivelmente ambos gostam de fazer sem prejudicarem o cliente. Até já tenho um nome para a coisa: Obsessão do Diabo.
 

quarta-feira, outubro 22, 2003



GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA

[1984]
 
Noticiário da TVI
O que tinham de horrível os Dois Minutos do Ódio não era a obrigatoriedade de cada qual representar um papel, mas, pelo contrário, o facto de ser impossível não se participar. Um pavoroso êxtase de medo e vingança, um desejo de matar, de torturar, de esmagar rostos com um malho, parecia percorrer todo aquele grupo de pessoas como uma corrente eléctrica, convertendo cada um dos presentes, mesmo contra vontade, em lunático ululante e de face contorcida. E, no entanto, a raiva que cada pessoa sentia era uma emoção abstracta, sem objecto, que podia ser orientada de um lado para o outro como a chama dos maçaricos. (...)
- Quero ver o enforcamento! Quero ver o enforcamento! - cantarolou a rapariguinha, sem deixar de saltar.
Alguns prisioneiros eurasiáticos, criminosos de guerra, iam ser enforcados ao fim da tarde no Parque, lembrou-se então Winston. Isto sucedia mais ou menos uma vez por mês, tratava-se de um espectáculo muito popular. As crianças exigiam sempre que as levassem a assistir.

[George Orwell, 1991 (1949), 1984, Lisboa: Antígona, pp. 20 e 29.]
 

terça-feira, outubro 21, 2003

Hobbes, o herói discreto


O diálogo é genial, mas a força desta tira não reside menos no desenho. Bill Watterson faz apenas três quadradinhos, em vez dos quatro habituais, o que lhe permite alongar o corpo de Hobbes e antropomorfizá-lo completamente: no primeiro quadrado, o tigre está de perna traçada em cima da cama, no seguinte conversa displicentemente enquanto folheia uma revista. É uma pessoa - ou mesmo, tipicamente, um homem.
E, como muitas vezes acontece nas tiras do Calvin, o sorriso que suscita é ao mesmo tempo misturado com pensamentos muito mais sérios e substancialmente intemporais (a série de cartoons foi interrompida há quase oito anos). Em cada quadradinho há um personagem com uma expressão de perplexidade: primeiro é o tigre, depois é o Calvin, depois é a mãe. Se o leitor aparecesse na tira, no quadrado seguinte, podia ser retratado com a mesma expressão: eu vejo-me a olhar para o jornal com aquela cara.
 
Se não for muita maçada
Exmo Sr. Procurador-Geral da República,
Li com interesse mais uma peça de comentário político emitida pelos serviços de Vossa Excelência, donde me permito destacar as seguintes passagens:

"a divulgação [de transcrições de escutas telefónicas] ora em foco é um episódio lamentável que (...) abre caminho livre às mais delirantes especulações, sobre quem mais dividendos pode colher com a divulgação, bem como a imputações descaradas sobre a fonte que teria fornecido esses elementos à comunicação social.
(...) É importante que os portugueses percebam que aquilo a que têm assistido não é ao funcionamento normal dos tribunais, e antes a um verdadeiro assalto à informação e sua utilização na praça pública, em prol de objectivos que nada têm a ver com o correcto funcionamento da justiça penal. Os cidadãos têm o direito a conhecer os factos apurados, mas só quando as regras do processo penal autorizarem que se conheçam, não a partir de divulgações justificadas por estratégias particulares, face ao desenvolvimento do processo, ou ao serviço de outros interesses.
(...) A PGR (...) também não tem dúvidas, de que só quem não está interessado na verdade é que pode contribuir para o clima de agitação, confusão e descrédito de instituições, ou pessoas, a que estamos a assistir."

A agudeza penetrante do raciocínio revela-se plenamente pelo facto de V. Exa., sem acusar directamente os advogados de Paulo Pedroso ou a própria direcção do Partido Socialista, sugerir, nas passagens que por impressionantes destaco em itálico, que podem ter sido eles mesmos a fazer a divulgação das escutas.
Passadas mais de setenta e duas horas desde o início da publicitação destas escutas, devo admitir que gostava que os serviços que Vossa Excelência brilhantemente dirige esclarecessem se estamos perante o crime de violação do segredo de justiça e se, em caso afirmativo, tencionam investigar e proceder criminalmente contra os seus autores. Tranquiliza-me, porém, a certeza de que, uma vez satisfeita a necessidade que V. Exa. - como, afinal, qualquer cidadão - sente de comentar a actualidade política, encontrará tempo para se dedicar a essa tarefa jurídica mais maçadora mas de certa forma também estimulante que formalmente lhe está atribuída.
Com a mais elevada consideração.
 

segunda-feira, outubro 20, 2003

Cagando - e andando
Às vezes, estarmo-nos cagando é a única maneira de não termos medo.
 
A questão
Suponho que, em termos factuais, é relativamente incontroverso o que se está a passar: pessoas ligadas à investigação, isto é, do Ministério Público ou da Polícia Judiciária, estão a tentar destruir politicamente a direcção do principal partido da oposição através de violações sistemáticas do segredo de justiça. Para constatar isto não é preciso acreditar em nenhuma teoria da conspiração; é uma constatação de facto. Face a isto, há duas atitudes possíveis: uma é alertar para a extrema gravidade dos procedimentos e para o perigo que isto constitui para a democracia; a outra é criticar a direcção do PS, por tudo e também pelo que os seus membros disseram uns aos outros em conversas privadas. Que estas conversas são irrelevantes do ponto de vista do processo em apreciação também é inquestionável: Paulo Pedroso não podia estar preso por aquilo que terceiros terão feito. E, se se considera que Ferro Rodrigues cometeu alguma ilegalidade, então proceda-se a uma acusação.
Entre pessoas sérias, independentemente da orientação partidária de cada um, a apreciação do caso não devia dar lugar a grandes divergências. Mas, pensando bem: acho que entre pessoas sérias não dá.
 

sábado, outubro 18, 2003

A palavra de honra dos «tipos porreiros»
É, como de costume, muito interessante o artigo de Santana Castilho desta semana. Argumenta com clareza cristalina e recorda vários episódios notáveis da passagem de Martins da Cruz pela pasta dos Negócios Estrangeiros. Faltou lembrar, pelo menos, o célebre momento, ainda nos primeiros meses de governo, em que Martins da Cruz anunciou ao mundo que não havia nenhum problema de Direitos Humanos na Tchechénia. Foi sem dúvida um grande ministro. Palavra de honra.
 
