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A Praia

«I try to be as progressive as I can possibly be, as long as I don't have to try too hard.» (Lou Reed)

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quarta-feira, junho 30, 2004

Early morning blog


Ninguém duvida da indignação e da preocupação que a actual situação política genuinamente me provoca. Mas, agora, com licença: estou a precisar de pôr aqui uma imagem de que goste para desanuviar.
 
Eleições já


O Público diz que ontem estavam 500 pessoas na manifestação em Belém; li que no domingo estariam 2500. Ambos os dados são de «olhómetro», e evidentemente ambos falsos. Estive nas duas do princípio ao fim, e o número de manifestantes foi semelhante, talvez ligeiramente superior ontem - nem 500 nem 2500. Embora, é certo, no domingo estivesse José Manuel Fernandes.
 
A posição de Pedro Mexia (3)
Afinal não é nim: desde que não seja Santana, é contra eleições antecipadas. Sobre isto não há muito mais a dizer do que o «Deixa ver se percebi» do Ricardo Araújo Pereira. É até muito «transparente». Paciência.
 
A posição de Pedro Mexia (2)
[Recebi do Pedro Mexia um email, que transcrevo. Os itálicos são, obviamente, dele.]

O meu nim
Como sabes, tenho andado um pouco ausente da blogosfera. Porém, uma vez que chamaste a atenção para o meu texto de ontem no Diário de Notícias, aproveito para deixar um pequeno esclarecimento. Mesmo porque outras pessoas se referiram a uma suposta posição dúbia ou esquiva da minha parte: o tal «nim».
Ora, se nesse artigo não tiro uma conclusão definitiva é porque, precisamente, não tenho uma opinião definitiva sobre a matéria. Não me parece que, num caso como este, exista necessidade absoluta de eleições antecipadas. Pelo menos em abstracto. Mas o caso concreto pode empurrar a situação para a conveniência de tais eleições.
A «legitimidade» a que me refiro não diz respeito apenas às antecipadas. Diz respeito a todas as eleições, dentro do âmbito próprio de cada uma. A «estabilidade», essa, é o cumprimento integral dos mandatos. Cumprimento esse a que Durão Barroso se furtou mas que, constitucionalmente, pode ser retomado pelo partido vencedor das legislativas. Não encontro nisso qualquer entorse à democracia.
A estabilidade e a legitimidade por vezes conflituam. Mas penso que, neste caso, ambas ficariam asseguradas com a nomeação, por exemplo, de um número dois do Governo ou mesmo de um membro do Executivo com experiência e credibilidade (como Marques Mendes). Com a nomeação de Santana Lopes, porém, essa legitimidade parece-me muitíssimo duvidosa.
É isto um «nim»? Paciência. Não me apetece fingir uma certeza que não tenho. A política nem sempre é assim tão transparente. Pelo menos para mim.
Pedro Mexia
 
Eu não devia estar bom da cabeça quando tirei este blog dos links
Desculpem. Leiam isto e os posts para trás.
 

terça-feira, junho 29, 2004

Exemplar
É sabido que a direita só tem uma bitola para avaliar as tomadas de posição de Freitas do Amaral: traiu/ não traiu. No entanto, se se derem ao trabalho de lhe escrutinar os argumentos, notarão o seguinte: o texto que assina hoje no Público não é bom; é exemplar.

Carta Aberta ao Presidente da República
Por Diogo Freitas do Amaral
Público, 29 de Junho de 2004

Ainda algo atordoado com o terramoto político que caiu sobre Portugal, não quero deixar de lhe pedir, respeitosamente, que, antes de tomar a sua decisão definitiva, pondere os aspectos que a seguir indico:
a) Embora, no plano jurídico-formal, as eleições legislativas tenham apenas por objecto a designação de 230 deputados, a verdade é que uma análise substancial de ciência política mostra claramente que elas tem hoje dois outros grandes objectivos - revelar o peso proporcional dos vários partidos, e escolher um primeiro-ministro. Foi o que se passou com Sá Carneiro em 1979 e 1980, com Mário Soares em 1983, com Cavaco Silva em 1985, 1987 e 1991, com António Guterres em 1995 e 1999, e com Durão Barroso em 2002.
b) Sendo as coisas assim, como são, temos de concluir que as chamadas eleições "legislativas" se transformaram numa escolha popular do primeiro-ministro. É por isso que Maurice Duverger chama democracias "directas" àquelas onde isso acontece, e "indirectas" àquelas onde o primeiro-ministro pode ser escolhido - sem eleições - por novos arranjos parlamentares ou por meras decisões das cúpulas partidárias. Não tenho dúvidas de que Portugal pertence, há pelo menos 25 anos, ao primeiro grupo; e seria muito mau, por várias razões, que deixasse de pertencer.
c) Agora que o primeiro-ministro decidiu voluntariamente apresentar a sua demissão (por motivos que não pretendo discutir aqui), penso que V. Exa. deveria contribuir para manter Portugal como "democracia directa", no sentido especial que a esta expressão dá Duverger. Durão Barroso foi primeiro-ministro em 2002 porque ganhou umas eleições; dado que sai do Governo, e que este cai, o próximo primeiro-ministro deve igualmente ser escolhido através de eleições. Era esta a proposta, lúcida e sábia, de Pierre Mendès-France na sua famosa obra "La Republique Moderne" - onde se defendia, com excelentes argumentos, que a escolha do primeiro-ministro deve pertencer sempre ao eleitorado, e não às "combinações" parlamentares ou aos "directórios" partidários.
d) Acresce que o país está em crise política, económica e social. O próximo Governo precisa de plena legitimidade política. Se Durão Barroso foi escolhido pelo voto de sete milhões de portugueses, deveremos achar bem que o seu sucessor - com todas as dificuldades que vai enfrentar - seja escolhido por 70 dirigentes partidários?
e) Há na nossa Democracia dois precedentes no sentido de não aceitar governos e primeiros-ministros que não tenham saído directamente de eleições: a recusa, pelo Presidente Eanes, do projectado governo de Victor Crespo (AD), em 1983; e a recusa, pelo Presidente Soares, do esboçado governo do PS-PRD, em 1987. É essa a boa prática constitucional portuguesa. E repare-se: no primeiro caso era até a mesma maioria parlamentar que propunha um novo primeiro-ministro dela emanado; só que ela não tinha ido a votos.
f) Dir-me-ão que, em sentido contrário, pode invocar-se o precedente da escolha de Francisco Pinto Balsemão, em 1981, por morte de Sá Carneiro. O caso não tem, contudo, analogia com a situação presente: primeiro, porque o País estava em estado de choque com a morte violenta de Sá Carneiro e Amaro da Costa, o que não era uma atmosfera propícia a eleições; e, depois, porque tinha acabado de haver eleições legislativas dois meses antes, e não faria sentido convocar novas eleições dentro de um intervalo tão curto. Diferentemente, agora, não houve qualquer morte violenta (felizmente); e as últimas eleições já foram há mais de dois anos.
g) É certo, por outro lado, que o País ganha em beneficiar com a estabilidade política e governativa. Mas quem quebrou a estabilidade, neste caso, foi o primeiro-ministro cessante, não foi o Presidente da República, nem o Parlamento. E alguém pode garantir-nos que um novo primeiro-ministro, escolhido sem eleições terá legitimidade política e autoridade institucional suficientes para assegurar estabilidade ao país?
h) Por todas estas razões, permito-me solicitar-lhe Sr. Presidente que dissolva a Assembleia da República e convoque eleições gerais para o Outono; para não converter a nossa democracia em "partidocracia". E que o faça antes de o PSD lhe propor qualquer nome, em concreto para o cargo de primeiro-ministro, de modo a não transformar uma questão de princípio numa questão pessoal.
 
A resposta à tentativa de sequestro
A esquerda não tem por que temer uma candidatura de António Guterres à Presidência da República: pior que Sampaio, talvez nem ele conseguisse fazer. A fasquia está a ficar muito alta.
 
