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A Praia

«I try to be as progressive as I can possibly be, as long as I don't have to try too hard.» (Lou Reed)

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domingo, agosto 31, 2003

Sou um génio


Volto a 1944. Depois das primeiras representações de Vestido de Noiva, fui um narciso extremamente maligno, que se dispôs a destruir todas as outras imagens. Para mim, só eu devia existir. Nada de Joracy Camargo, Magalhães Júnior, Fornari e outros, e outros. Pouco me interessava a qualidade dramática ou poética dos competidores; o que me ofendia, como uma desfeita, direta e crudelíssima, era o sucesso alheio.
(...) Ao mesmo tempo, todos os suplementos literários falavam em mim. Álvaro Lins abriu meia página do Correio da Manhã sobre Vestido de Noiva. Dizia: - "Nelson Rodrigues ocupa no teatro brasileiro uma posição excepcional e revolucionária como a de Carlos Drummond na poesia". Só esse paralelo era de causar vertigem. Eu e Carlos Drummond, lado a lado. Pompeu de Sousa lançou toda uma série de artigos. Em São Paulo, outros escreviam e com a mesma exaltação.
"Sou um gênio", eis o que me dizia, "sou um gênio". Lembro-me de que Carlos Drummond foi ver a segunda representação de Vestido de Noiva. No final, estava eu à sua espera. Atropelei-o no meio da escada. "Desiludido?", foi a minha pergunta. E aquele magro, aquele áspero, teve uma luz na sua aridez; respondeu: - "Formidável!".
Nas minhas atuais crônicas de futebol, digo que certos jogadores são carregados na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado. Essa metáfora também me cabia nos tempos de Vestido de Noiva. Por vezes, me sentia carregado numa prodigiosa bandeja. Todas as noites, antes do sono, baixava em mim uma obsessão linda: - "Hollywood vai me descobrir".
(...) Mas não conseguia fazer a minha segunda peça. Comecei e recomecei umas cinqüenta vezes. E não escrevia sem pensar nos meus admiradores. Eis o que me perguntava: - "O que dirá o Álvaro Lins? E o Manuel Bandeira? E o Pompeu? O César Borba? E o Drummond?". Um belo dia, descobri que todos os citados, e mais outros, e outros, seriam meus co-autores fatais. Eu era um território ocupado por bandeiras, álvaros, pompeus, borbas, prudentes. Cada admiração me comprometia ao infinito.
O heróico da minha descoberta é que o elogio não perdera, para mim, a sua graça plena. Ver o meu nome no jornal ainda me fascinava. Mas e eu? E eu? Eis a verdade que, em tempo, percebi: - o elogio era uma falsa e perversa delícia. Ainda agora, vejo a figura ameaçada de Guimarães Rosa. Não sei se ele fará algo que se pareça ao Grande Sertão. Das nossas figuras literárias, é, que eu saiba, a mais acuada pela horda bestial dos admiradores. Quando ouço alguém dizer do Rosa que é o "nosso maior prosador", tenho vontade de pedir, pelo amor de Deus: - "Não o matem antes do tempo".
O nosso romancista está em crise de solidão. Falta-lhe solidão. Tem de sair, de picareta, ceifando, demolindo as admirações que hão de corrompê-lo fatalmente. Foi isso, pouco mais ou menos, que fiz, depois da apoteose de Vestido de Noiva. O furioso Álbum de Famíliafoi, sim, uma tentativa de solidão, de ruptura, de aniquilamento.
(...) Eu queria e não queria agredir o bom gosto literário. Queria, para sobreviver como poeta dramático; e não queria, porque ainda estava ferido pela nostalgia de Vestido de Noiva. (...)
Sim, a partir de Álbum de Família, a minha vida teatral tem sido uma batalha entre um autor e seus admiradores. É uma fúria recíproca e total. Os admiradores querem me destruir, com a sua incompreensão apoteótica e homicida; e eu reagindo, como um possesso. Claro que, por vezes, me venha a funda e inconsolável nostalgia do sucesso.
Parece que minha resistência tem sido bem-sucedida. Olho o meu chão literário; está juncado de admirações abatidas. (...) Se quisesse, faria com os nomes dos meus ex-admiradores uma lista telefónica. E eu não movia uma palha para reconquistá-los. Pelo contrário: - antes, delirara com o sucesso; e, agora, agia e reagia como se preferisse, inversamente, o fracasso. Álvaro Lins lançou, contra Álbum de Família, um rodapé escandaloso: - "Tragédia ou farsa?".
A pergunta era realmente uma afirmação: - farsa. Dois ou três dias depois, apanhamos o mesmo bonde, 33, Lapa-Praça da Bandeira. O crítico sentou-se no banco da frente e foi, comigo, de uma cordialidade risonha e exemplar. Disse, entre outras coisas, o seguinte: - esperava que o tal rodapé não modificasse, em nada, as nossas relações; ele continuava o mesmo amigo etc. etc. Respondi, com a mais cínica efusão: - "claro, claro, evidente".
Ele ia para a redação do Correio, na Gomes Freire. E, até lá, a ternura foi de uma reciprocidade deslavada. Não sei o que poderia ele pensar de mim naquele momento. É possível que tivesse um certo remorso e havia, na sua efusão, algo de apiedado, sim, algo de compassivo. Mas não podia nem imaginar que eu era, ali, um monstro de perfídia e ressentimento.
Eis o que me passava pela cabeça: - "Cretino. Oswaldo Teixeira da crítica. Não entende nada de teatro. Dengoso do estilo". E o pior é que ia sair na página de livros de O Cruzeiro um artigo redigido por mim, e assinado por outro, arrasando o crítico. Rimos um para o outro, até a Gomes Freire. Antes de saltar, Álvaro Lins ainda perguntou: - "Continuamos amigos?". Respondi lívido com descaro: - "Sempre".
Durante anos, porém, o seu rodapé foi, em mim, um ressentimento literário altamente vingativo. Eis a minha duplicidade: - de um lado, a fome de solidão; de outro, uma vaidade militante e, não raro, vil. Os jornais começaram a publicar artigos contra Álvaro Lins. Era eu que os escrevia e outros que os assinavam.