Pena do Zé da Rua
Leio no Público uns excertos do segundo acórdão do Tribunal da Relação no caso Pedroso, e pergunto-me se, em vez de escrever acórdãos, os juízes não deviam antes fazer blogs. Escrevem assim os juízes:
"Ante arguidos tão influentes, capazes de pôr uma significativa franja da classe política e os estratos do pensamento político mais esclarecido a conjecturar sobre a injustiça das leis e a urgente necessidade da sua reformulação, pena é que até agora, do Zé da Rua não se tenham aqueles lembrado!".
Conheço vários blogs em que encaixavam bem.
 

sexta-feira, outubro 17, 2003

Pipi, grande pipi, quão semelhante...
Li o livro do pipi no fim-de-semana e agora cito-o compulsivamente em conversas como quem cita o Nelson Rodrigues. A leitura foi, antes de tudo, uma celebração da blogosfera: o pipi só é possível porque não foi escrito, originalmente, para um livro, nem a pensar em vender-se. É realmente extraordinário pensar que o autor começou a escrever aquilo por puro prazer lúdico, sem esperar ganhar dinheiro nem reconhecimento pessoal. Mas só assim teve a liberdade necessária para o fazer: estava a divertir-se, não a criar uma «obra».
E - paradoxalmente - eu acho o pipi muito mais interessante em livro do que em blog. Lidos em sequência, os textos ganham uma densidade que fica muito para além das piadinhas. Constroi-se uma personagem, e esta personagem tem algumas características notáveis.
Em primeiro lugar, para o pipi o sexo não se faz por prazer, mas por devoção. O prazer é muito secundário e está normalmente arredado dos textos. O pipi é um hedonista, mas da escrita - o seu prazer é o de brincar com as palavras, de dizer as palavras que não se podem dizer e de falar sobre aquilo de que não se pode falar. O sexo em si não é prazer, mas performance.
Em segundo lugar, o pipi não é contra os homossexuais; é um obsessivo perseguidor dos comportamentos "sensíveis", piegas, numa palavra - "paneleiros". A dicotomia central do pipi não é prazer vs. trabalho, ou heterossexualidade vs. homossexualidade, mas macho vs. "roto": tudo o que não é sexualmente atlético, olímpico, é dos fracos, dos "rotos". E a perseguição é levada às últimas consequências, de tal forma que por diversas vezes o pipi se apanha a si próprio a pensar ou agir de forma "rota".
Lendo-o sequencialmente, como o livro, mais do que o blog, propicia, o pipi torna-se uma fantástica caricatura das obsessões infantis com a dimensão performativa do sexo que atravessam as nossas sociedades - sobretudo, mas não apenas, as cabeças dos homens. O pipi explora a dimensão experimental que ocupa tanto as nossas cabeças, numa espécie de réplica não muito elaborada da curiosidade das crianças pelo "pipi" e pela "pilinha" (nesse sentido, o nome do blog é muito justo).
Se o autor dos textos fosse uma mulher (o que, infelizmente, não acredito), a ironia sairia reforçada.
Por fim, o pipi é um revelador da hipocrisia e do farisaísmo. Nesse sentido, o excerto de José Manuel Fernandes citado na contracapa -
"apesar de ser preciso estômago para ler [o meu pipi], a página tem uma «arrumação» interessante. Aí está uma coisa que nunca chegaria aos jornais ou a livro"
- é parte da obra: fala por si sobre as parvoíces que se dizem quando se procura dizer qualquer coisa menos aquilo que se pensa.
O pipi é, além disso, muito bem escrito. Merece ser acarinhado como uma obra de literatura.
 
Não havia pessoa
Acho que o Francisco Louçã devia fazer um blog: ontem fui à Casa Pessoa ouvi-lo falar sobre o Fernando Pessoa e estava três vezes mais gente do que quando o Mexia lá foi em iniciativa análoga. E ninguém pareceu incomodado por o orador praticamente não falar de Pessoa, mas reciclar uma ladaínha com mais de dez anos sobre «modernismo», «modernidade» e «modernização», com introdução atempada das mesmas 327 referências literárias de sempre (Baudelaire, Antero de Quental, Bakhunine, etc.).
O que é que eu fui fazer à Casa Pessoa? Imaginei que ia ver a pessoa-Louçã falar da sua relação pessoal com Fernando Pessoa. Se é certo que me arrependi de lá ter ido, por outro lado constato que conservo aos 30 anos uma candura que a mim mesmo me toca.
 
There is no time
A raiva faz falta na política.



This is no time for celebration
This is no time for shaking heads
This is no time for backslapping
This is no time for marching bands

This is no time for optimism
This is no time for endless thought
This is no time for my country right or wrong
Remember what that brought

This is no time for congratulations
This is no time to turn your back
This is no time for circumlocution
This is no time for learned speech

This is no time to count your blessings
This is no time for private gain
This is a time to put up or shut up
It won’t come back this way again

This is no time to swallow anger
This is no time to ignore hate
This is no time to be acting frivolous
Because the time is getting late


This is no time for private vendettas
This is no time to not know who you are
Self knowledge is a dangerous thing
The freedom of who you are

This is no time to ignore warnings
This is no time to clear the plate
Let’s not be sorry after the fact
And let the past become out fate

This is no time to turn away and drink
Or smoke some vials of crack
This is a time to gather force
And take dead aim and attack

This is no time for celebration
This is no time for saluting flags
This is no time for inner searchings
The future is at hand

This is no time for phony rhetoric
This is no time for political speech
This is a time for action
Because the future’s within reach

This is the time

[Lou Reed, "There is no time" em New York, 1989].
 
O essencial e o acessório
Não falar, parte III é um post inteiramente correcto da Mariana Vieira da Silva. Mas convém acrescentar que não é assunto de socialistas, nem de amigos do Paulo Pedroso. É muito inquietante, ou mesmo muito deprimente, que a maior parte das pessoas que falam sobre isso, sobretudo da direita, não distinga o absolutamente essencial, que seriam as preocupações sobre o funcionamento de instituições como a PGR ou os tribunais, do acessório, que são considerações sobre a oportunidade política de certos comportamentos. Do lado do PS, a fronteira do essencial só foi ultrapassada com as declarações de Ana Gomes (que é um erro manter em funções, como ela já provou e, infelizmente, continuará a provar). Dos outros lados, foi ultrapassada várias vezes: com as declarações de Guilherme Silva sobre o «big brother», as de Durão, o obsceno, contra a politização da justiça, as do PGR sobre o acórdão da relação, as dos psiquiatras que chantageiam a opinião pública com tentativas de suicídio.
Pacheco e Marcelo, no domingo, ocuparam em monopólio os comentários das televisões privadas para condenar o comportamento do PS. Isto é pessoalmente censurável aos dois personagens - revela, para quem ainda não soubesse, que as mesquinhezas da competição política são para eles muito mais importantes que o Estado de Direito - e é esclarecedor sobre a gravidade da situação que se vive em Portugal de semi-monópólio da opinião pela direita, proporcionada, naturalmente, por grandes grupos capitalistas sem controlo.
Deste ponto de vista, a liberdade de expressão em Portugal está muito coartada quando comparada com o que se passava há dez anos. Não vê quem não quer ver.
 
Não falar mas falar
«Não falar» é uma injunção compreensível perante a cacafonia no caso Casa Pia, e talvez seja até uma atitude tacticamente acertada do Partido Socialista. Mas, se fosse levada à letra, esta injunção traduzir-se-ia em renunciar ao escrutínio público e crítico sobre a justiça, o que seria pura e simplesmente intolerável.
 
São dois ramos
Muita confusão me fazem os curricula das licenciaturas em psicologia: todos muito generalistas, nem um distingue entre psicologia feminina e psicologia masculina. Ora, quando me dizem que estudam psicologia, a primeira questão que coloco é - qual?
 