Tentativa de sequestro
Se Durão Barroso nunca tivesse dito de Guterres o que disse e se tivesse aceitado o lugar de presidente da Comissão entregando ao Presidente da República a solução da questão interna - dispondo-se o PSD a assegurar o Governo ou a apresentar-se a eleições depois de substituir o seu presidente - não haveria nada a dizer.
O que é inaceitável é esta situação de sequestro da República - em que, depois de se ter ganho eleições com promessas eleitorais que se quebram no dia seguinte, se fazem promessas de fidelidade ao Governo que se quebram passados uns meses e se tem o desplante de, escassos dias após uma derrota eleitoral, pretender impor ao país e ao Presidente da República um primeiro-ministro que nunca foi a votos para tal e cuja prática nem sequer dá garantias de idoneidade ou continuidade da acção governativa. Que essa possibilidade existe do ponto de vista legal é evidente, mas ela é carente de qualquer legitimidade eleitoral.

[de José Vítor Malheiros, no Público de hoje]
 
A posição de Pedro Mexia
Nim. E conclui: «o Presidente deve tomar uma decisão que preserve dois elementos centrais da vida democrática: a estabilidade que não corrompa a legitimidade, a legitimidade que não esboroe a estabilidade.» A legitimidade, o texto é claro, são as eleições antecipadas. A estabilidade, hum, ora deixa cá ver... a estabilidade... a estabilidade... a estabilidade?!
 
A razão para antecipar
Deixem-me que faça uma coisa muito estranha: remeto para um post de Filipe Nunes que remete para mim (e que tem, ainda por cima, exactamente o mesmo título de um texto que entretanto eu já tinha feito seguir para o Público).
Mas Filipe Nunes diz várias coisas que me parecem importantes. A primeira é esta: a maior «honra» que pode ter um político em plena actividade não é – ao contrário do que sugere, por exemplo, Prado Coelho – um cargo internacional de nomeação. A vocação primordial de um político é, para o melhor e para o pior, o compromisso com os eleitores: é neste plano que ele tem de jogar o seu destino. Durão não «atinge» uma carreira europeia depois de se ter realizado perante o eleitorado; Durão salta para a Europa em virtude do seu fracasso como político e por causa do seu «baixo perfil». Como perceberam claramente diversas personalidades da direita – incluindo Francisco Van Zeller, Sarsfield Cabral ou mesmo Lobo Xavier e Pacheco Pereira nas suas eloquentes declarações na «Quadratura do Círculo» - «uma decisão destas não passaria pela cabeça de mais nenhum primeiro-ministro europeu». Como diz o Filipe, «isto diz tudo sobre a maneira como olhamos para a Europa e sobre a saúde da relação entre eleitores e eleitos em Portugal».
Um segundo aspecto da análise dele é o elemento em que se centra. Muitos convocam a manifestação de hoje «contra Santana», e eu aceito-o, na medida em que as pessoas têm sempre motivações diversas para se encontrarem num dado momento a favor de uma mesma plataforma política. Porém, do meu ponto de vista a questão central continua a ser Durão Barroso. Não porque imagine que Durão possa – ou queira – voltar atrás. Não porque eu não tenha suficiente consciência dos perigos que o projecto Santana-Portas acarreta (o acento tónico é, obviamente, no segundo). Mas porque penso que o elemento central de todo este episódio é o corte declarado, ostensivo, descarado, da relação de confiança que se estabelece entre um programa político, corporizado num primeiro-ministro e numa maioria parlamentar, e o eleitorado. É certo que houve circunstâncias históricas em que a relação de confiança entre eleitores e eleitos pôde não ser quebrada mesmo com a substituição do primeiro-ministro (1980). Mas essa não é a regra, nem é a experiência histórica predominante (1987, 2001). Mais: a situação actual notória e patentemente não configura uma dessas circunstâncias. A confiança dos eleitores nos partidos que governam está bastante debilitada. Mas – sobretudo – o eleitorado deu o seu voto a Barroso e ao PSD no pressuposto de que a interrupção de mandato de Guterres tinha sido uma «traição», e que tal comportamento não seria repetido.
Chegados aqui, argumente-se o que se quiser sobre as alternativas que vierem a apresentar-se a eleições: que são horrorosas, monstruosas; que Ferro é um chimpanzé, um gorila e um hipopótamo; ou, pelo contrário, que constituem variações políticas sobre as sete maravilhas do mundo. Serão o que forem. Em eleições anteriores, notoriamente não foram famosas: nem por isso deixei, pessoalmente, de ser capaz de escolher; mas, sobretudo, nem por isso deixaram de se fazer eleições.
Estamos desde sexta-feira mergulhados em plena crise política. A relação de confiança entre eleitores e eleitos foi quebrada, coisa que o prolongado silêncio que o primeiro-ministro ofereceu ao país sublinhou de forma ostensiva. Neste momento, ao contrário do que sugerem alguns comentadores, o Presidente da República não tem que «interpretar» a Constituição nem dar-nos «a sua leitura» dos poderes que ela lhe confere; para isso servem os constitucionalistas. Como toda a gente sabe, a Constituição permite-lhe dissolver o parlamento, como lhe permite empossar um novo governo com base no parlamento que existe. A única coisa que o Presidente tem de fazer é interpretar politicamente a crise e resolvê-la, dando posse a um governo em que o país manifestamente confie. Ora, só há, a meu ver, um único caminho para isso: eleições antecipadas. E é claro como água.

PS. Não se dispense também a leitura deste post.
 
O Outro
Temos, na minha opinião, como já disse, o privilégio de um ou dois extraordinários cronistas na imprensa escrita. Esta semana, Agualusa é inexcedível.

Coqueiros de Plástico
Pública, 27 de Junho de 2004
José Eduardo Agualusa

Na cidade do Sumbe, cerca de trezentos quilómetros a sul de Luanda, o palácio do governador está rodeado por altos coqueiros. Um deles, em frente à entrada principal, destaca-se dos outros, sobretudo de noite, porque é inteiramente feito de plástico e os seus cocos e as suas palmas acendem-se e piscam, freneticamente, como as luzes de uma discoteca. Lembra um daqueles objectos, Made in China, das lojas de trezentos, ampliado até à dimensão pavorosa de um coqueiro autêntico. No hall do primeiro hotel onde entrei à procura de um quarto para passar a noite reparei num tapete de pele de leão, com a respectiva cabeça, os ferozes dentes ameaçando os visitantes. Era de plástico. Nas paredes expunham-se troféus de caça, sólidas cabeças de veados e palancas. Pareceram-me igualmente de plástico. O hotel estava cheio. Nos outros hotéis, junto à praia, também não havia vagas. Finalmente consegui descobrir um quarto, a quarenta dólares, numa pequena pousada. Achei o quarto um pouco sujo. Não como um quarto sujo, mas como um erro. O candeeiro, pousado na mesinha de cabeceira, talvez fosse autêntico. Na parede, porém, não existia tomada onde o pudesse ligar. Em contrapartida havia uma televisão pequena sobre uma mesa e essa funcionava. Contei uns doze canais diferentes. Um canal europeu transmitia um documentário sobre a vida selvagem em África. Não sei onde filmam tais documentários. A África que eu conheço não se parece, ou parece-se muito pouco, com a África dos documentários europeus, e quando se parece é uma réplica - em plástico.
O olhar africano sobre África costuma ser também uma réplica, em plástico de segunda categoria, do olhar europeu. Na literatura, por exemplo, os europeus esperam que os escritores africanos escrevam apenas sobre África, de preferência a África dos documentários sobre a vida selvagem. Os escritores europeus, esses, podem escrever sobre qualquer tema ou realidade. Fica-lhes bem, inclusive, escrever sobre realidades exógenas, sinal de que se interessam pelo Outro. O Outro, contudo, em especial se for africano, não deve exceder o estreito limite do seu quintal, e o respectivo folclore. A saber: os conflitos entre as sociedades rurais e o mundo urbano, a miséria, guerras civis, etc., tudo isto de mistura com a, assim chamada, tradição oral. No caso dos africanos lusófonos espera-se ainda que escrevam num português de fantasia, enfeitado de neologismos, senão mesmo um tanto trôpego, que alguns portugueses supõem ser o português falado em África. Dois ou três ficcionistas, e estou a pensar sobretudo em Luandino Vieira e Mia Couto, conseguiram, pela força do seu imenso talento, dar a volta a tal imposição, criando, não obstante, uma obra singular, e de interesse universal. Outros deixaram-se cair na armadilha e é vê-los a ornar os seus romances com cabeças empalhadas de palancas e girafas e rinocerontes, em plástico colorido, e luminosas. Curiosamente, alguns dos que se reivindicam herdeiros da rica tradição oral africana falam apenas português, e não têm ligação alguma ao mundo rural.
Os músicos (a música popular africana está muitas décadas à frente da literatura) enfrentaram, a seu tempo, armadilha semelhante, mas souberam ultrapassá-la. Hoje, felizmente, já ninguém se insurge contra o facto de Ray Lema gravar um álbum com as Vozes Búlgaras, mas houve um tempo em que ousadias desse tipo eram classificadas como alienação.
Os criadores latino-americanos também passaram pelo mesmo. Num dos seus livros mais divertidos, Um Brasileiro em Berlim, João Ubaldo Ribeiro conta os equívocos com que teve de lidar aquando da sua estadia na Alemanha, beneficiando de uma bolsa de criação literária atribuída pelo Deutsche Akademische Austausch Dienst (DAAD). Em todas as leituras e debates os alemães insistiam no mesmo - e os índios? Debalde Ubaldo alegava a sua vivência urbana para justificar a ignorância do tema. No Rio de Janeiro, onde reside, vêem-se nas ruas pessoas de todas as raças. Negros, brancos, mulatos, japoneses, etc., mas índios não. Os alemães, porém, queriam saber dos índios. Até que finalmente, já vencido, João Ubaldo passou a apresentar-se como índio.
Para muitos europeus o mais difícil não é aceitar as diferenças do Outro. O mais difícil é aceitar que o Outro, afinal, talvez não seja diferente.
 