[Nelson Rodrigues, 1993, A Menina sem Estrela, São Paulo: Companhia das Letras, pp. 213-217.]

(Apetece-me, por razões óbvias, dedicar este post ao Lomba e ao Mexia).
 
A Menina sem Estrela
Escrevi que era boa, ou algo até mais enfático, sobre a biografia de Nelson Rodrigues feita por Ruy Castro. Ora, não é; é muito má. Só percebi isto depois de ter lido um livro a que me apetece mais chamar de "obra de arte" do que "obra-prima": A Menina sem Estrela, que eu já referi, as memórias que Nelson Rodrigues publicou diariamente no Correio da Manhã carioca no ano de 1967. O livro de Ruy Castro é substancialmente uma aldrabice, porque as histórias que tem para contar estão contadas, com muito mais arte, por NR nestas suas próprias memórias. E ao passo que NR as conta como "histórias", como memórias - que ele próprio caracteriza como "do passado, do presente, do futuro e de várias alucinações" - Ruy Castro conta-as como "a História", a vida de Nelson Rodrigues. Tudo o que é incerto e subjectivo e até fantasiado em Nelson Rodrigues adquire um estatuto - afinal de contas falso - de verdade na biografia feita por Ruy Castro. Ora, as "alucinações" de Nelson Rodrigues também são factos interessantes, mas não se as tratarmos como se fossem a própria realidade.
E, fora do que o próprio Nelson Rodrigues conta nos seus livros, Ruy Castro acrescenta pouco, investiga pouco. Assim, para quê ir ler o biógrafo quando se pode ir ler, em vez dele, um grande escritor? Só, talvez, pela sistematização cronológica da vida de Nelson Rodrigues e por alguns poucos complementos. Mas A Menina sem Estrela é que é o livro insubstituível, até por (como eu tinha sugerido que seria interessante depois de ter lido a biografia feita por Ruy Castro) não seguir uma linha cronológica. O passado, o futuro e as "várias alucinações" combinam-se na leitura que Nelson Rodrigues faz da sua própria vida. E escreve, aqui talvez ainda mais que noutros sítios, com uma inteligência, uma candura, uma auto-ironia, uma compreensão das coisas - do jornalismo, da escrita, da fama, da inveja, da vaidade, do amor, do sexo, da morte - admirável. E sempre, como sempre, usando a pontuação para imprimir os ritmos, escrever ao correr da pena, flutuar entre aquilo que lhe aparece na cabeça. Como se a memória, vindo em ondas, se prestasse a fazer surf sobre ela.
 
Não
Costumava o meu avô dizer que a primeira palavra que tinha dito - algures por 1918 - tinha sido "não". Ao ler Bauman reparo na inteligência que é necessária para uma criança aprender a dizer não.

«Being moral» does not, necessarily, mean «being good». But it does mean having eaten from the tree of knowledge of good and evil and knowing that things and acts may be good or evil. Well, in order to know that, humans need another, preliminary, awareness: that things and deeds may be different than they are. One could muse that this has something to do with the particle «no» which all languages that humans deploy to recast the world out there in the Lebenswelt, existence into experience, contain. «No» would make no sense unless it was assumed that one can act in more than one way, or that affairs «out there» could be arranged in more than one way. «No» implies that things do not have to be as they currently are, that they can be altered: also made better than they currently are. If it were not for that, all talk about «morality» would be empty. (…) Being moral means knowing that things may be good or bad. But it does not mean knowing, let alone knowing for sure, which things are good and which are bad.

[Zygmunt Bauman in Zygmunt Bauman e Keith Tester, 2001, Conversations with Zygmunt Bauman, Cambridge: Polity Press, pp.44-46.]

PS: Leitores muito atentos podem já ter reparado que por vezes me refiro ao meu avô ou à minha avó como pessoas vivas e outras vezes como pessoas que já não o são. Está certo, porque obviamente são dois avôs e duas avós. Prefiro não acrescentar o discriminativo "materno" ou "paterno", ou sequer o nome próprio, porque estou habituado a referir-me a cada um deles como "o (meu) avô" e "a (minha) avó" e gosto mais assim.
 

sexta-feira, agosto 29, 2003

Cinema e futebol
Inaugurei a época de cinema com Bend it like Beckham, um péssimo filme (e uma tradução tão má que até off-side conseguiram traduzir mal). Há duas razões para isto. Uma é uma espécie de nostalgia da Inglaterra que me ficou do ano que lá passei. Há sempre alguma coisa de exótico e encantador nos povos primitivos. A outra é que a única profissão que eu realmente desejei ter na vida foi jogador (ou treinador) de futebol.
Mas não escrevo por nada disto. Alguns dos melhores livros que li nos últimos anos são sobre futebol: Nelson Rodrigues e Nick Hornby, mas também Bill Buford, Among the Thugs, e o que estou a ler no momento (more on this later). Por que é que não há memória de um único filme decente? Afinal de contas, o futebol é uma arte visual.
 