Um susto
Durante uma ou duas horas parecia que íamos trabalhar o dia inteiro: a internet estava inacessível. Pronto - já passou.
 

quarta-feira, outubro 15, 2003

Um preso
Podemos fazer uma experiência, que é por um momento abstrair de saber, não só se a pessoa que deu esta entrevista é inocente ou culpada daquilo de que a acusam, mas até quem é esta pessoa. Não é que seja irrelevante - nem todas as pessoas seriam capazes de responder assim, esta tem um nome e deve-lhe ser creditado o comportamento exemplar. Mas de momento podemos concentrar-nos num comportamento "heróico" - como lhe chamou certeiramente o João Nabais - sem cuidar de saber quem é o herói. Podia ser, ou gostávamos que pudesse ser, qualquer um de nós:

P: Foi da sua filha que sentiu mais saudades quando esteve preso?

R: Senti saudades da minha filha, da Ana, do conjunto da minha família. Há uma regra muito forte na minha família, que assenta na verdade. Por isso foi preciso dizer à minha filha, uma criança de seis anos, de uma forma que ela compreendesse, que o pai estava preso.

P: Como lhe deu a notícia?

R: Escrevi-lhe uma carta em que dizia onde estava e procurei transferir para a linguagem de uma criança de seis anos o que se estava a passar. Disse-lhe: «O pai costumava aparecer nos jornais, mas agora umas pessoas disseram mentiras sobre o pai e, até que essas mentiras sejam vencidas, o pai tem de ficar preso onde está». Depois desenhei-lhe três bruxinhas, uma mais atrás que pergunta «onde é que vão com tanta pressa?» e as outras respondiam «vamos ajudar o pai da (....) a acabar com as mentiras». Uma vez no colégio - onde toda a gente foi inexcedível - uma coleguinha dela, certamente com a melhor das intenções, disse-lhe «o teu pai está no hospital». E a minha filha respondeu-lhe: «Não, não, está preso e eu já fui visitá-lo.» São marcas que nunca desaparecerão. Este processo tem três tipos de vítimas: as crianças abusadas; os suspeitos inocentes e as famílias deles.

P: A sua filha costumava visitá-lo?

R: Sim. Depois, passámos a manter outras formas de comunicação, além das visitas e dos telefonemas. Eu, com a ajuda da mãe dela, escrevia umas histórias sobre uns desenhos que ela me enviava. Cá fora, alguns amigos editavam em exemplar único. Hoje, a minha filha tem um conjunto de livros de histórias feitos em conjunto comigo. São os escritos de que mais me orgulho.
(...) Um dos momentos mais emocionantes da minha saída da prisão foi, quando subia as escadas da Assembleia da República, receber da minha ex-mulher um telefonema em que ela, a chorar, me disse, com o seu peculiar sentido de humor, que tinha sido mãe, novamente, naquele dia: «A minha filha quis a liberdade no mesmo dia que tu».
(...) Houve muitas cartas e mensagens que aproveito, agora, para agradecer. Tentei responder a todas, desde que isso não implicasse uma quebra psicológica.

P: Escrever sobre si tinha esse risco?

R: Tinha. Reviver, a todo o momento, o processo (...)

P: Chegou a pensar que [a sua prisão] pudesse ser o fim da sua vida política?

R: A minha vida política é o que menos importa. Estava aturdido. Nesse aturdimento, a minha questão essencial era estarem a pôr em causa a minha dignidade pessoal. Nós herdamos e transmitimos um nome.

P: Quando entrou no Tribunal de Instrução Criminal pensou que ficaria preso?

R: (...) Hoje sei que havia factos concretos, verificáveis, que me poderiam ter sido perguntados - e não foram. Haverá muitos cidadãos a quem tenha acontecido isto? Se sim, a reflexão necessária não deve ser sobre a [minha] prisão preventiva, mas sobre o mecanismo legal. Porque, assim, qualquer um está à mercê de uma denúncia caluniosa.
(...) Lembro-me que a sala onde fui interrogado tinha a bandeira de Portugal, mas não tinha a bandeira da União Europeia. Um dia, se tiver talento para tal, hei-de escrever o que vi naquela sala, as posturas das pessoas.

P: Vê com outros olhos a presunção de inocência?

R: Senti na carne que a presunção de inocência pode ser três coisas diferentes: um dado adquirido numa relação entre pessoas; uma presunção formal à qual alguns atribuem sentido; e uma mera formulação hipócrita e retórica.

P: Abdicará da imunidade parlamentar caso venha a ser chamado a depor no Tribunal?

R: (...) Sobre isso que não haja nenhuma dúvida: a minha interpretação da imunidade parlamentar é que ela existe para proteger os deputados pelo que dizem no exercício do seu mandato político. Esta é a minha interpretação, independentemente do que diz a lei.
(...) Reconheço que não sabia poderem acontecer coisas como as que vi no EPL. Vi o mandato de captura de um sem-abrigo, que aparece domiciliado «na rua X, debaixo das arcadas Y». Esse sem abrigo foi condenado a pagar 60 contos [300 euros] de multa. E está escrito no despacho que, caso o sem-abrigo pague a multa deve ser, de imediato, libertado... Há muitas histórias destas.

P: Como se sentiu quando foi impedido de responder a algumas perguntas, por escrito, sobre o seu quotidiano no EPL?

R: Tratou-se de uma violação de um direito de cidadania.
(...) As pessoas em reclusão estão sujeitas a arbitrariedades e a um regime de punição que tem mais a ver com o século XIX. Alguém dizia: mudaram o nome, agora chama-se Estabelecimento Prisional de Lisboa, mas a cultura ainda é a da Penitenciária, a da penitência. Um dia recebi a visita do meu médico e, no fim, ele deu-me um cartão como o seu número de telemóvel. As pessoas não sabem que não são permitidas chamadas para o exterior que não sejam para seis números fixos previamente acordados.

P: Qual foi o dia mais longo que passou na prisão?

R: Foi o último. (...) Das 14 e 30 até perto das 17 horas fiquei suspenso. Durante essa parte do dia, o mundo voltou a desabar.

P: E o dia mais difícil?

R: Pela natureza das coisas, foi o dia da primeira visita da minha filha. (...) Ela teve de passar por portões, guardas...

P: O que dirá à sua amiga Catalina Pestana se a encontrar?

R: Li atentamente o acórdão da Relação e reforcei a minha convicção: a drª Catalina Pestana tem usado repetidas vezes, uma delas numa entrevista à VISÃO, o qualificativo de «minha amiga» com objectivos que não são de «amiga»... No dia em que a encontrar dir-lhe-ei seguramente uma coisas: eu manteria um sentimento de solidariedade pessoal, num certo sentido de misericórdia, por alguém que tendo sido meu amigo eu imaginasse capaz de fazer aquilo que me é imputado. Mas não me imagino a continuar a chamar amigo a uma pessoa que acredite ou tenha dúvidas que possa ter praticado os actos que me são imputados.

P: Põe a hipótese de não vir a ser acusado?

R: A hipótese racional, para mim, era nunca ter sido suspeito. O que eu quero é saber como tudo aconteceu. O que peço é que se investigue tudo, também os testemunhos. (...) Quando os testemunhos comportam factos, os factos verificam-se. Nunca ninguém me perguntou se eu ia duas vezes por semana à provedoria da Casa Pia. (...) Isto é algo muito doloroso para todos. A mim não me chegou ainda a notícia de que a investigação extraísse consequências dos testemunhos falsos.