Agustina ao Público (III): por que escreve?
P. Há quem diga que a escrita é uma forma de alcançar a imortalidade.
R. Não acho. Isso é tão vago. Porque 50 anos depois podemos estar completamente esquecidos. São outras gerações que vêm e que têm as suas preferências, a sua própria cultura.
P. Não a inquieta a possibilidade de daqui a 50 anos ninguém a ler?
R. Não, absolutamente nada. Espero nessa altura não me impressionar com isso.
P. Escreve por necessidade, impulso ou obrigação?
R. Por dom natural. Nasci escritora e tenho o gosto da escrita. Depois vem a relação com o público e com todos estes fantasmas que são as memórias.

[Agustina ao Público]
 
Agustina ao Público (II): sobre Saramago
Os jornalistas insistem com Agustina para que ela diga mal de Saramago, revele inveja, ou desprezo. Não despreza, não amesquinha; mas não esconde que não gosta:

«Não gosto, já o disse. Não é da minha família de escritores. Nós não temos afinidades. Se eu gosto de Dostoievski e Musil, por exemplo, evidentemente que não é satisfatória para mim a leitura de Saramago.»
 
Agustina ao Público
Nunca fui muito sensível aos prémios. Sou sensível ao lucro que um prémio pode representar. Gosto de dinheiro. Gosto de receber uma satisfação que se transforma numa possibilidade de me dar liberdade, de me dar as coisas que quero e de que gosto, de desfrutar da vida. (...) Não gosto de presentes. Gosto de ser paga.

[Agustina ao Público]
 
Duas direitas
Nunca pensei dizer isto. Não conto dizer mais que isto. A leitura atenta do Acidental de segunda-feira, 28, post por post, é imensamente instrutiva.
 

segunda-feira, junho 28, 2004

A crise
Barroso finalmente falou. Pretende ainda conversar com «o seu governo» e procurar uma solução que «evite a instabilidade política». Aparentemente, não se deu conta de que a crise começou na sexta-feira e que o seu governo já não existe. Nos ministérios e nos gabinetes hoje não se trabalha: nos primeiros hesita-se e especula-se, nos segundos intriga-se.
A questão não é evitar a crise: é procurar um governo legítimo e duradouro. No quadro actual, isso só pode obter-se através de eleições.
 

domingo, junho 27, 2004

Les jeux ne sont pas encore faits
Passado o tom fúnebre dos posts iniciais, Pacheco Pereira está agora mais optimista. Às 20h03, escreveu finalmente: «Só há uma maneira – e vai ter resultados.» Curiosamente, tive a mesma sensação mais ou menos pela mesma hora, vinha eu a sair da manifestação em frente ao Palácio de Belém contra a qual Pacheco avisou. Seria «difícil fazer melhor para obter os resultados exactamente contrários aos pretendidos» - disse ele ontem, na sua omnisciência. Mas hoje, felizmente, acordou alertando contra o pecado moral da acédia: «a apatia, ou a indiferença perante (...) o espectáculo do mal. Sabemos que está mal, mesmo muito mal, e ficamos calados. Acédia. Vai-se para o Inferno por isso» (9h37). Cerca de 1500 pessoas devem ter pensado o mesmo e, convocadas por email, blogs ou sms de ontem para hoje, apareceram em Belém. Acho que elas também acreditam que «o principal factor é o tempo real, e isso dá uma força especial aos blogues nestes momentos de interesse colectivo» - reflexão de Pacheco das 22h25; mas não se atrasem, porque pode entretanto haver outra de sentido contrário.
Desde que a notícia da candidatura de Durão Barroso a Presidente da Comissão rebentou, passaram mais de 48 horas – o chamado «tempo irreal», se tivermos em conta que, depois de declarações da actual presidência da União e de líderes de diversos países europeus, o único silêncio que se mantém é o do primeiro-ministro português: Barroso ainda não achou ocasião para dirigir uma palavra ao país que o elegeu e que ele supostamente dirige. A perplexidade e o desconcerto que isto gera devem ser aquilo a que a direita chama «estabilidade política».
Pelo meio, Pacheco Pereira – neste ponto acompanhado por Vital Moreira, o constitucionalista cuja cabeça os últimos acontecimentos deixaram notoriamente baralhada – tem tempo para lamentar (9h18) este «pobre país – sem oposição», embora as direcções do BE, do PCP e, indirectamente, do PS já tenham deixado claro que não admitem outra solução que não a de eleições antecipadas. Como nem Pacheco nem Vital disseram claramente o mesmo, pergunto-me que expectativas alimentam em relação à oposição; talvez uma versão política da Senhora de Caravaggio?
Por fim, incidentalmente: exceptuando João Soares, todos os dirigentes do Partido Socialista que têm andado a afiar as garras à espera do momento certo para desalojar Ferro Rodrigues (Sócrates, Costa, Assis, e outros, e outros) estão notoriamente em pânico perante a perspectiva de eleições antecipadas. Só a direcção de Ferro prefere esse caminho. E esta situação parece-me, na verdade, a ideal, pois se Ferro quiser ganhar as legislativas é melhor que seja sem eles - e contra eles.
 

sábado, junho 26, 2004

Político, e não jurídico
Quem, para discutir o significado político do que está a acontecer, me invoca o artigo da Constituição que diz que, nas eleições parlamentares, eleitos são os deputados e não o governo, não merece, politicamente, o meu respeito. O regime político em que vivemos hoje tem sido por vezes caracterizado como «semi-presidencialista de primeiro-ministro», para evidenciar a supremacia do governo e do seu líder, que se apresenta sempre a eleições como «candidato a primeiro-ministro» (ainda que formalmente o não seja). A Constituição dá obviamente latitude para várias soluções. Mas nem tudo o que é constitucionalmente admissível é em todas as circunstâncias politicamente admissível. A Constituição fornece o enquadramento, não fornece a decisão. Quem quiser defender a ausência de eleições antecipadas desta vez, terá que o defender com argumentos políticos – não jurídicos.
 