Stig Dagerman
A nossa necessidade de férias (descanso, ausência) é impossível de satisfazer.
 
Jet-lag
Bem-aventurados os que não sofrem com o jet-lag, porque deles será o reino dos céus.
 

quinta-feira, agosto 28, 2003

Sossego de Verão
Se alguém alinhasse, montavam-se umas barricadas e aqui em Lisboa não entrava mais ninguém.
 

quarta-feira, agosto 27, 2003

Meditação
[Tom Jobim/Newton Mendonça]

Quem acreditou
no amor, no sorriso, na flor,
então sonhou, sonhou
e perdeu a paz
o amor, o sorriso e a flor
se transformam depressa demais.
Quem, no coração,
abrigou a tristeza de ver
tudo isto se perder
e, na solidão,
procurou um caminho e seguiu
já descrente de um dia feliz
Quem chorou, chorou,
e tanto que o seu pranto já secou
Quem depois voltou
ao amor, ao sorriso e à flor,
então tudo encontrou,
pois a própria dor
revelou o caminho do amor
e a tristeza acabou.
 

terça-feira, agosto 26, 2003

Sentido da vida
Há dias eu falava no "prazer de dizer os prazeres físicos, sem ideias". Hoje na praia, a olhar para o mar, pareceu-me que não há nenhum prazer que se viva sem o prazer de pensar sobre ele - que não há nenhum prazer puramente físico, a coisa em si. O sentido da vida é pensar nela.
 

segunda-feira, agosto 25, 2003

Outra pessoa
Antes de nascerem, imagino-os sempre como rapaz. Mas é natural: só depois de nascerem eles começam a ser outra pessoa.
 
De infância
Todos os meus amigos são amigos de infância.
Descobri isto a partir de Nelson Rodrigues.
 
Boas Vindas
Sua mãe e eu
Seu irmão e eu
E a mãe do seu irmão
Minha mãe e eu
Meus irmãos e eu
E os pais da sua mãe
E a irmã da sua mãe
Lhe damos as boas-vindas
Boas-vindas, boas-vindas
Venha conhecer a vida
Eu digo que ela é gostosa
Tem o sol e tem a lua
Tem o medo e tem a rosa
Eu digo que ela é gostosa
Tem a noite e tem o dia
A poesia e tem a prosa
Eu digo que ela é gostosa
Tem a morte e tem o amor
E tem o mote e tem a glosa
Eu digo que ela é gostosa
Eu digo que ela é gostosa
Sua mãe e eu
Seu irmão e eu
E o irmão da sua mãe

[Caetano Veloso, do álbum "Circuladô"]
 

sábado, agosto 23, 2003

Branca
Se quando temos insónias estamos a evitar sonhar, o que é que estamos a evitar dizer quando não temos "nada para escrever"?
 

quinta-feira, agosto 21, 2003

Bookcrossing
Tem razão o Pedro Lomba em ficar comovido com o meu enamoramento pelo Nelson Rodrigues. Já conhecia, de há uns anos, as crónicas sobre futebol de NR e, de há uns meses, o consultório sentimental de Myrna. Mas não fosse a insistência de Lomba e de Mexia - pessoalmente não conheço um nem conheço o outro - é provável que não tivesse ido procurar a biografia escrita por Ruy Castro e, a partir dela, a obra completa.
Uma das melhores coisas do blog é esta comunidade de sugestões e palpites. Neste aspecto, parece-me que o que se escreve aqui é até muito menos vaidoso e narcisista do que o que se escreve na imprensa, porque o desejo de partilha é mais fundamental - e mais imediato.
 

quarta-feira, agosto 20, 2003

Deus e a morte
Eis a verdade: - antes de ser Tom Mix, ou outro deslumbrante cowboy da época, me imaginei Cristo, fui Jesus. Tinha sete, oito, nove, dez anos e me via na cruz. E me crucifiquei mil vezes. Eu, Nazareno, eu, Filho de Deus, eu, de braços abertos, eu, de cabeça pendida, eu, Deus e sem rosto, eu, no regaço da Virgem.

[Nelson Rodrigues, A Menina sem Estrela, São Paulo: Companhia das Letras, p.63]
 
Animais domésticos
Não escrevi isto na altura para não escrever demais na altura sobre o mesmo assunto. Só que o comentário de Pacheco Pereira - "ainda há homens assim" - à nota que João Pulido Valente deixou para avisar da própria morte é um autêntico disparate. A observação está eivada de hipocrisia - ainda que involuntária. Nem Pacheco Pereira, nem Pedro Adão e Silva (que fez um comentário em sentido análogo), nem eu - nenhum de nós alguma vez fez da vida uma escolha de acordo com o modelo corajoso, boémio e excessivo de João Pulido Valente. Nem há vergonha nenhuma nisso. Já o disse: há coisas mais importantes que a coragem que ela, extremada, destroi. Nós somos apenas animais domésticos. Faz pouco sentido fingir que seguimos modelos que não têm nada que ver com as vidas que fazemos. Mais vale olharmos para nós como somos e até, se for possível, ter orgulho nisso.
 