P: É essa a condição para a sua liberdade total?

R: Para a minha liberdade total é necessário que fique absolutamente claro, para além de qualquer dúvida, que eu nunca fui abusador de crianças, que nunca pratiquei os actos que me imputam.
 
Orwell


A revista História é normalmente um xarope - e o número de Setembro, que eu li ontem, também o é predominantemente. Mas vale com certeza os 5 euros que custa, quanto mais não fosse pelos textos do Pedro Oliveira e do Rui Tavares sobre o Orwell. O primeiro é um artigo biográfico mais clássico, ao passo que o segundo está mais empenhado (a meu ver talvez excessivamente empenhado) em defender uma interpretação da obra de Orwell contra outras, mas são dois excelentes artigos de enquadramento dos livros de Orwell na evolução da sua vida e nas preocupações políticas que através dela se formaram. Entre outras coisas que também merecem ser lidas, a História traz ainda uma série de links para sites sobre Orwell, designadamente este onde estão disponíveis os seus textos mais importantes, desde livros a ensaios curtos.
 
Ainda o Brel
15 avril 2019 - leram?
 
Crise de solidão
Ó homem, o que te aconteceu? Perdeste o piu como o outro?
O nosso blogger está em crise de solidão.
 

quinta-feira, outubro 09, 2003

Imprensa livre
Subscrevi uma petição - o que raramente faço - contra o despedimento de Daniel Schneidermann pelo Le Monde. A questão é fundamental e está na ordem do dia. Sugiro que subscrevam também.
 
Pedroso e o PS fizeram bem
A ida de Paulo Pedroso directamente do EPL para o Parlamento não é, a meu ver, uma fraqueza humana que se deva criticar-lhe ou que se deva sequer desculpar-lhe. Para mim, é chocante que muitas pessoas que deviam ter como preocupação principal o funcionamento do Estado de Direito (afinal, isso é o princípio mais fundamental - ou não?) se entretenham agora com censuras morais a Pedroso, como foi chocante, na altura da sua prisão e dos episódios subsequentes, que se tivessem concentrado nas críticas ao Partido Socialista e não à prisão preventiva que toda a gente - repito, toda a gente - sabia que tinha fundamentos risíveis. (E é ainda mais chocante que se procure justificar o comportamento dos ministros recém-demitidos com fraquezas humanas ao mesmo tempo que se moraliza sobre um homem que esteve 140 dias sob uma prisão injusta).
Mas talvez o essencial não esteja aqui. O dano maior que procuraram causar a Pedroso nem sequer foi terem-no submetido a 140 dias de cativeiro com fundamentos ilegais. O dano maior é a tentativa de diminuição da sua dignidade, da sua capacidade para dar a cara, ser credível e defender aquilo em que acredita - em suma, para andar de cabeça direita, enquanto político e enquanto pessoa. Se Paulo Pedroso sabe que está inocente, a sua luta maior é esta: não apenas garantir que é absolvido, mas não recuar um milímetro, não ceder - não se envergonhar.
Ou seja: voltar a ser exactamente quem era. E ele era um deputado e um político. Acho que foi por isso que ele voltou ao lugar donde saíu em Maio para depor no TIC. Ele quer recuperar-se a si próprio, e a obrigação de cada um de nós como cidadãos (e sobretudo do Estado) é, enquanto não se provar nada do que é alegado contra ele e após a absolvição que ele venha eventualmente a conhecer, contribuir activamente para que ele recupere. A sua eventual morte política num processo em que é arguido mas não condenado seria inaceitável.
Por isso é que me parece que, tendo ou não uma consciência muito clara do que estavam a fazer, os dirigentes do Partido Socialista que o abraçaram ontem fizeram exactamente o que politicamente deviam fazer. (E que, por isso também, era o que eu gostaria de ter feito).

O blogo existo, um blog com pouca notoriedade mas de que eu gosto muito, fez um post certeiro e corajoso sobre o assunto.
 
Tanto amor com tanta raiva


Herói entre os heróis, morreu faz hoje 25 anos.
Há anos que deixo o Brel muito fora da minha vida, o que é uma tremenda injustiça, porque quando eu tinha 18 anos ele representava tudo o que era o mais importante. Mas talvez tenha sido um pouco por isso: tive que me afastar de tanta coisa importante dessa altura que ainda não tive tempo de recuperar tudo o que é preciso. Vou chegar lá, mas pode demorar um bocadinho.

On a beau faire on a beau dire
Qu'un homme averti en vaut deux
On a beau faire on a beau dire
Ça fait du bien d'être amoureux

Je sais je sais que ce prochain amour
Sera pour moi la prochaine défaite
Je sais déjà à l'entrée de la fête
La feuille morte que sera le petit jour
Je sais je sais sans savoir ton prénom
Que je serai ta prochaine capture
Je sais déjà que c'est par leur murmure
Que les étangs mettent les fleuves en prison

Mais on a beau faire on a beau dire
Qu'un homme averti en vaut deux
On a beau faire on a beau dire
Ça fait du bien d'être amoureux

Je sais je sais que ce prochain amour
Ne vivra pas jusqu'au prochain été
Je sais déjà que le temps des baisers
Pour deux chemins ne dure qu'un carrefour
Je sais je sais que ce prochain bonheur
Sera pour moi la prochaine des guerres
Je sais déjà cette affreuse prière
Qu'il faut pleurer quand l'autre est le vainqueur

Mais on a beau faire on a beau dire
Qu'un homme averti en vaut deux
On a beau faire on a beau dire
Ça fait du bien d'être amoureux

Je sais je sais que ce prochain amour
Sera pour nous de vivre un nouveau règne
Dont nous croirons tous deux porter les chaînes
Dont nous croirons que l'autre a le velours
Je sais je sais que ma tendre faiblesse
Fera de nous des navires ennemis
Mais mon cœur sait des navires ennemis
Partant ensemble pour pêcher la tendresse

Car on a beau faire car on a beau dire
Qu'un homme averti en vaut deux
On a beau faire on a beau dire
Ça fait du bien d'être amoureux

["Le prochain amour", J. Brel/J. Brel-G. Jouannest, 1961]

(O Terras do Nunca tem dado ao assunto a atenção devida).
 

quarta-feira, outubro 08, 2003

Fantástica notícia!
O Paulo Pedroso vai ser libertado agora, uma vez que os juízes do Tribunal da Relação foram unânimes em considerar que a sua prisão preventiva era injustificável.