«The unassuming prime-minister»
De um certo ponto de vista, Durão Barroso como presidente da Comissão Europeia é o homem certo no lugar certo: «Mr Barroso é um dos menos conhecidos líderes da União Europeia, mas a sua relativa obscuridade permitiu-lhe aparecer como um candidato de compromisso», diz o Financial Times, que acrescenta: «Os Estados membros prestam homenagem retórica à ideia de que é necessária uma Comissão forte, capaz de desenvolver novas políticas, fazer cumprir as regras da UE e dirigir serviços eficientes; mas na prática poucos toleram receber instruções de Bruxelas.» Ora, Barroso está congenitamente talhado para testa-de-ferro de uma burocracia não-eleita; para procurar compromissos e ser mandado por outros. No PSD e no governo, Durão era já a figura que vários sectores aceitavam por não estarem dispostos a submeter-se a Lopes, e que Lopes tolerou por saber que se tratava de um obstáculo facilmente contornável. Não fosse o buraco do Marquês, e o projecto presidencial de Santana – um projecto de liderança carismática, não o de um presidente corta-fitas – estaria até hoje prosseguindo alegremente o seu caminho. A incapacidade política de Barroso era evidente para o próprio partido, pelo menos desde o dia em que, em congresso (creio que em 2001), Durão, de cabeça perdida, chamou a Santana «mistura de Zandinga e Gabriel Alves», para, em seguida, regressar com embaraço ao palco e pedir desculpa «apenas ao partido».
Politicamente, Barroso, que sempre foi uma nódoa, sai de boa-vontade; Lopes, mitómano, faz finalmente o que sonhou; e Sampaio condescende com tudo. Embora constitucionalmente admissível, a solução tem zero de legitimidade política. Vital Moreira «compreende» que o Presidente da República não convoque eleições antecipadas uma vez que «certamente [essa] era uma condição de Barroso para ir para Bruxelas, colocando sobre o Presidente a culpa por uma eventual recusa do cargo.» Mas que o Presidente da República admita chantagens naquilo que é o núcleo essencial dos seus poderes só pode compreender-se partindo do pressuposto de que o que distingue Sampaio é ser tíbio.
Se Barroso quer ir, que vá; o país não deve nem pode ficar refém das suas «condições».
 
A honra do corno
Os mais desembaraçados comentadores políticos da direita assinalam que Durão «troca o Alverca pelo Manchester United» e que o país deve agradecer-lhe por isso. Aparentemente, não se deram conta de que aquilo a que chamam «o Alverca» é o próprio país. Eis a honra: o nome do «Alverca» será conhecido pelo mundo - todos saberão que foi trocado por uma coisa maior. Historicamente, trata-se de uma escolha inédita: nunca ninguém abandonou o cargo político mais importante do seu país para presidir ao órgão não-eleito da União Europeia, a Comissão. Mas dá-nos o que se chama a honra do corno. Com o devido respeito, também eu penso que as minhas ex-namoradas que me puseram os patins podiam ter feito melhor. Se me tivessem mandado às malvas para poderem aproveitar – digamos - uma ida ao cinema com García Bernal, um passeio com Stefano Accorsi, uma tarde com José Eduardo Agualusa, eu teria até agradecido. Ainda que humilde, um homem tem direito a sonhar – ou não?
 
Self-respect
Que uma personalidade menor, um primeiro-ministro por acidente, tenha, nos seus devaneios íntimos, contemplado o desejo de fugir do partido, que não controla, e do país, que não melhora, para se tornar no chefe de uma burocracia internacional não-eleita, não me surpreende: politicamente é uma despromoção, mas o homem visivelmente não está talhado para a política e para as suas chatices. Que esse dirigente político, por menor que ele seja, ache que pode de facto concretizar o devaneio, é bastante espantoso. Que isso seja tolerado, saudado e até aceite como moeda de troca para não convocar eleições por uma parte do país e pelo Presidente da República, é verdadeiramente inaudito. Será pago nas urnas, severamente, em 2005 e em 2006 (duas vezes); mas o nível de desprezo que vai propiciar, pela classe política em geral, conhecerá mais um valente impulso.

Para certas pessoas, certamente mal-formadas, o primeiro-ministro devia ter publicado a semana passada o seguinte comunicado: «Não me ocorreu em momento algum abandonar as responsabilidades que livremente tomei. Por respeito pelos portugueses, pela democracia e por mim próprio.»
[Vasco Pulido Valente, no DN de hoje]
 
À moda do PCUS (II)
Já é doutrina: não se discute se deve haver eleições, discute-se se deve haver congresso do PSD. A ideia de que o próximo governo tenha de esperar por um congresso do PSD, mas, em nome da «estabilidade» política, não possa ficar suspenso de eleições gerais é verdadeiramente peregrina.
 
O remodelado
Os comentadores políticos discutem a saída do primeiro-ministro como se ela implicasse uma remodelação governamental, e não - tanto jurídica como substantivamente - a formação de um novo governo. Deve ser esta a marca da liderança de Durão Barroso: o remodelado é ele.
 
À moda do PCUS
Na televisão, o director do Público diz que, embora formalmente o Conselho Nacional do PSD tenha poder para designar um novo líder e candidato a primeiro-ministro, lhe parece que do ponto de vista da legitimidade política é necessário um congresso. Não umas eleições gerais - um congresso do PSD.
 

terça-feira, junho 22, 2004

Esta frase não é necessariamente sobre o Marx
É sobre um assunto em que eu tenho imensas vezes de me conter para não arranjar mais inimigos em público.

To misrepresent Marx, after having dropped his name in a show-offy way, is like carrying around a motorcycle helmet without actually owning the bike.

Todos os grupos sociais têm os seus inconvenientes, mas se se convive mal com isto o universo académico não é uma opção muito recomendável. Desconfiem de todos os textos em que os nomes dos autores e os títulos dos livros citados estiverem mal grafados.
Entretanto, o texto para que o maradona fez link e donde eu tirei aquela frase é também de grande mérito por desancar de cima a baixo um autor desprezível, de que eu só li um livro, uma coisa supostamente sobre o Proust, e na verdade não até ao fim porque a minha paciência não chegou até lá.
Por fim, a frase citada conclui-se com a consoladora ideia de que

It might get you the girl, but eventually she’ll want to go for a ride

mas não acreditem, porque não é assim, pelo menos não em Portugal.
 

segunda-feira, junho 21, 2004

Solstício de Verão
A Julliette Lewis fez hoje 31 anos. Depois de Husbands & Wives (Woody Allen, 1992) e Cape Fear (Scorsese, 1991), não melhorou nada. Eu também não.
 
O meu personagem da semana
[ou: a minha forma de hastear a bandeirinha]



Só Luiz Felipe Scolari, evidentemente, pode ser o meu personagem da semana. Dois anos e uma derrota no jogo de estreia do campeonato europeu mais tarde, este especialista do futebol mundial acedeu a que jogassem os jogadores que toda a gente sempre achou que deviam jogar. Não vou falar de Vítor Baía porque é tarde para falar de Vítor Baía. Eis o grande mérito de Scolari: pela módica quantia de quinze mil contos por mês durante dois anos, dispôs-se a sair da frente. Ele é o brasileiro que antes de chegar a Portugal ouviu muitas anedotas sobre portugueses – e as levou à letra. A sobranceria com que chegou, de campeão do mundo que vem ensinar futebol aos nativos, não engana.
Consta que num comício do Bloco de Esquerda Fernando Rosas se terá referido a Scolari como apoiante de Pinochet. Não sei se Rosas realmente o disse; não sei se Scolari efectivamente o foi; mas pinochetista é em qualquer caso a forma mais exacta de descrever a mistura de burrice e teimosia que caracteriza o actual seleccionador nacional.
No plano táctico, Scolari é um discípulo das mais velhas, das mais tacanhas tradições do futebol luso: a vitória sempre miserável, sempre com o crucifixo no lábio e a Senhora de Fátima agarrada contra o peito. Se o futebol é «a recuperação semanal da infância», os últimos vinte minutos do jogo de ontem permitiram-me sentir-lhe o seu intenso gosto. Foi como regressar aos últimos seis minutos do França-Portugal de 1984; ao Sporting-Barcelona de 1986 em que fomos eliminados a quinze minutos do fim (depois de entrar o Gabriel); ao Alemanha-Portugal de Estugarda, 16 de Outubro de 1985, em que durante a última meia-hora levámos com a bola em todos os pedacinhos do poste.
Portugal jogou com garra e determinação, mas com o credo na boca e fraca auto-confiança. Atacámos bastante durante alguns momentos da primeira parte, mas passámos muitos calafrios. O golo fortuito de Nuno Gomes foi sem dúvida belíssimo, mas nem por isso menos fortuito. Mourinho estava a explicar, desde a meia-hora, por que é que o Costinha não podia jogar como terceiro defesa-central, e por que é que, em consequência disso, o Maniche não rendia o suficiente nem a bola chegava aos pés do Pauleta. Nunca tivemos o jogo seguro: não é preciso extraordinária memória para lembrar isto, basta ler a cronologia feita no momento pelo José Mário Silva. No final, quando era preciso segurar a bola e explorar o contra-ataque, a substituição de Figo e Ronaldo por Petit e Couto foi rasgo de antologia. Rui Costa assistiu do banco. É certo que podíamos ter marcado em três ocasiões nos últimos quatro minutos; mas também é certo que o Porto, que em 2003 e 2004 ganhou às melhores equipas da Europa, nunca passou a última meia-hora encafuado na sua metade do campo.
É pois Scolari o cretino fundamental. Oxalá o seu papel nos próximos jogos seja o de contar sempre cada vez menos.
 