Suco favorito
Suco favorito: três em um: beterraba, laranja e cenoura.

Há um prazer de dizer os prazeres físicos, sem ideias.
Mas para a próxima que escrever um post assim nem explico nem peço desculpa.
 
Morte
Nem sei por que ficámos tão contristados com a morte de Sérgio Vieira de Melo. Ficámos abalados, estupefactos e indignados. Não sei por que gostava do homem. Não tenho sequer uma ideia do papel que ele teve em Timor, nem das suas convicções políticas. Talvez gostasse dele só por o achar bonito, ou por o associar a Xanana, esse super-heroi (mas eu não dispensaria tanto amor a Ramos Horta, e é melhor nem falarmos de Ximenes Belo).
A morte esteve comigo hoje desde as primeiras horas, nem faço ideia porquê. Ontem não conseguia adormecer. Nas minhas insónias eu não acho, como dizia João dos Santos ironizando com as pessoas com insónia, que não durmo porque "tenho uma letra para pagar". Felizmente, eu não tenho nem ideia do que me angustia - que é, obviamente, uma ideia bem mais aproximada e exacta da angústia do que a que fazem aquelas pessoas que todos os dias arranjam um pretexto prático para não conseguir dormir.
Pois bem, eu não dormia, doía-me o corpo de cansaço e não dormia, e pensava na morte.
Penso na morte muito, desde pequeno. E, embora tudo o que eu pensasse ontem à noite fosse racional e cheio de factos - o facto de que o fim existe e que é o fim de tudo, um tudo tão infinito que é impossível de conceber, etc. - não consigo reproduzir de dia nem em frente ao ecrã o que penso de noite. Sou, convictamente, profundamente, cada vez mais, ateu. A ideia de Deus, da alma imortal e todas essas coisas parece-me absurdamente estúpida. Estúpida, é o que me parece - e não peço por isso desculpa a quem crê. Mas tenho nostalgia de Deus, quer dizer: sei que não existe mas tenho pena. O caso é que não me conformo com a morte.
Ontem à noite pensava nestas coisas e pensava até que se, de um dia para o outro, me mostrassem que afinal nada é como é - por exemplo: que isto é tudo uma ficção tipo Truman Show e que realmente a vida existe para sempre, etc. - eu estaria disposto a aceitar. Seria espantoso e absurdo, mas a morte não o é menos.
E penso sempre na absurda naturalidade com que convivemos com ela, e com o desaparecimento das pessoas, e deixamos desaparecer da nossa vida algumas pessoas para sempre.

Talvez isto tudo tenha acontecido na minha cabeça porque eu sei que faz hoje dois anos que a minha avó morreu. Sem estar a pensar nisso, pode ter sido o que despoletou o resto.

E também estou agora a ler uma coisa melhor do que a biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, as memórias que o próprio Nelson Rodrigues publicou em artigos diários no jornal em 1967. Estão editadas em livro pela Companhia das Letras, chama-se A Menina sem Estrela, é uma absoluta obra-prima e está pejada de morte por todos os lados. (Mas só comecei a lê-lo depois da insónia). Confiem em mim, vão lê-lo.
 

terça-feira, agosto 19, 2003

Elixir
Ao fim de umas semanas de férias esperava perder as olheiras e recuperar o aspecto de 1996. Não tem jeito. I'm not getting any younger.
 
Dicas para o Rio
Noutro dia à noite fui a um cinema, Estação Paissandú, com zona para fumadores: meia-dúzia de sofás vermelhos com aspecto confortável, separados do resto da sala por um vidro. A quem vier ao Rio de Janeiro recomendo uma visita - os cinéfilos também gostam de salas de cinema. Mas cuidado com o filme: não escolham nada em que seja necessário perceber o que se diz, porque o som é péssimo e eu não entendi 60% das palavras.
Duas boas dicas para o Rio de Janeiro são também comprar cd's nas Lojas Americanas - praticamente todos os discos do Caetano, do Chico e da Elis Regina, entre outras coisas, a dez reais, mais ou menos 3,5 euros - e aproveitar para levar daqui o Livro do Desassossego: a edição da Assírio e Alvim, aqui editada pela Companhia das Letras, é igual e custa menos de metade do preço.
 

segunda-feira, agosto 18, 2003

Biografias
Terminei a leitura da biografia de Nelson Rodrigues por Ruy Castro. Gostei muito, em particular do período 1940-65, embora as passagens mais entusiasmantes tenham sido invariavelmente aquelas em que Castro se limita a citar Nelson Rodrigues. Fiquei com a sensação - embora não tenha a certeza - que os últimos anos de vida de Nelson Rodrigues são menos interessantes porque as tragédias pessoais, em particular a história da filha, provocaram uma amargura que talvez se tenha traduzido de forma excessiva na escrita sobre política. Nelson Rodrigues é tanto melhor quanto menos for lido de forma dogmática, isso é certo, embora não equivalha de forma nenhuma a encarar as coisas que ele escreveu como se fossem brincadeiras.
Um assunto que ultimamente me tem intrigado na leitura de biografias é por que é que não se explora mais um modelo que não seja estritamente cronológico. Na biografia de EH Carr de Jonathan Haslam (The Vices of Integrity, EH Carr 1892-1982, London: Verso, 1999), por exemplo, quase tudo o que lemos sobre os primeiros 25 ou 30 anos da vida de Carr só se torna interessante em função do que acontece e do que aprendemos depois. Não faria mais sentido pegar no biografado pelo cerne da sua obra e fazer depois a história de como se chegou ali? Se houver leitores com ideias sobre este assunto, que me queiram escrever, agradeço muito.
 

sábado, agosto 16, 2003

Salvar a platéia


A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que o não sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. (...) Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos (...).