De acordo com o Público,
O tribunal entendeu resultar "por demais evidente que todos os indícios recolhidos são claramente insuficientes para imputar ao arguido a prática de qualquer crime concreto" e, em consequência, aplicar-lhe a medida de coacção mais grave de todas, a prisão preventiva.
Mas mesmo que assim não fosse, outras razões deveriam ter travado a decisão tomada pelo juiz Rui Teixeira de prender Paulo Pedroso preventivamente.
A Relação defende que os fundamentos avançados pelo juiz de instrução para decretaram essa medida (perigo de perturbação da investigação e perigo da perturbação da ordem e da tranquilidade públicas) não tiveram qualquer sustenção nos elementos recolhidos pelo MP e pela Polícia Judiciária.
Quanto ao risco de perturbação do inquérito, entenderam os juízes da Relação que não fazem parte dos autos elementos precisos das "circunstâncias" em que pudessem ter ocorrido esforços no sentido de "inquinar" as fontes de prova. O facto de Paulo Pedroso "ter procurado conter as repercussões negativas que, em termos de opinião pública", a sua detenção poderia suscitar, para o PS, foi entendido pelos magistrados como "perfeitamente compreensível".
A sua conduta, nesta matéria, terá, na opinião dos juízes, sido mesmo exemplar: "Não conseguimos ver como é que se descortina neste caso algum perigo desta natureza quando o arguido, beneficiário de uma imunidade, deu imediatamente o seu assentimento ao levantamento desta e se dispôs mesmo a suspender o mandato para poder prestar declrações sem o levantamento da imunidade parlamentar", refere o acórdão.
No que respeita ao risco de perturbação da ordem e tranquilidade públicas - o outro requisito avançado por Rui Teixeira para a detenção - a opinião dos magistrados foi a de que o juiz de instrução procurou injustificadamente conter o "alarme social" provocado pelo caso na opinião pública, privando o arguido da sua liberdade. "Aplacar os ânimos à custa do sacrifício de uma pessoa que ainda não foi declarada culpada seria certamente contrário à dignidade da pessoa humana", salienta o relator do acórdão.
Embora Rui Teixeira não tenha invocado o perigo de fuga como sustentação da prisão preventiva, o tribunal da Relação afirma claramente que, também este risco não se colocava. Concluindo, neste sentido, que "não poderia ser aplicada outra medida que não" o Termo de Identidade e Residência.
Esta obrigação, a que, a partir de agora, Pedroso estará sujeito, apenas impõe que o arguido não possa mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado.
O acordão da Relação é relativo ao segundo recurso da defesa de Paulo Pedroso sobre a aplicação da prisão preventiva e ainda não é o que responde à decisão do Tribunal Constitucional quanto à necessidade de a Relação se pronunciar sobre a antecipação feita pelo juiz Rui Teixeira do reexame da dita prisão preventiva. Ou seja, pronuncia-se quanto à questão de fundo - os indícios contra Pedroso e os pressupostos da prisão preventiva - e não quanto à questão processual da antecipação do reexame da manutenção ou não da medida coactiva mais grave.
 
Quando os putos são chatos e insistentes é difícil dizer não
Ó pai, compra-me aquele ministro! Compra! Compra! Compra lá!
 
Edward Said


É sempre muito bom chegar a casa e, mesmo com uns dias de atraso, ter o Economist na caixa do correio. Não partilho grande parte das opções políticas da revista, e de modo nenhum o apoio a traços fundamentais da política externa de Bush e de Blair. Acho mesmo que a insistência na questão de saber se Bush e Blair terão ou não procurado aldrabar o mundo inteiro quanto às razões para invadir o Iraque simula uma candura que não me parece genuína. O Economist está a tentar limpar-se de uma mentira que ajudou a promover para além do razoável.
Mas o Economist faz jornalismo sério e equilibrado, como se nota por exemplo nesta nota a propósito da morte de Edward Said que, sem perder o sentido crítico, está a milhas de distância da caricatura que mesmo a direita mais informada em Portugal procurou fazer dele. Aliás, essa direita está a pôr as caricaturas na ordem do dia, mas de caminho é ela própria que se ridiculariza.

From The Economist print edition
Oct 2nd 2003

Edward Said, eloquent spokesman for Palestine, died on September 25th, aged 67

“YOU'RE treated like a diplomat of terrorism, with a place at the table,” remarked Edward Said when Salman Rushdie asked him (in a conversation reproduced in “The Politics of Dispossession”, published in 1994) what it was like for him, the distinguished professor of English and comparative literature at Columbia University, to be Palestine's voice in the United States. Mr Said repudiated terrorism, in all its forms, but was a passionate, eloquent and persistent advocate for justice for the dispossessed Palestinians, struggling to make his case to people whose sympathies are largely given over to the nation, Israel, that carried out the dispossessing. He understood that sympathy, and the sea of old guilt that lies beneath it. But, as he wrote wryly, and with unusual understatement given the snide character-assassination he constantly suffered, “To be the victim of a victim does present quite unusual difficulties.”
Literature and politics came together in “Orientalism”, Mr Said's best known and most influential book, published in 1978. Entwining political and cultural imperialism, the work argues that western writers and academics have misrepresented, and still misrepresent, the Islamic world in a manner that has eased the way for the West to dominate the East. All this, naturally, was deeply unpopular with the formidable scholars he denigrated. But “Orientalism”, translated into dozens of languages, became a foundation text for a great boom in post-colonial studies.
Not always with beneficial results. Students from the Middle East, reading his words, have seized the chance of finding yet another excuse to pile their misfortunes on to the broad shoulders of the imperialist West. But Mr Said himself was a punishing critic of the sordid, totalitarian Arab regimes that litter the region. “It is the role of the Arab intellectual”, he wrote, “to articulate and defend the principles of liberation and democracy at all costs.”
Among sordid regimes, he came to class Yasser Arafat's Palestinian government. In the 1980s, Mr Said, a member of the Palestine National Council at the time, was influential in urging Mr Arafat towards the two-state solution in which Palestine and Israel could coexist. But he grew disillusioned with a leader who tolerated corruption and ineptitude, marginalised some of the finest Palestinian minds, and who, in 1993, signed up to an agreement that Mr Said saw as certain disaster for the Palestinians, in that it offered the Israelis security while they colonised more land.
As the Oslo process dribbled wretchedly on, he kept up a barrage of pointed, hard-to-answer abuse. Sometimes it was fair to ask what alternative he was offering. But, in the end, his prophecies of doom came to pass. By then, perhaps despairing of a decent splitting of the land, Mr Said had taken to musing, in the last years of the leukaemia that took 12 years to kill him, on a single democratic state in which Jews and Arabs could live peaceably together.
He also turned to music, his great love (he was a gifted pianist). And, in contrast to the acrimonious conjunction of literature and politics, music and politics came happily together when he and his close friend, Daniel Barenboim, a renowned Israeli conductor with no time for political grandstanding, established a youth orchestra of Arabs and Israelis, and Mr Barenboim held master classes in the occupied West Bank.
A legion of friends notwithstanding, Mr Said always saw himself as an outsider, drawn to minorities and losers. He had, wrote Hanan Ashrawi, one of those fine Palestinians who has been pushed to one side by the Arafat regime, “a gentle identification with the oppressed, and an intimidating rage against the oppressor.”
Born in West Jerusalem, in a district that since 1948 has been part of Israel, he was brought up in Cairo and in the United States. He inherited an American passport from his father's service with the American army in the first world war, and was christened Edward in 1935 after the British prince of Wales who later, as Edward VIII, abdicated for love of an American. As a Christian-Palestinian he felt alienated in colonial Egypt; as an Arab he was an outsider in America. Gradually, though not fully until after the 1967 war in which Israel occupied what remained of Palestine, he began to feel the “desolation of being without a country or place to return to.”