Nicole Kidman, 37 anos ontem, 20 de Junho.
 
Eu não conseguiria dizê-lo melhor
A Inglaterra seria um país de merda se não tivesse Londres.

Existem aulas a mais [nas universidades portuguesas]. Não é o sistema inglês que é muito comprimido, mas o sistema português que é demasiado expandido. Há imensa tralha nos cursos que não é necessária, aulas que não são precisas. Tudo isso absorve o tempo das pessoas que ensinam e o dos alunos, que deviam estar a fazer coisas mais interessantes.

[João Magueijo, à Pública: a entrevista é toda tão boa que fiquei com vontade de conhecer o homem.]
 

sábado, junho 19, 2004

Tant pis
Consigo facilmente pensar em pelo menos oito equipas que mereceriam passar aos quartos-de-final deste Europeu: República Checa, Holanda, Dinamarca, Itália, Suécia, Espanha, França, Inglaterra. Infelizmente, nenhuma delas é o país organizador.
 
Múltiplos

Holanda, 2 - República Checa, 3

Candidamente, eu até hoje pensava que isso dos orgasmos múltiplos era pura mitologia.
 
Fortaleza


A minha tristeza não é feita de angústias
A minha tristeza não é feita de angústias
A minha surpresa

A minha surpresa é só feita de fatos
De sangue nos olhos e lama nos sapatos
Minha fortaleza

Minha fortaleza é de um silêncio infame
Bastando a si mesma, retendo o derrame
A minha represa

[Chico Buarque - Ruy Guerra, 1972-73, no álbum Chicocanta]
 
Anti-Chico Buarque


Chiquérrimo – como lhe chamava Vinícius – faz hoje sessenta anos. Eu não sou um buarqueano, ao contrário da fama que injustamente ganhei na blogosfera; injustiça a meu favor, mas injustiça. Nem conheço adequadamente a obra e a biografia de Chico Buarque, nem o venero o suficiente para ser chamado de Buarqueano. Aqui para nós, Chico para mim está praticamente morto há quase vinte anos: os discos anteriores a 1970 conheço mal, e dos posteriores a 1984 de forma geral não gosto (com a parcial excepção de Para Todos). É certo que comprei Budapeste da última vez que fui ao Rio de Janeiro, mas para oferecer; se chegar a lê-lo, terá que ser emprestado. Chico ao vivo, em show, é uma lástima; e a sua voz é desde meados da década de oitenta uma ruína. Sou na verdade fanático de apenas nove discos de Chico Buarque; mas não sou tão pouco o buarqueano típico, porque o Chico de que eu mais gosto é meio áspero, e não a versão doce e «feminina» de Meus Caros Amigos (1976), o álbum das idolatradas «Mulheres de Atenas» ou «O Que Será», que não aprecio. É claro que só uma besta quadrada – y sí, las hay – poderia ficar indiferente ao Chico lírico das parcerias com Vinícius («Gente Humilde», «Samba de Orly», «Valsinha», «Olha Maria») ou de Atrás da Porta, Geni e o Zepelim, «Terezinha», «Cálice»; mas ainda assim acredito que há uma escolha a fazer entre a linhagem MPB que vem de Vinícius a Chico e a linhagem Bossa Nova que vem de João Gilberto a Caetano; e eu não tenho dúvidas do lado em que me situo.
Depois, Chico é belo - dizem-me (e a minha amargura já vai neste dizem-me). Não é a primeira nem a segunda mulher que só por falar em Chico começa a tratar-me como um substituto de sexta categoria. Bonito? O homem é um desastre: vejam a horrível participação que ele tem em Água e Sal, esse péssimo filme de Teresa Vilaverde. Chico está morto, e ademais eu prefiro a beleza supostamente efeminada de Caetano Veloso a essa voz grave, pausada, insinuante, ao olho verde, de Chico Buarque.
Nada o salva hoje a não ser o facto de ser tricolor, isto é, adepto do Fluminense - para minha surpresa, que até ontem o imaginava flamenguista. Por aí se vê que não sei nada de Chico Buarque, positivamente nada: um buarqueano nunca confundiria um tricolor com um adepto desse clube maioritário, desse autêntico Benfica do Rio de Janeiro, que é o Flamengo.

PS. Quando tiverem ocasião, lembrem-se de ouvir pelo menos «Fado Tropical», «Fortaleza» (1973), «Me Deixe Mudo» (1974), «Pelas Tabelas», «Samba do Grande Amor» e «Vai Passar» (1984 - como diz o André Belo, o melhor samba de todos os tempos). E agradeçam ao Filipe Moura o trabalhinho que ele tem tido, sistemático e em mp3, a partilhar a obra do Chico na blogosfera. É de lá que tenho feito a minha pilhagem. Salve!
 
Um passado banal

E sempre teve fama de ser bonito

O Raimundo Narciso tornou-se militante do PCP em 1959, viveu dez anos em duras condições de clandestinidade, assumiu responsabilidades políticas importantes e acabaria por ser expulso do seu partido em 1991, por ter levado a sério a perestroika. Conheci-o por essa altura, na Plataforma de Esquerda, uma organização política onde ainda se cultivava um dos melhores aspectos da tradição comunista: uma camaradagem estritamente igualitária que fazia com que eu, que ainda não tinha dezanove anos, pudesse falar de igual para igual e tratar por tu pessoas que, na sua maioria, tinham só de anos de actividade política mais do que a minha idade. O Raimundo, em particular, sempre se destacou como um exemplo de humildade, cordialidade, completa ausência de arrogância ou de um mínimo de vaidade. «Não concordo que [o meu passado] tenha sido qualquer coisa de glorioso. É um passado banal, se se tiverem em conta as circunstâncias», disse ele há cerca de três anos ao Expresso, numa peça jornalística em que se percebe que a experiência do Raimundo não tem muito de banal.
Embora politicamente frustrada, a passagem pela Plataforma de Esquerda, a mim que nunca fui militante ou sequer simpatizante do PCP, marcou-me muitíssimo, em muitos aspectos. O Raimundo e alguns amigos que conheci nesse tempo têm agora um blog, o Puxa Palavra. Com a memória desses tempos, mando-lhes um abraço.

PS. Acabo de descobrir que o Raimundo tem um outro blog, mais pessoal, Memórias do Presente, que merece visita. Sobretudo este post, que explica por que é que, para os comunistas, mais difícil que comer criancinhas era tê-las.
 

sexta-feira, junho 18, 2004

Como começar um texto
Se não me tivesse falhado o físico, gostava ter sido futebolista ou chulo. Futebolista?, perguntarão alguns.