[Nelson Rodrigues, no mesmo texto - mas podia ter sido um médico austríaco.]
 
Incoercível teatro
Vou estrear como ator. Por dez dias, e nunca mais, representarei no Municipal a minha tragédia de costumes, "Perdoa-me por me traíres". Há quem me pergunte se não tenho medo do ridículo. Absolutamente. E digo mais: só os imbecis têm medo do ridículo. Considero um soturno pobre-diabo o sujeito que não consegue ser ridículo de vez em quando.
(...) Além disso, quero ser um exemplo. O engano milenar do teatro é que fez do palco um espaço exclusivo de atores e de atrizes. Por que nós, os não-atores, as não-atrizes, não teremos também o direito de representar? Objetará alguém que não dominamos o meio de expressão teatral. Protesto: dominamos, sim. Que fazemos nós, desde que nascemos, senão teatro, autêntico, válido, incoercível teatro? Inclusive na morte, como é lindo o rictus hediondo da nossa agonia! Para mim, o teatro é uma arte não criada ainda, porque não se escancarou para todos. Dia virá, porém, em que cada um de nós poderá fazer o seu "Rei Lear" de vez em quando. Ninguém nos exigirá nada senão tarimba vital.

[Nelson Rodrigues, excerto de texto publicado em "Manchete Esportiva", 15/6/1957, reproduzido em Ruy Castro, op. cit., pp.272-3].
 
Blecaute
A galera divertiu-se muito com o blecaute lá nos Estados Unidos.
 

sexta-feira, agosto 15, 2003

Paradoxo do ônibus
Quem anda de autocarro pelo Rio acredita que a vida humana vale muito pouco. Mas lá dentro toda a gente cede, todo o tempo, o lugar sentado a toda a gente.
 
A praia
Só os factos, ou quase só isso. Levantei-me às onze, tomei o café da manhã, fui para a praia. Andei a pé até ao Leme, a cada quinze metros a paisagem muda, aparece outro morro. Mergulhei nas ondas, que estavam ótimas [assim, sem p] e pensei no surf que nunca fiz (mas tive vontade de aprender a fazer quando li o Paradise News do David Lodge). Bebi uma água de coco. Saí da praia já depois das três da tarde e almocei carne seca com feijão, arroz, couve mineira e farofa. Fui passar o fim da tarde ao terraço do Hotel Othon, trigésimo andar sobre o mar e Copacabana. Para a frente a vista é só mar, quilómetros e quilómetros, para a esquerda Coapacabana até ao morro e à favela, praia até ao Pão de Açúcar, os montes de Niterói, para a direita tudo até ao Arpoador e Ipanema. Na praia vê-se com nitidez o desenho que as ondas constroem e reconstroem na areia de cada vez que rebentam. As favelas despontam nos morros como se fossem uma espécie vegetal. Anoitece e iluminam-se.
Se há lugar do mundo em que a praia irrompe da calçada, é o Rio de Janeiro. Esse milagre está a acontecer neste momento à minha frente, vê-se perfeitamente daqui.
O dia todo nem me lembrei de que pudesse andar cansado.

O pintor Paul Gauguin amou a luz na baía da Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
[excerto de Caetano Veloso, "Estrangeiro"]
 
Bom saguão
Conheço um terraço fantástico sobre a cidade de Lisboa - que neste momento me parece um saguão.
 

quinta-feira, agosto 14, 2003

Dois Ivans
No blog aparentas serenidade, estar conciliado com a vida; nos emails resmungas, vociferas.
[de um email]
 

quarta-feira, agosto 13, 2003

Maracanã
Esta noite vou ao Maracanã: Fluminense (de Nelson Rodrigues) vs. Corinthians (de Antenor Corrêa).
 
As mulheres gostam de apanhar
(para o Nuno)