A scrapper, too
And this remained with him, as he began his long fight for justice for his people, a people who, as he wrote, have been “excluded, denied the right to have a history of their own”. He was a humanist, which he defined as using “one's mind historically and rationally for the purpose of reflective understanding”. He was also, from time to time, a scrapper, letting loose blasts of over-the-top polemic.
In the end, nothing worked. The current American administration sometimes says reasonable things about Palestine, though usually in made-in-Israel terms, but it has never followed them through. A couple of months ago, Edward Said wrote sadly in the Los Angeles Times: “We are in for many more years of turmoil and misery in the Middle East, where one of the main problems is, to put it as plainly as possible, American power. What America refuses to see clearly, it can hardly hope to remedy.”
 
Mas há pior


Schwarzenegger, o culturista neoclássico, foi eleito governador do estado da Califórnia.
Péssima notícia - mas sem novidade - sobre o estado da política americana, setting trends for the whole world: despolitização, bloqueamento de qualquer política de redistribuição e justiça social, circo. Schwarzenegger foi "conselheiro especial para a forma física" do presidente Bush (pai). E caracterizou a decisão de se candidatar como "a mais difícil desde que resolvi rapar as virilhas".
Por outro lado, Schwarzenegger representa uma ala relativamente liberal do Partido Republicano, que é infinitamente preferível à alucinação religiosa do actual Presidente americano, que de resto é muito mais cretino que ele. E Schwarzenegger tem dois filmes de que eu gosto imenso e que revelam uma boa dose de auto-ironia: Last Action Hero e, sobretudo porque menos falado, Junior, um filme em que ele engravida e em que se parodiam as imagens sociais da natureza do homem e da mulher.
Schwarzenegger é criticado por ter feito afirmações politicamente palermas sobre Hitler, mas que são quase iguais às que Lula fez sobre o mesmo assunto, em meados da década de 1980, à Playboy brasileira. Um político pode protagonizar mudanças positivas mesmo sendo intelectualmente um indivíduo menor.
E, a propósito de Clinton, Schwarzenegger disse em 1999 uma frase que seria exactamente o meu programa político: "Eu inalei, exalei, fiz tudo." Não chega para ser governador do maior Estado dos EUA, mas relativiza o dano, designadamente quando comparado com a direita religiosa cuja influência é tão ampla.
 
Tanta burrice chega a ser comovente
Estou a assistir a uma cerimónia tocante: para assinalar a demissão dos dois ministros mais burros e incompetentes de que tenho memória, a RTP não se poupou e convidou os dois comentadores mais burros que podia encontrar, Cáceres Monteiro e Carlos Magno. É um espectáculo muito bonito.
 

terça-feira, outubro 07, 2003

Ah, that explains it
Schwarzenegger diz-se "mais à vontade com a filosofia de Adam Smith que com a teoria keynesiana".
 

domingo, outubro 05, 2003

A Rita e a Amália Rodrigues


A vitória que tivemos nas eleições para a Associação de Estudantes do Pedro Nunes, em 1989 - de que falei há uns meses atrás -, foi uma conjunção de improváveis que deu um resultado totalmente inesperado. Não é possível falar de todos. Hoje aproveito para falar da Rita, que tinha doze anos na altura, e na Amália Rodrigues, que teria um pouco mais.
Havia um colega meu de turma que era da JSD e foi parar à nossa lista um pouco por acaso. Se nós ouvíamos o Sérgio Godinho, ele gostava da Amália Rodrigues, e a improbabilidade da amizade nessa altura (não hoje) também passava por aí. Ele tinha metido na cabeça que queria levar a Amália ao liceu e propôs-me que se lhe escrevesse uma carta, em nome da lista, a convidá-la. Não dei nenhuma atenção ao assunto, disse-lhe que sim. E a Amália - digam lá que não é improvável - que não conhecia nenhum de nós de lado nenhum, que não tinha supostamente nenhuma razão para lá ir, foi.
Agora imaginem um liceu em 1989 onde entra a Amália Rodrigues convidada por um bando de estudantes: a escola inteira, alunos e sobretudo funcionários e professores de boca aberta, em deslumbramento, perante a impressionante figura.
(E um membro da lista I cuja megalomania não é recente distribuindo no final o comunicado de encerramento de campanha, anunciando aos gritos: «a última palavra de Cristo!»).
Amália esteve lá uma hora, ou hora e meia, conversando, respondendo a perguntas e às tantas cantando um ou dois versos com uma voz que assim de perto ainda impressionava. A Rita - que já era a preferida dos membros mais velhos da lista, por ser tão esperta, tão viva, tão activa - não ficou por vergonhas (que não eram o género dela) e deve ter sido quem fez mais perguntas. E isso despertou na Amália tanta ternura que a chamou para o pé de si e não me lembro já se não foi mesmo no seu colo que a Rita passou os últimos minutos da sessão de perguntas.
(Ganhámos as eleições no dia seguinte, o que depois disto parece lógico e inevitável mas na altura foi um incrível milagre. E assim talvez a Amália tenha estado no início da minha curta «carreira» política).
 
No parapeito
A Rita foi torpedeada por alguém

- passei algum tempo a contemplar possíveis adjectivos, mas todos me parecem pouco e, simultaneamente, completamente inúteis -

e aconteceu-lhe aquilo que eu tinha dito que era o nosso maior pesadelo: entraram na página dela e fizeram desaparecer tudo. Tudo o que estava no parapeito está irremediavelmente perdido, a não ser pelos efeitos que provocou em quem escreveu e em quem leu, e a não ser pela memória que guardamos disso.
(Eu lembro-me de quando a Rita disse que a filha dela, na praia, era "o próprio Levante").
Talvez não tenha sido um grande mestre da pirataria informática a fazer isto à Rita; talvez ela tivesse simplesmente uma password fácil demais, vulnerável demais; talvez ela não saiba, nem queira saber, nada de informática; e talvez lhe tenha parecido extraordinariamente simples, e por isso extraordinariamente encantador, espontâneo e directo ter um blog. Escrevia o que lhe apetecia sobre as coisas que lhe despertavam - a palavra era quase sempre esta - ternura.
Há pessoas que desistem do blog, à Rita escavacaram-lho. Mas talvez ela descubra que, uma vez começado, bloga como quem respira, bloga porque respira, e enquanto for assim, mesmo que lho desfaçam, ela vai recomeçar.
 