[David Trueba, cineasta espanhol, no Público de hoje]
 

terça-feira, junho 15, 2004

Maravilha: Jorge Maravilha


A 2 de agosto de 1990, o Iraque invadiu o Kuwait. Soube da notícia pelo telejornal da uma da tarde, num café em Vilamoura. Pensei: «lá estão os árabes». Nos dias seguintes estive em regime de internato com o Diogo e o Rufino, os autores do template desta página, e alguns amigos deles, numa casa em que não entravam notícias. No princípio de agosto desse ano fazia um calor brutal, mas nós também nunca chegámos à praia antes das oito da noite. Havia dois discos na casa, que tocavam num gira-discos de plástico: o «Pano-Cru», do Sérgio Godinho, e «A Arte de Chico Buarque». Ouvimos mil vezes «O Homem Fantasma»; mas ouvimos um milhão o «Jorge Maravilha». Eu acordava cedo, sempre mais cedo que eles, pelas duas ou três da tarde e, desesperando com a demora, punha o Chico aos gritos: «você não gosta de mim/ mas sua filha gosta».
A não ser no vinil, que não ouço, nunca mais encontrei essa música até hoje. Até hoje, que o Blogue de Esquerda resolveu lembrar-se do assunto. Bem-hajam.

(Ao fim de quase uma semana regressei ao convívio social. Nessa altura a coisa «dos árabes» era afinal o primeiro acontecimento político significativo da década.)
 

domingo, junho 13, 2004

Este rapaz


Por que gosto tanto deste rapaz? A parte do filme de Almodóvar em que entra o jovem Ignácio é a minha preferida: por causa da paixão que escraviza o padre Manolo, com a qual ele escraviza Ignácio; por causa da paixão de Ignácio por Enrique, por causa da qual Ignácio chuta a bola para fora quando podia marcar um golo a Enrique; e talvez sobretudo pela forma como Ignácio quase não oferece resistência aos abusos do padre. Para tentar proteger Eduardo a quem ama, sim – mas talvez sobretudo porque o ódio pelo padre lhe está tão profundamente entranhado que deixou de ser necessário resistir. Ignácio entrega-se ao padre como a mulher aos crocodilos.
Lembra-me Alexander, de Fanny e Alexander (Bergman, 1982). Há uma cena em que o padrasto quer forçá-lo a confessar já não sei que delito, e Alexander resiste. O padrasto bate-lhe violentamente, açoita-o com um cinto, e Alexander chora, engole a dor, e resiste. E há depois um momento em que Alexander já não resiste e diz tudo: tudo o que o padrasto quer que ele diga. A confissão já não vale nada. O padrasto não ficou com Alexander, ou com a sua dignidade, mas apenas com a carcaça, apenas os destroços.
Claro, o Ignácio mais velho é apenas destroços – e a velha paixão por Eduardo. O padre também. La Mala Educación não é um filme sobre culpados e vítimas, ou as «circunstâncias» que «fazem» de uns culpados e outros vítimas. O filme – se faz algum sentido «resumir» o filme – é sobre paixões e destroços: o melhor e o pior, o melhor no pior, o pior no melhor. Enfim, Almodóvar.
 

quinta-feira, junho 10, 2004

O povo que venha cá
Muitas vezes nos impressiona como indivíduos inteligentes e honestos caem, como dirigentes políticos, em tiques, em erros, em baixezas, que, estando fora da política, eles evidentemente repudiariam. A metamorfose não resulta da necessidade de se degradarem para chegar ao «povo»; como é óbvio, «o povo» só vagamente é para aqui chamado. Pacheco Pereira explica isto muito bem.

Morto pela Morte Inexorável e Morto pela Campanha Evitável
Por José Pacheco Pereira
Público, 10 de Junho de 2004

Anteontem tinha começado a escrever uma nota para o Abrupto sobre a inutilidade e o arcaísmo deste tipo de campanhas eleitorais, que ia colocar hoje em linha. Infelizmente, a pior das confirmações do que lá escrevia deu-se com a morte súbita de Sousa Franco, morto pela Morte, mas certamente auxiliada, na sua tarefa de ceifeira inexorável, pela forma absurda como se continua a fazer campanha em Portugal.
O absurdo destas campanhas eleitorais é total. Exaustivas, cansativas, feitas sem qualquer consideração pelos candidatos que andam, como sonâmbulos, de rua em rua, de asilos de velhinhos para mercados, a ter que entrar nesta loja comercial porque o sr. X é um "apoiante nosso de há muitos anos", ou a tomar um café, o décimo milionésimo, no café do sr. Silva, que é "dos nossos". A julgar pelo espelho das campanhas eleitorais, os grupos sociais e profissionais mais importantes para o voto em Portugal são os velhos dos lares, os doentes dos hospitais, os feirantes, as peixeiras e as donas de casa a fazer compras. O Portugal que se procura é constituído, em primeiro lugar, pelas audiências partidárias, presentes em jantares e comícios, depois pelos "populares" que frequentam sítios onde há muitos "populares", os mercados, as feiras e as ruas centrais das cidades.
Apesar de, há muito, todos suspeitarem que este tipo de campanhas não acrescentam um único voto, e muito menos mudam algum, a verdade é que tudo continua sempre na mesma. Há uma enorme resistência à mudança e convém perceber porquê. O único objectivo destas campanhas é esfregar o ego das estruturas partidárias que querem andar a passear os candidatos, e a mostrar a sua importância. Duvido que se ganhe um voto em tais exercícios e, para além disso, este tipo de campanha não deixa verdadeiro espaço a qualquer outra coisa distinta.
Se as campanhas fossem diferentes, com a ênfase na utilização dos meios de comunicação social, nacionais e locais, e no debate propriamente político das diferenças entre candidaturas, em locais mais próprios do que as feiras, as estruturas partidárias sentir-se-iam minimizadas e como peixe fora de água. A prazo, para manterem um papel, teriam elas próprias que mudar. Mudar o tipo de actividades que conduzem, mudar o perfil dos seus dirigentes. Evoluir de máquinas eleitorais arcaicas, funcionando como "sindicatos" junto do próprio partido e junto do poder autárquico, e nacional, a passar a exercer uma função de pedagogia cívica que é suposto legitimar os partidos para além do exercício do poder. Não só, mas também.
Na última campanha eleitoral que fiz para o PE, vivi dentro de um carro que percorreu cerca de 20.000 quilómetros em 15 dias, num país pequeno como Portugal. Andava de almoço para jantar, almoços e jantares em que havia enorme renitência em que se falasse no princípio e se tinha que esperar horas, em ambientes superaquecidos, e com refeições pesadas à portuguesa. Lá no fim, falava uma longa série de oradores, o presidente da jota local, o presidente da concelhia, o mandatário local, algum convidado especial e o candidato. Às vezes, saía-se a correr para ir a outro jantar fazer a mesma coisa. Nos intervalos, visitavam-se as feiras e os mercados obrigatórios, e uma longa série de visitas a instituições empresariais, a "lobbies" locais, a eventos que coincidem com a campanha e que têm "gente". Foi assim que assisti a um ou dois jogos de futebol e até a uma corrida de cavalos.
O dilema é sempre o mesmo: se não se faz, dizem-nos, é uma desgraça eleitoral, os potenciais visitados ficam zangados e isso é "muito mau para o partido". Na última campanha, recusei-me a visitar asilos, lares da terceira idade e hospitais, mas havia protestos contra essa decisão e sub-repticiamente lá apareciam no programa as "instituições de solidariedade social muito importantes", que depois se percebia serem dirigidas por um notável do PSD. Sendo assim as campanhas, a ninguém espanta o prazer que tive, num dia, em fazer uma pequena viagem de barco artesanal, numa "photo opportunity" é certo, mas que tinha a vantagem de ter o ar do mar e o vento salgado e, apesar de tudo, alguma solidão para pensar.
Estas campanhas são também caras porque são precisas as "ofertas" para distribuir na rua, e a elas se sobrepõe, normalmente a nível nacional, uma dispendiosa campanha de "marketing" e publicidade. Os materiais de campanha são exigidos veementemente porque facilitam um "trade-off" nas feiras e mercados entre candidatos e "populares". Os acompanhantes ficam muito inseguros, se não tiverem nada para dar. Os "populares", por sua vez, também esperam receber alguma coisa: "Não tem aí uma canetinha para o meu neto?"
Os jornalistas gozam com estas campanhas, mas são instrumentais em mantê-las, sendo, como quase sempre são, bastiões do conservadorismo. Se não se ia "para a rua", distribuir canetas e autocolantes, era porque se era elitista, ou se estava mal com o "povo", ou "passava-se mal". Os jornalistas da televisão necessitam, como de pão para a boca, da cor da rua, do eterno beijo, do dichote antipolíticos, do ocasional "vai trabalhar, malandro", do encontro entre candidatos diferentes numa mesma feira (um "must" televisivo que dá sempre), do "soundbite" diário, recolhido à volta de uma qualquer peripécia irrelevante.
*
Ninguém sabe quando e porquê a Morte vem, mas que o seu trabalho sinistro foi auxiliado, não me sobram dúvidas. Sousa Franco dedicou-se completamente ao combate político das europeias e fez o que lhe foi pedido pelo partido de forma generosa até ao limite das suas forças. Tinha que estar cansado, muito cansado. Se a sua morte puder contribuir para se pensar de novo as formas de fazer política em Portugal, será mais uma das contribuições cívicas que deu ao país na sua carreira pública.
 