A grande fonte de Nelson era a realidade e, por isso, o título da sua coluna só podia ser aquele. Sua própria rua no Andaraí era uma jazida de "A vida como ela é...". Quando Nelson mudou-se para a Agostinho Menezes, esta era ainda uma espécie de prolongamento da rua Goiânia e tinha no máximo dez casas, contando com a dele - um cadinho de gente vigilante e fofoqueira, com todos os defeitos e virtudes de uma grande comunidade, só que concentrados naquelas poucas famílias. A estrela da vizinhança ainda não era Nelson, mas Rodolfo Mayer, famoso e querido mesmo antes de "As mãos de Eurídice". Houve um dia, no entanto, em que um episódio doméstico na rua Agostinho Menezes concentrou as atenções e deixou até a existência de Rodolfo Mayer em segundo plano.
Um marido notoriamente banana, que era tratado como um cão pela mulher e ainda lhe fazia festas, cansou-se de ser humilhado e, no meio da rua, deu uma sova de cinto na cara-metade. Toda a vizinhança chegou à janela para admirar o espetáculo. As próprias mulheres da rua torciam pelo marido agressor:
"Bate mais! Bate mais!"
O marido cansou-se de bater e parou. O que houve em seguida foi espantoso: a mulher atirou-se sobre ele, aos beijos. E, desde então, passou a desfilar de nariz empinado e braço dado com o ex-banana, como se só estivesse precisando daquela sua demonstração de hombridade para admirá-lo. Ao ouvir os comentários das vizinhas, que tinham apoiado maciçamente a surra, Nelson concluiu:
"Toda mulher gosta de apanhar."
Não era bem isso o que ele queria dizer, claro - e nem se referia a nenhum problema dele, pessoalmente incapaz de fazer mal a uma mosca do sexo feminino. Era apenas uma imagem, que talvez se traduzisse melhor na pergunta: "Que mulher pode gostar de um banana?". Mas a frase saíu em "A vida como ela é..." e Nelson a repetiria depois em entrevistas. A repercussão entre muitas mulheres foi a pior possível.

[Ruy Castro, 1992, O Anjo Pornográfico - a vida de Nelson Rodrigues, São Paulo, Companhia das Letras, pp.240-241].
 

terça-feira, agosto 12, 2003

A chatice da bola
Lamento a saída do Cristiano Ronaldo para o Manchester United. Acho que, como futebolista, ele vai crescer imenso lá e provavelmente tornar-se um grande como por enquanto não é. Mas se o Sporting com o Cristiano Ronaldo já se anunciava chato, assim fica chatíssimo. Não tenho a menor motivação para acompanhar a época.
Não lamentei a saída do Quaresma, que no Sporting nunca passaria de um portuguesinho da finta e assim talvez vá a algum lado. Mas olhar para a equipa agora é um desconsolo: já não há o Jardel de quando era a alegria do povo, restam uns brasileiros com classe mas sem marca da casa, como o Rochemback, e portugas em pré-reforma como o João Pinto (que por mim nunca mais jogava depois de ter socado o árbitro na Coreia).
Claro que o Porto vai ser campeão, mas a questão não é essa. Vai ser o ano inteiro não só a perder mas a aborrecer.
Vou antes olhar ali para a baía em Copacabana, já cá volto.
 

segunda-feira, agosto 11, 2003

Flor da pele
Este blog é um objecto indefinido, até para mim. Ao fim de um mês e meio ainda não sabe o que quer ser; talvez nunca saiba. Varia muito com as luas, as disposições e até as condições - por exemplo, nos cibercafés não há nenhumas. De momento ando a ler a biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, O Anjo Pornográfico, e é provável que aproveite por vezes o blog só para juntar citações que me parecem interessantes. E às quais nem sequer tenciono acrescentar nada.
No dia em que conseguir fazer uma revista sobre política chamada A Praia, este blog, que tem ambições mais modestas, passará a chamar-se Flor da Pele.

Não há erro na citação do post anterior: passa-se do tratamento por você para o tratamento por tu na mesma frase. Uma das coisas que fascinam no português que se fala no Brasil - e que eu imito todo o tempo enquanto estou por cá - é o facto de ser muitíssimo mais inventivo e maleável do que o nosso. Ao contrário da generalidade dos portugueses, olho para os brasileiros como um modelo de superioridade. Somos um pequeno povo de 10 milhões de habitantes que no século XX talvez não tenha tido nada para oferecer ao mundo exceptuando Fernando Pessoa. O preconceito racista contra os brasileiros - "uma nação de aldrabões", na expressão infeliz de um amigo meu - parece-me bastante incompreensível. Por mim trocava inteiramente a nossa língua pela deles, e aí teríamos a possibilidade de falar uma coisa que muita gente entende e muita outra pode querer entender. Estamos na periferia da Europa, e hoje a Europa é bem mais periférica no mundo do que se imagina.

Uma das coisas que gosto na direita da blogosfera portuguesa - pelo menos, a direita que me interessa, o Mexia e o Lomba - é que não tem por referência qualquer modelo pomposo do primeiro mundo, mas cita abundantemente um brasileiro, com toda a contradição, improvisação e libertinagem características, como Nelson Rodrigues.
 
Ainda vibras
"Responda-me por metáforas: ainda vibras com o que te fiz no cinema na última vez?"
[carta de 1939 de Nelson Rodrigues a Elza Bretanha, com quem se casaria um ano mais tarde].
 

domingo, agosto 10, 2003

Fica doido varrido
Fica doido varrido quem quer
Se meter a entender a mulher

[samba "Fica doido varrido", de Eratóstenes Frazão e Benedito Lacerda, 1945]
 

sexta-feira, agosto 08, 2003

Homenagem em calção
Deve ser a melhor homenagem possível de A Praia a João Pulido Valente, o facto de a imagem que guardo dele ser em calção de banho.
 

quinta-feira, agosto 07, 2003

A Terceira Via deles
O Lula está na televisão em directo, chorando ao lado do caixão do Roberto Marinho, 98 anos, dono de um império mediático que usou sem escrúpulos para favorecer politicamente os seus próprios interesses. Três dias de luto nacional.
 