sábado, outubro 04, 2003

Adeus, Lenine


Não será um grande filme - mas importa? E não é, a meu ver, uma comédia - eu pelo menos não me ri. Mas é um dos melhores filmes políticos dos últimos anos e surpreendeu-me porque, ou eu tenho andado muito distraído, ou (tirando aquelas coisas do Mikhalkov, de que eu não gosto) o socialismo real tem sido pouco filmado.
O filme passa-se em Berlim Oriental em 1989 e é contado a partir da perspectiva de Alex, um rapaz de cerca de vinte anos. Vive com a irmã (Ariane), um pouco mais velha, e a mãe. O pai fugiu para o Ocidente em 1978; desde então, depois de uma fase depressiva inicial, a mãe «casou-se com a pátria socialista». Nas manifestações de Outubro de 1989, Alex é brutalizado pela polícia. A mãe assiste a isto um pouco por acaso, tem um ataque cardíaco e entra em coma, do qual só acordará oito meses mais tarde - quando o Muro já tiver caído, a adopção do marco ocidental estiver em marcha e a reunificação estiver próxima. Mas a saída do coma não acaba com as preocupações: o médico avisa que a saúde da mãe é muito frágil, que um segundo enfarte será provavelmente fatal, que nada a deve excitar ou enervar. Alex decide não lhe contar da queda do muro e do fim iminente da RDA. A mãe é levada para casa, onde tem de ficar acamada, e a ficção da RDA prossegue no quarto.
A ficção prossegue, sim - a ficção prossegue. Talvez não seja o aspecto mais original, mas é sem dúvida o mais central, o mais significativo do filme, o de tratar o socialismo da RDA sob a alegoria de uma mentira - uma mentira escorada no início talvez em boas intenções, mas cujo desenvolvimento só pode gerar consequências cada vez mais imprevisíveis e catastróficas. O filme não é sobre quem vive como se o muro não tivesse caído; o filme é sobre a RDA, um regime autoritário onde as pessoas se tratavam por «camaradas», onde o conflito era suprimido em nome da construção colectiva de um bem maior, uma Alemanha autoritária que se chamava «democrática» por oposição a uma Alemanha democrática que não se chamava democrática. Às tantas, Ariane, que tem uma filha pequena, diz que teme que ela fique perturbada da cabeça por crescer numa casa onde se vive como se a RDA ainda existisse, isto é, em que se vive num mundo de mentira; Alex responde-lhe que até aos vinte anos eles próprios viveram na RDA.
O «núcleo» do filme explora as consequências sucessivas e cada vez mais amplas da necessidade de salvar a mentira. E há um momento em que se percebe que só há um desenlace possível para a história, uma forma de sair da mentira: a mãe (isto é, a RDA) tem que morrer.
E agora vou falar-vos com a delicadeza possível

- isto é, revelando o menos possível, mas ainda assim revelando bastante –

sobre dois aspectos do final do filme. (E sugiro que quem acha que saber o final de um filme é suficiente para o estragar - como eu não acho - não leia mais).
Primeiro: quando o ambiente se está a tornar pouco menos que insustentável, há um momento em que se pressente que os filhos vão ter de contar a verdade. Nesse momento, é a mãe que conta a verdade aos filhos sobre a fuga do pai para a Alemanha Ocidental, em 1978. Ficamos a saber que o «casamento com a pátria socialista» se enraiza numa mentira individual. Ou seja: a RDA é uma grande mentira sustentada numa pequena mentira pessoal, na impossibilidade de enfrentar a verdade. A verdade de que o marido não fugiu à família. A verdade de que a RDA não é nem remotamente «democrática». A verdade de que o socialismo não criou o paraíso e de que o capitalismo não criou, na RFA, o regresso dos nazis, nem uma vida destruída pela competição selvagem e pelo desemprego.
Segundo: muito perto do final, Alex encena para a mãe uma forma «benigna» da queda do muro de Berlim, com a transição do poder de Honecker para o seu herói de infância (um astronauta da RDA) e a passagem a um socialismo mais livre, sem policiamento. A mãe, embora já saiba que esta encenação é falsa, aceita a mentira do filho como se fosse verdade, porque a mentira é agora evidentemente necessária não àquela que ela era suposto proteger (a mãe) mas àquele que a inventou (o filho). A mentira produz efeitos nos dois extremos da relação; e torna-se mais indispensável, ao ponto de dominar, a quem a inventa e supostamente a controla (o mentiroso) do que àquele que é o seu objecto (aquele a quem se mente).
Todos os regimes assentes na propaganda assentam em parte na mentira, e todos os regimes de massas modernos assentam na propaganda. O passado nazi da Alemanha criou dificuldades especiais com a verdade, que no caso da RFA foram exploradas num belo filme de 1990 chamado Das Schreckliche Mädchen, em português A Rapariga Indiscreta (mas, literalmente, "Schreckliche" significa "terrível", como em Ivan der Schreckliche).
Mas talvez o aspecto distintivo do socialismo real face a outros regimes, mesmo a regimes de certo ponto de vista mais criminosos, tenha sido a forma como precisou de levar a mentira às últimas consequências. Como às tantas se diz em Adeus, Lenine:
"Para ti, começada a mentira, vale tudo".
 
Primeira fila


Perdoo-lhe, claro que lhe perdoo: eu perdoo-lhe tudo.
De resto, sempre pensei que João Gilberto nunca voltaria a Lisboa (e da última vez que ele cá esteve eu era pequeno demais para saber). A misantropia dele é lendária, dá muito poucos concertos (só para ter dinheiro), em alguns dos que dá zanga-se e vai-se embora. E nasceu em 1931, o que significa que tem 72 anos. Não vai voltar a Portugal.
Foi exactamente isso que eu pensei em 2000, quando vi no Público a notícia de que ele ia actuar em Londres. Foi tudo muito simples, na minha cabeça e na prática: liguei para lá, comprei os bilhetes (maravilhas do cartão de crédito), meti-me no avião e fui. Acho que não houve nem minutos de hesitação, e não houve com certeza segundo nenhum de arrependimento.
E, no entanto (ou por isso mesmo), um espectáculo de João Gilberto é um fenómeno estranho. O homem entra lentamente - está velho -, de fato e gravata, parece trazido de outro tempo. Senta-se no banco no meio do palco, não diz uma palavra, pega no violão e começa a tocar. Ao longo de todo o concerto não dirá uma palavra a não ser as que compõem as letras das músicas. Mais que isso, tem os olhos no chão. Contei as vezes em que levantou a cabeça e olhou para a frente: foram três.
Antipático? João Gilberto está para além do bem e do mal, vê-lo ao vivo é uma experiência religiosa. Eu explico: pareceu-me que na plateia todos sabíamos a letra de todas as músicas que ele cantou. Pelo menos, todos mexemos os lábios a acompanhá-lo. Mas em silêncio, ou sussurrando mesmo muito baixinho. Penso que o silêncio não é induzido pelo medo de que ele se zangue; é que só as palavras que saem da boca dele é que são sagradas.
E sagradas porquê? Não pelo seu conteúdo, certamente, porque nós-os-adoradores-de-João-Gilberto sabemos que ele não escreveu uma palavra do que canta, nem sequer um acorde (ele compôs muito pouco). E João Gilberto não tem o que geralmente se pensa ser uma «grande voz». E, no entanto, pode acontecer-vos estarem um dia a ouvi-lo (e não precisa de ser ao vivo) e subitamente terem uma espécie de iluminação: ninguém no mundo canta melhor do que isto. A mim aconteceu-me, uma vez, em 1996 - e fiquei surpreendido de saber, meses mais tarde, por uma entrevista ao Público que Arto Lindsay achava exactamente o mesmo. Ou, como escreveu Caetano numa música de 1998:
Melhor do que isso só mesmo o silêncio.
Melhor do que o silêncio só João.