quarta-feira, junho 09, 2004

Fim de feira
Tentar saber se a síncope que vitimou Sousa Franco foi «culpa» da palhaçada do mercado de Matosinhos não tem, obviamente, nenhum sentido. Independentemente disso, há algo de vexatório em que as últimas imagens de fulano tenham sido captadas no meio de empurrões e gritaria. No futuro, deve ser possível ser candidato a eleições - e para vencer - sem ter que passar pelo ritual dos beijinhos e abraços; começa a suspeitar-se de que não cativam o voto de ninguém e, pelo contrário, são pretexto para a chacota de todos.
 
Antes do perdigoto
Como era esperável, os meus posts sobre o cartaz do Bloco e sobre Reagan foram duramente criticados em vários blogs. O essencial das diferentes perspectivas está claramente expresso. Sendo assim, não tenho intenção de prosseguir muito mais a polémica, para não correr o risco de cumprir a máxima de Otto Lara Resende: «Da discussão não nasce a luz. Da discussão nasce o perdigoto.»
1. Sobre o «padeiro trotskista», no Barnabé encontram-se os pontos de vista de Rui Tavares e Daniel Oliveira (nos comentários), bem como breves respostas minhas. No Blogue de Esquerda, o autor do cartaz, Luís Rainha, responde às críticas com uma fina análise das minhas intenções.
2. No De Direita e no What do You Represent encontra-se a defesa da política económica de Reagan. O De Direita contesta os números relativos ao défice legado por Reagan, mas por posts subsequentes percebe-se que a objecção se prende com maneiras diferentes de fazer as contas. O What do You Represent apresenta em defesa da reaganomics um texto rico em adjectivos, sobre o meu texto e também sobre mim. O Eduardo insiste nos dados relativos ao crescimento económico de 1981-89; a mim parece-me mais significativo o aumento do número de pobres e de pessoas a viver na rua que surgiu dessa gloriosa época de prosperidade. E não se passa muito disto.
De qualquer forma, relembro a recomendação para que leiam a fonte principal do meu post, o obituário do New York Times. Lá se lê por exemplo:
«Unemployment declined, but more people were living below the poverty line, and homelessness became a national concern. When Mr. Reagan was asked about the problem in 1984, he replied that some needy people might be ‘homeless by choice.’ Economists vary widely in their assessments of Mr. Reagan's record.»
«Despite the many budget cuts, the deficit kept growing. After he left government, Mr. Stockman wrote a book, The Triumph of Politics (Harper & Row), in which he described how, on behalf of Mr. Reagan's programs, he had exaggerated the administration's success in reducing spending and minimized the projected deficit. He said he invented the ‘rosy scenario’, making optimistic assumptions about future growth, inflation and interest rates.»
«On Oct. 16, 1987, The Wall Street Journal reported that the economy was one of the two bright spots in a Reagan administration that was increasingly paralyzed by its Iran-contra troubles. Then, on Oct. 19, the stock market suffered the most severe single-day decline up to that point in its history (…). The market meltdown highlighted the administration's failure to deal with the budget and trade deficits and the failure of supply-side economics to encourage investment and productivity.»
Em suma: «‘For Ronald Reagan, the world of legend and myth is a real world,’ said Patrick J. Buchanan, a longtime political ally (…). ‘He visits it regularly, and he's a happy man there.’»
 

segunda-feira, junho 07, 2004

El deseo, s.a.


- Uma mulher atirou-se ao lago dos crocodilos. Abraçou-se ao primeiro que se aproximou. Enquanto ia sendo devorada por eles, não se queixou, não abriu a boca.
- Em que pensas?
- Nos crocodilos.

[diálogo, reconstituido de memória, de La Mala Educación]

O último filme de Almodóvar tem uma trama intrincada, que se situa em quatro «momentos históricos» distintos, nem todos eles «reais». Quando em Portugal se discute «o mais hediondo dos crimes», é particularmente importante vê-lo. No plano da lei há, evidentemente, culpados e inocentes, porque há crimes, mas em Mala Educación os culpados são também inocentes e os inocentes são ao mesmo tempo culpados. Padre Manolo é o abusador, mas é também vítima de uma pulsão passional violenta e obscura; mais tarde, sofrerá as chantagens de Ignácio e de Juan. Ignácio, o abusado, entrega-se quase voluntariamente ao seu sacrifício para proteger Enrique, a quem ama; mais tarde, fará chantagem para alimentar a pulsão heroinómana que o controla. Juan – o único que aparentemente não é homossexual – vende o seu corpo a outros homens para realizar o sonho de ser actor; mas sobretudo para representar na ficção o papel trágico que viu o seu irmão desempenhar na vida. Enrique oferece a Juan o papel de Zahara para usufruir sexualmente dele. Em certa medida, todos são carrascos e vítimas; o filme é tanto sobre os «crocodilos» como sobre as «mulheres» que se entregam para serem trucidadas nas bocas deles.
Na verdade, nem me parece particularmente necessário apreender todos os detalhes da narrativa, porque o essencial está nas imagens, nos actores, nos seus olhares. E, embora eu seja um fã de Gael García Bernal, não foi ele – talvez pouco à vontade no universo densamente gay deste filme – que mais me impressionou, mas Nacho Pérez, o miúdo que faz a extraordinária figura do jovem Ignácio Rodriguez.
«O cinema consegue transformar em espectáculo o pior da natureza humana. E a mim isso agrada-me muito: o pior», disse Almodóvar na apresentação em Cannes.
 
Choose your president


Independentemente das considerações políticas que se façam sobre o legado histórico de Ronald Reagan como Presidente dos Estados Unidos (1980-88), a sua morte, tendo em conta as horríveis condições em que subsistia, não pode propriamente ser lamentada. O Alzheimer é uma trágica doença. Lembro-me de já há uns cinco anos ter lido uma entrevista com o filho de Reagan, a quem perguntavam se o pai o reconhecia ainda; respondeu: «já não saberá quem sou, mas sabe que sou o tipo que todos os dias aparece para lhe dar um abraço».