A minha Terceira Via
Já falei em heróis, mas nem todos os meus heróis têm aquilo que se chama de heroísmo. Este está mais directamente associado à coragem. Lembrei-me disto a propósito de João Pulido Valente, da nota que ele escreveu anunciando a própria morte. Parece-me que há uma geração de resistentes portugueses que glorifica a coragem acima de todas as coisas - já o pensei várias vezes a propósito do Paulo Varela Gomes, dos pais e dos irmãos dele. Também é gente corajosa, afectuosa, excessiva e admirável. Mas, também por ser muito amigo do Paulo e por o ver de perto, sei muito bem que a coragem não é a única virtude. Suscita admiração, mas, como todas as coisas, precisa de ser doseada. Há coragem que se exerce com brutalidade, sobre si próprio e sobre os outros, e o amor (que eles são todos capazes de praticar de sobra) também serve para perceber isso.
 
O fim do etnocentrismo
As mulheres brasileiras podem ser tão atraentes como as portuguesas.
 

quarta-feira, agosto 06, 2003

O Verão da Mitologia.
O Mexia fez bem em parar para férias: estava a ficar um pouco exaltado ("que nunca tiveram vergonha", 1.8, não é uma expressão feliz). "O Verão, essa antiga mitologia", está em forma, pelo menos aqui, onde o calor não aperta para lá do necessário e os mergulhos no mar fazem um bem incrível para recriar o mundo aos nossos olhos. Não sei ao certo para que serve a mitologia, mas se for, como imagino, para nos contar o mundo de outra forma, menos ameaçadora, com a qual possamos viver melhor, o Verão é isso. O Verão ou o Brasil - para ser sincero, nem distingo.
 
João Pulido Valente
A gente nunca sabe. Ontem escrevi um post que achei que estava uma autêntica merda (if you pard my french). Escrever no cibercafé nunca é o mesmo que ter o nosso próprio computador para escrever quando a gente se lembra. E pensei que aquela conversa sobre o maior da minha rua não interessava a ninguém e mesmo sobre mim pensava pouco. No fim de contas, recebi um email a dizer que tinha feito sentido. Nunca sei.
Acabei, claro, por pensar mais no João Pulido Valente nas últimas 24 horas do que nos últimos quinze anos. A cena de heroísmo no interrogatório da PIDE, que o Adelino Gomes relata na notícia de ontem, não me surpreende nada. Claro que entre os meus dez e doze anos nunca fiz perguntas sobre o tempo da prisão, que não era assunto de que eu estivesse sequer inteiramente consciente. Mas era óbvio que a coragem, como o afecto, não lhe faltava.
A notícia do Adelino Gomes pareceu-me muito adequada. O João Pulido Valente era um personagem excessivo - excessivamente corajoso, afectuoso, colérico às vezes. Agora lembro-me da voz grossa e do ar (que não era só ar) ao mesmo tempo autoritário e de criança. Parece-me que só os homens é que podem ser assim. A história que contei ontem deve ter sido muito característica, por isso a retive: ele devia achar-me esperto, mas até por isso o irritava o meu ar de menino da mamã (e da avó, e da tia, e...). Aos doze anos eu não podia entender isso.
Quando o JPV dizia não saber como teria agido na prisão se na altura tivesse um filho, acho que não o dizia inocentemente; desconfio até que o Adelino Gomes não citou essa frase por acaso. Isso era uma homenagem: já depois do 25 de Abril, ele veio a ter um filho, que tem uma idade próxima da minha e com quem eu brinquei muito, por quem ele tinha uma paixão evidente.
Na notícia do Público tudo encaixa: até o facto de ter querido ir morrer a casa e de ter disposto que queria ser cremado. Não era dado a concessões.

PS: Máxima ironia: diz-me a Ariane que o meu post de ontem vem transcrito no Público.
PS2: Vão - mas vão mesmo - ao abrupto ler, na primeira entrada de 5.8, a nota que João Pulido Valente escreveu para a sua própria morte.
 

terça-feira, agosto 05, 2003

O maior da minha rua
Morreu João Pulido Valente. Fomos "família" durante um período na primeira metade da década de 1980, um período curto na escala dos adultos mas longo para mim nessa altura. Aliás, o convívio foi muito próximo.
Não saberia, mesmo que quisesse, fazer um retrato adequado de João Pulido Valente mas reconheço o de Adelino Gomes como certeiro.
Por acaso há vários dias que andava a pensar em João Pulido Valente, por causa da blogosfera. Tenho-me lembrado de uma vez, lá por 1985, em que, depois da praia e provavelmente já depois de algumas cervejas, o João Pulido Valente se irritou comigo e disse que eu tinha a mania que era "o maior da minha rua". Em 1985 tinha doze anos e lembro-me de não ter percebido, mas não esqueci a história. Ultimamente tenho pensado que, graças à blogosfera, descobri que a rua é bem maior do que eu pensava. O que me deixa bastante feliz.
 
De Soares a Soares
Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

[excerto de uma entrada do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, ed. Assírio e Alvim, p.255. Entrada completa aqui].