["Pra Ninguém", álbum Livro]

Não vem, não virá, provavelmente não o verei mais.
Desta vez tinha bilhetes para a primeira fila do Coliseu. Mas nunca acreditei que ele viesse: perdoo-lhe.
 

sexta-feira, outubro 03, 2003

A recuperação semanal da infância (ou: por que odeio o Benfica)
(para o André, que percebe, e para o F., que não percebe)


(Paulo Futre, quando ele era ele e eu era eu)

Uma das coisas que me aborreceram nas primeiras crónicas de Marías coligidas no livro foi ele ser tão tipicamente Madridista, que é o equivalente espanhol a ser adepto do Benfica, o equivalente a ser adepto inglês do Manchester United, a ser flamenguista no Rio de Janeiro. E, no entanto, à medida que as páginas avançam e o Real Madrid se subalterniza face ao Barcelona (a segunda metade da década de 1990), Marías sofre uma espécie de metamorfose e acaba a escrever exactamente o que eu penso:

Contra a ideia primária que hoje domina em todo o lado (a única coisa que interessa é vencer), atrever-me-ei a dizer – e di-lo quem se iniciou no futebol admirando o Madrid de Di Stéfano e das cinco Taças de Campeão Europeu seguidas – que a vitória continuada que se exige no desporto se torna menos atraente e muito mais chã do que certa alternância com a derrota. Esta, sem dúvida, oferece mais vincos e rugosidades, mais complexidade e mais conflito – poderíamos dizer que é mais adulta num mundo que consiste na recuperação semanal da infância –, mais elegante, mais memorável.
[Marías, op.cit., p.153].

Quando eu era miúdo não detestava o Benfica, de resto o clube da minha irmã. No tempo do Eriksson (o primeiro Eriksson, bem entendido), do Chalana, da final da Taça UEFA contra o Anderlecht, eu ia tantas vezes ao Estádio da Luz como a Alvalade. Percebo muito mal os que dizem que são do Sporting por antibenfiquismo, e envergonha-me até ver os adeptos do meu clube cantarem obsessivamente hinos contra o Benfica quando o Benfica não está em jogo mas em concorrência directa com o Leiria ou o Marítimo na classificação.
Foi mais tarde que aprendi a odiar o Benfica. Acho mesmo que foi só quando percebi, também na segunda metade da década de 1990, a histeria em que os benfiquistas viviam a ausência de vitórias. O benfiquista é - ao contrário do Nietzsche e Schopenhauer - um fulano boçal e destemperado, que só entende a linguagem eufórica da vitória ou a depressão absoluta da derrota. Nunca vi em Portugal vaiar tanto uma equipa ao fim de dez minutos de jogo como os adeptos do Benfica fazem aos seus próprios jogadores. Para os benfiquistas típicos, como um que eu conheço ali, todos os jogadores do Benfica são os maiores do mundo até serem absolutamente péssimos: o João Pinto, por exemplo, estava "acabado como futebolista" no dia em que se transferiu para o Sporting. Quando eles sofrem assim histericamente, só desejo que sofram mais, e mais, e mais, para ver se um dia aprendem a sofrer condignamente.
Eu tinha nove anos quando o Sporting ganhou o antepenúltimo campeonato nacional, vinte e sete quando ganhou o seguinte. Essa vitória adiada ocupou praticamente toda a minha vida de adepto, e muitas vezes cheguei a perguntar-me se alguma vez assistiria realmente a isso. (Em selecções, não tive melhor sorte: adepto do Brasil desde pequenino, tive de esperar até aos 21 anos para ver o Brasil campeão do mundo, num jogo sem graça e ganho aos penalties).
Ser do Sporting não é a mesma coisa que ser do Belenenses, um clube de bairro, um clube que nunca ganha, que anda sempre pelos lugares intermédios. Para um sportinguista a vitória é uma possibilidade - mas a derrota também, e mais forte até. Estamos em jogo, podemos não o ganhar. No ano seguinte estaremos novamente em jogo. E estivemos dezoito anos assim, e agora não sei quantos estaremos.
No dia seguinte à vitória do Sporting no campeonato de 2000, o Luís Afonso, cartoonista do Público, desenhou aquele que, para mim, foi um dos seus cartoons mais memoráveis. Ao fim de dezoito anos a esfregar as mãos com a possibilidade da vitória, de dezoito anos de sucessivas derrotas, o adepto sportinguista olha para o jornal e vê a notícia esperada e inacreditável. No quadrinho seguinte está deitado no divã do psicanalista.
Não sei se o Luís Afonso é sportinguista; eu senti-me um pouco assim. Aquilo por que eu tinha esperado tanto tempo, tantas vidas, que tinha acompanhado tantas transformações pessoais, subitamente realizava-se, e eu não estava preparado para o que desejara tanto, desde há tanto tempo que tinha começado a acreditar que existia apenas como fantasia.
Lembro-me de nesse dia ter tentado falar sobre isto com um amigo, que não se interessou pelo assunto, provavelmente por ter achado que era «só futebol», que ele não entende. Mas, como diz Marías e outro amigo, o André, sabe muito bem (e eu sei que ele, um benfiquista dos verdadeiros, dos histéricos, sabe), "o futebol é a recuperação semanal da infância":

O normal é que o adepto de futebol o seja desde pequeno, e por isso reapareçam nele traços inteiramente infantis durante a contemplação de um jogo: o medo, a angústia, a alegria, a vergonha, a raiva, mesmo as lágrimas. Há indivíduos que no resto das suas actividades nunca deixam aflorar a criança que foram e que no entanto no futebol dão rédea solta sem corar às suas reacções mais pueris.
[Marías, op.cit., p.101].
 
Selvagens sentimentais


Li Marías, Selvagens e Sentimentais, em parte instigado por esses seus discípulos de que sou fã e que afinal me parecem até melhores que o mestre: Nietzsche e Schopenhauer. A colecção de crónicas sobre futebol reunidas neste volume não é extraordinária, embora haja passagens que o sejam.
A propósito do pontapé que fez parte da fama de Cantona - um que foi dado, não na bola, mas em jeito acrobático num adepto que o insultava, no meio de um jogo -, Marías, reconhecendo embora que "Cantona não devia ter-lho dado e é normal que seja castigado", escreve assim:

Se tivéssemos visto esta situação no cinema, não teríamos dúvidas acerca da reacção do herói, tê-la-íamos por certo aplaudido. Às vezes interrogo-me por que razão não sabemos interpretar a vida real com a mesma nitidez, com a mesma equanimidade, que um filme ou um romance. E penso que mais valia tentar vê-la sempre assim, como uma representação fictícia, confiando acima de tudo no nosso instinto de espectadores ou leitores, que falha muito menos que o nosso discernimento de cidadãos.
[Javier Marías, 2000, Selvagens e sentimentais - histórias do futebol, Lisboa, D. Quixote, p.59].

O que me lembrou uma das minhas frases favoritas de uma das minhas colecções de crónicas favoritas, as de Bénard da Costa de O Independente de 1988 e 1989:

Há cineastas, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprios.
[João Bénard da Costa, 1990, Os filmes da minha vida/ Os meus filmes da vida, Lisboa, Assírio e Alvim, p.139].

Mas talvez esta recordação não seja uma coincidência:

O futebol é semelhante em tantas coisas ao cinema que talvez por isso o seu mundo nunca tenha sido transportado para o ecrã: pareceria uma redundância.
[Marías, op.cit., p.21].
 
3 meses
Já nem me lembro como era a vida sem isto.
 

quarta-feira, outubro 01, 2003

O fim
Estamos tão apaixonados pelo blog que o nosso maior pesadelo é ligar o computador um dia pela manhã e ter desaparecido tudo.

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