Não é de surpreender que os obituários de Reagan sejam aproveitados para as polémicas ideológicas do momento. As semelhanças entre a presidência actual de George W. Bush e a de Reagan são muito significativas. Reagan deixou ao seu sucessor um défice orçamental gigantesco, alicerçado no aumento massivo dos investimentos militares e na redução sem precedentes dos impostos dos mais ricos. (Ao tomar posse como Presidente, havia prometido equilibrar o orçamento; em oito anos, triplicou o défice.) As consequências mais notórias das suas políticas são sentidas até hoje: aumento das desigualdades sociais, aumento do número de pessoas a viver em situação de pobreza, crescimento extraordinário do número de pessoas a viver na rua. Os partidários de Reagan dizem que estas políticas permitiram diminuir o desemprego e ganhar a guerra fria. Este último ponto é discutível: saber se a derrota da URSS foi um feito de Reagan e da sua «Guerra das Estrelas», ou uma consequência do declínio inexorável para o qual a URSS caminhava desde a década de sessenta, é matéria de debate; talvez irresolúvel, porque o mais provável é ser ambas as coisas. Já a redução do desemprego com aumento da pobreza parece em qualquer caso menos benigna: afinal de contas, a escravatura é um sistema perfeito de pleno emprego.
Bush, filho, espera ganhar a «guerra contra o terrorismo» copiando a retórica grandiosa de Reagan. Num momento inspirado, Reagan não hesitou em chamar aos guerrilheiros antigovernamentais da Nicarágua – responsáveis pela utilização em ampla escala do rapto, da violação e do assassinato como formas de intimidação da população civil - «equivalentes morais dos Pais Fundadores» da Nação Americana.
No plano dos «costumes», Bush, filho, é um reaccionário na linha de Reagan, mais do que de Bush, pai, que em 1980 havia sido o candidato moderado, derrotado, nas primárias do Partido Republicano. Reagan lutou por uma emenda constitucional que proibisse o aborto e procurou cancelar todos os gastos públicos de apoio às mulheres sem recursos para abortar numa clínica privada. Reagan foi um distinto recuperador da retórica religiosa, da obrigatoriedade de rezar nas aulas, e um defensor acérrimo do direito ao livre porte de arma. Até nas idiossincrasias de carácter pessoal, Reagan e Bush, filho, têm afinidades: «na sua autobiografia, [Reagan] escreveu que durante a [II] Guerra [Mundial] não pensava noutra coisa senão em terminá-la para poder descansar junto da sua mulher, a actriz Jane Wyman; de facto, Reagan e a sua mulher passaram a Guerra juntos em Hollywood», uma vez que ele foi dispensado de cumprir serviço na frente militar por problemas de visão.
 

sábado, junho 05, 2004

Público?
Sou obrigado a consultar órgãos de informação que habitualmente não leio para saber do conflito que decorre no interior do jornal que leio, entre o director, a editora da secção de política e o Conselho de Redacção. No próprio Público, nem uma palavra. Acho isto totalmente incompreensível. A censura é, desde logo, inútil: posso facilmente obter por terceiros as informações que me são ocultadas. Mas, ao mesmo tempo, ao saber apenas por outros de acontecimentos relativos ao funcionamento interno do Público que manifestamente me interessam, sinto violada a relação de confiança ao longo dos anos estabelecida entre mim e o jornal.
Esta bizarria deriva, creio, de uma lógica comercial segundo a qual o jornal, sendo uma empresa, não deve publicar nada que possa prejudicar a sua imagem. Como lógica comercial, é uma burrice. Mas como concepção da comunicação social, que hoje em Portugal está generalizada, é pior que isso. Em última análise, se o jornal não tem critérios editoriais que definam o que deve ser notícia independentemente de uma dada concepção do interesse imediato da empresa, o jornal reduz-se a um produto comercial como qualquer outro. Isto não é aceitável. As democracias liberais não funcionam sem uma informação plural e independente – tanto do Estado como dos grandes grupos económicos –, pelo que a imprensa não pode ser a voz do dono.
Pessoalmente, não desejo ler um jornal que não respeite critérios de serviço público. Nem um jornal assim pode chamar-se Público.
 

sexta-feira, junho 04, 2004

As palavras são importantes
«Vota em quem lhes bate forte!», dizem os outdoors do Bloco de Esquerda; e os cartazes ecoam: «mais forte!». O Bloco está obviamente à procura da linguagem «das massas». Na próxima campanha poderão chegar a elementos ainda mais simples. Já estou a ver: «Dá-le! Dá-le
Mas «as palavras são importantes», como dizia Moretti (incidentalmente: o cineasta preferido de vários destacados militantes do Bloco). Um cartaz não é só um cartaz, uma peça de entretenimento político mais ou menos anódina. Um cartaz tem uma mensagem política, mesmo que ela passe pela integral ocultação da mensagem política, como acontece com os repugnantes outdoors que a coligação PSD-CDS neste momento tem nas ruas. Os cartazes têm consequências. O padeiro na sua pose javarda vale por mil palavras do candidato Miguel Portas.
E o que diz o cartaz do Bloco? O elemento mais grave desta nova campanha nem é, a meu ver, o desejo de «bater»; é a subtil inserção do «lhes». «Lhes» são obviamente «eles», os «gaijos», «esses malandros», os políticos. Alguém imaginou que esta retórica anti-políticos podia ser capitalizada pelo Bloco. Mas não é preciso ser muito esperto para perceber que, ainda que desse proveitos no imediato (o que é duvidoso), mais cedo que tarde esta retórica anti-políticos sujará tanto os deputados do Bloco de Esquerda quanto todos os outros. Além disso – o que é mais –, a retórica anti-políticos é confortável e útil para os poderes fácticos (de Champallimaud a Belmiro de Azevedo, que fizeram sempre amplo uso dela) ao passo que é contra-producente para aqueles que não têm nenhum outro recurso a não ser, precisamente, a política. O populismo é paradoxal, agrada às massas servindo os poderosos. Mas se a Política XXI, um dos grupos fundadores do Bloco, trouxe para a sua própria designação a «suja» palavra da política, não foi por acaso.
O Bloco talvez esteja tranquilo com as críticas que têm sido feitas ao cartaz – às quais, que eu saiba, nem sequer responde – com base no pressuposto de que «isto não é uma campanha para intelectuais». Se não é para intelectuais, não é preciso prestar-lhes contas, nem atenção, nem discutir com eles. A ideia de que há as «massas», para quem se produz o lixo que não requer pruridos morais nem de inteligência, e os «intelectuais», que se ocupam de pensar, é certamente das mais perniciosas e reaccionárias possíveis. Esta distinção nega, por definição, a capacidade autónoma dos que são socialmente mais fracos para intervirem no campo da política. O PCP, o partido que mais fala no «povo», nunca nos seus materiais de campanha – embora toscos, embora pouco imaginativos – cedeu à tentação de tratar «o povo» com condescendência, com paternalismo. Porque o paternalismo, longe de «dar poder às pessoas» (para lembrar a retórica que o cabeça-de-lista do Bloco costumava utilizar), reproduz a distinção entre os políticos, que «fazem», e as massas, por definição incapazes de construir qualquer projecto que vá para além da lamúria impotente.
Sei que estou a falar para as paredes: o cabeça-de-lista do Bloco está careca de saber isto. O mandatário nacional da lista, de quem sou pessoalmente amigo, faz assentar toda a sua intervenção cívica e mesmo profissional na base das ideias de «paz» e «aprofundamento da democracia». O problema é que tanto um como o outro deviam ter, não apenas franzido o sobrolho, mas impedido terminantemente este lixo. Há quem insinue que os dirigentes do Bloco o fazem porque secretamente se imaginam já a caminho dos braços do Jorge Coelho. Mas o que seria muito pior é que estivessem a caminho de se tornarem no Jorge Coelho.
 

quarta-feira, junho 02, 2004

Sontag sobre Abu Ghraib
(...) the horror of what is shown in the photographs cannot be separated from the horror that the photographs were taken - with the perpetrators posing, gloating, over their helpless captives. German soldiers in the Second World War took photographs of the atrocities they were committing in Poland and Russia, but snapshots in which the executioners placed themselves among their victims are exceedingly rare, as may be seen in a book just published, Photographing the Holocaust, by Janina Struk. If there is something comparable to what these pictures show it would be some of the photographs of black victims of lynching taken between the 1880's and 1930's, which show Americans grinning beneath the naked mutilated body of a black man or woman hanging behind them from a tree. The lynching photographs were souvenirs of a collective action whose participants felt perfectly justified in what they had done. So are the pictures from Abu Ghraib. (...)

O artigo da Susan Sontag no New York Times de 23 de Maio, que o Pedro Oliveira, como de costume, teve o cuidado de guardar online, merece uma leitura atenta. Em termos de reflexão e debate político, parece-me que os blogs portugueses já foram mais interessantes do que são neste momento. Mas quem leia o Barnabé com atenção sabe que não é apenas uma página de agit-prop. Já agora, leiam também este post do André.

PS. O Pedro Mexia chamou-me a atenção para os comentários críticos, nalguns casos certeiros, de Andrew Sullivan a este texto de Sontag.

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