Há dias reproduzi um excerto de um poema de Álvaro de Campos - "Na véspera de não partir nunca" - e lembrei-me de uma tese de doutoramento em que o vi, mal citado e fragmentariamente, para dizer uma coisa que não tinha nada que ver com o poema; em suma, para embelezar uma ideia banal. Há poucos destinos mais tristes para a poesia do que o de servir para embelezar ideias estúpidas, e acontece muito frequentemente. Lembrei-me então que não deve haver frase mais condenada a tal destino do que esta do Livro do Desassossego. Já toda a gente a ouviu e relativamente poucos lhe conhecem o contexto. Fiz uma pesquisa no google e foi praticamente impossível encontrar essa frase mais a ideia que a completa; pelo contrário, em 9/10 dos casos a citação servia para embelezar patriotismo balofo todo ao contrário do que a frase diz. Assim mesmo continuará a ser citado Bernardo Soares, citado como Pessoa, sem contexto e sem desassossego.

Lembrei-me disto também por causa da asneirada de Pacheco - o vêm pelo vêem que aqui assinalei. Pacheco escreve fluentemente, mas sem cuidado, coisa que a maioria das pessoas não nota embora apareça com alguma frequência, por exemplo nos textos do Público.

No vôo para o Brasil aparecia no ecrã do avião um mapa-mundo sobre o qual um aviãozinho assinala progressivamente o nosso trajecto. Nunca gostei de andar de avião nem me interessei por geografia, até descobrir prazer nas duas coisas ao mesmo tempo. Penso que foi em finais de 1996, numa viagem de regresso de Inglaterra, porque a revista da British Airways tinha bons mapas indicando os itinerários todos percorridos pela companhia. No ano seguinte comprei um mapa-mundo de um tamanho monumental, a que já me referi antes, que me ocupa uma parede inteira em casa.
E, no entanto, o meu conhecimento da geografia é ainda rudimentar. Neste vôo o mapa mostrava países da costa norte-ocidental de África que eu não conseguia nomear.
Em 1995, numa coluna de opinião para o Público, meti uma argolada bem mais grave do que a do Pacheco. A propósito da visita de Soares, então Presidente da República, a meio de uma visita oficial, a Bettino Craxi, então foragido à justiça italiana, escrevi que Soares tinha visitado Craxi na Nigéria. O mínimo de geografia, que não fosse pelo resto, teria bastado para evitar a confusão da Nigéria com a Tunísia - nenhuma semelhança a não ser, vagamente, o som. Para mim a Tunísia e a Nigéria podiam ser exactamente iguais - o que dá uma clara imagem de como, na minha cabeça, o mundo tinha fraca variedade.
Embora o texto tivesse sido muito comentado - era um ataque violento a Soares numa altura em que a esquerda já não o criticava violentamente e a direita ainda não o fazia - praticamente ninguém reparou no deslize.
 

sábado, agosto 02, 2003

Nelson Rodrigues
Folheio ao acaso a biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, de que tanto Mexia como Lomba já falaram amplamente, e encontro a transcrição de um bilhete passado por NR, no meio de uma crise de ciúmes, à sua futura primeira mulher. Eram colegas de redacção no jornal e Nelson Rodrigues tinha 28 anos (1940). Dizia assim:
"Elza. Ontem eu vi você com o Amauri. E quero perguntar a você uma coisa: você compreende agora por que o 'Alemão" não quis nada com você? E por que nenhum homem que se preze quererá nada com você? E por que eu vou chamá-la, com pura e seca justiça, de menina sem dignidade, sem pudor, sem nada que justifique um simples e banal cumprimento meu? Você compreende isso? Se compreende, meus parabéns. Agora um apelo: afaste-se do meu caminho e chore por sua lamentável alma. Nelson."

E paro nisto, impressionado como se pode escrever tão bem um simples bilhete, um simples recado. A frase curta, a palavra bem escolhida, a pontuação ritmando cuidadamente. E penso também que tudo o que faço (e tudo o que fazemos?) ao escrever é, de forma consciente ou inconsciente, imitar o tempo todo aqueles que nos inspiram assim.
 
Sonho
Hoje tive, não um pesadelo, mas um sonho mau. Sonhei que me tinha morrido uma pessoa muito próxima. No sonho, a aflição maior era pensar que teria a vida inteira, muitos anos, pela frente sem voltar a ver a pessoa desaparecida.
Alguém já há-de ter dito isto melhor do que eu: que sobrevivamos uns aos outros é de todas as coisas talvez a mais incompreensível. Há dias em que me pergunto como é que podemos viver - e já quase todos passámos por isso - no meio desta barbaridade.
 
Não era necessário
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo,
que queres como as plantas,
imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.

[excerto de "O Dia da Criação", de Vinícius de Moraes]
 

sexta-feira, agosto 01, 2003

Condenação do capitalismo
A prova definitiva de que os capitalistas portugueses são imprestáveis é que ainda não houve nenhum empresário da informática capaz de oferecer um computador decente ao Pedro Mexia.
 
As coisas mudam
Recebo três tipos de emails por causa do blog: de pessoas que se lembram de mim da Política XXI, que não gostavam e estão muito surpreendidas porque agora gostam; de pessoas que se lembram de mim da Política XXI, que gostavam e estão muito surpreendidas porque agora não gostam; e de pessoas que não se lembram de nada disso.
 
Génio
Foram precisos génios como Vinícius de Moraes para mitificar a mulher brasileira. Há mais mulheres bonitas em Lisboa, em termos absolutos, do que no Rio de Janeiro.

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