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A Praia

«I try to be as progressive as I can possibly be, as long as I don't have to try too hard.» (Lou Reed)

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sábado, janeiro 31, 2004

Por que é que o Iraque não é só o Iraque
Desculpem. Foi um engano. Pensavamos mesmo que as armas existiam. Também, como é que havíamos de saber? Hans Blix? Quem foi Hans Blix? Hans Blix nunca existiu.

Um conselho, se querem ser levados a sério. Digam assim: a guerra foi totalmente ilegítima. Não havia nenhum perigo iminente, os governos dos EUA e da GB não sabiam nada que levasse a acreditar em perigo imediato. Não sabiam, como nós não sabíamos, como virtualmente ninguém sabia, se o Iraque tinha ou não armas de destruição massiva. Mas os governos dos EUA e da GB não esperaram os poucos meses que os inspectores da ONU pediram para concluir o seu trabalho e envolveram-se com eles num confronto público porque quiseram. Para isso, disseram repetidamente que sabiam o que não sabiam. Divulgaram «factos» que imediatamente se comprovaram frágeis ou falsos (ligações do Iraque à al-Qaeda, relatórios copiados da internet). De caminho, desprezaram também a opinião da esmagadora maioria dos países-membros do Conselho de Segurança e da esmagadora maioria da opinião pública mundial, para poderem fazer a guerra que quiseram no momento que quiseram. É inquietante que os EUA, que são uma democracia e de longe a maior potência militar do mundo, estejam a tentar construir uma doutrina de intervenção internacional assente neste tipo de prática, inteiramente unilateral e arbitrária. Chega a violar a memória das vítimas do 11 de Setembro que se use esse acontecimento para justificar esta deriva.
Digam isto. E a seguir podemos continuar a conversa, com o ar mais limpo.
 
 
Uma asneira evidente
A principal consequência do destaque que a oposição socialista quer dar a este tema deverá ser um aumento dos sentimentos de insegurança dos cidadãos, aumentando, sem fundamentos objectivos conhecidos, o já inevitável desfasamento entre o risco real de crime e sua percepção. Esse desfasamento tem tido, noutros países, consequências conhecidas e bem estudadas: a diminuição da confiança entre as pessoas; o reforço de estereótipos sociais e raciais acerca do «criminoso»; e a adopção de políticas de vigilância atentatórias dos direitos individuais. O medo do crime tende também a alimentar a própria criminalidade, ao favorecer a adopção de comportamentos de tal modo defensivos que levam à desertificação de zonas urbanas específicas, que assim se tornam, elas próprias, zonas de maior risco. E a insegurança tem sido, primeiro nos Estados Unidos e mais recentemente na Europa, o principal combustível de uma estratégia de separações territoriais entre populações urbanas, opondo prósperas e seguras «comunidades fechadas» a pobres e inseguros guetos. Que um partido de centro-esquerda se proponha contribuir para alimentar este ambiente e as suas consequências para as políticas públicas e para os comportamentos sociais é, no mínimo, irónico.
(...) Observe-se, ao mesmo tempo, o que o PS propõe em troca: mais esquadras, mais polícia e, para compor o ramalhete, "o reforço de verbas na área social". Infelizmente, nem o cartaz nem estes responsáveis socialistas nos dizem como se deve melhorar a articulação entre Governo central e local nas políticas de segurança. Nem avançam quaisquer políticas de assistência, apoio e pedagogia das vítimas, área que, até hoje, tem ficado para associações privadas que recebem pouco ou nenhum apoio do estado e das autarquias e estão desarticuladas com as autoridades policiais. Nem sequer fazem propostas sobre como reformar a forma totalmente burocrática e inumana como o sistema vai «processando» as vítimas de crimes, uma das causas fundamentais dos seus sentimentos de impotência, das baixas taxas de participação à polícia e, logo, de um ineficaz combate à criminalidade. Se aquilo que a oposição camarária socialista tem para oferecer sobre a insegurança se resume a «mais esquadras» e «mais polícia», isso significa que quer jogar com a direita um puro jogo de «lei e ordem» que, como de costume, irá perder. Era escusado.

[Do artigo de Pedro Magalhães no Público de hoje].

Não seria estúpido que os responsáveis do Partido Socialista se despachassem a substituir os cartazes por alguma coisa decentemente pensada. Temas não devem faltar. É que estamos em ano de eleições europeias e será uma grande desgraça se o PS não se vislumbrar como uma alternativa pelo menos possível ao actual governo de Durão, Portas e Celeste Cardona.
Quando a asneira é evidente, é melhor remediá-la do que andar a inventar argumentos estafados para tentar salvar a face.
 

sexta-feira, janeiro 30, 2004

50 anos da Playboy


[Da crónica de João Bénard da Costa no Público de hoje]

Foi em Los Angeles. Primavera de 1995. Estava por lá num congresso das Cinematecas, desses que há todos os anos nas sete partidas do mundo.
Quem chega a esses congressos recebe sempre, entre uma data de papelada, vários convites, qual deles o mais chato. Ou é o ministro ou é o presidente da câmara ou é o director de uma instituição cultural, que convida para um cocktail, geralmente precedido por infindáveis discursos, em que os retardatários já não acham nada de beber nem nada de manjar. Daí o meu espanto, quando, entre vários envelopes, achei um com a inconfundível trade-mark e em que Hugh Hefner requestava o prazer da minha companhia para uma recepção em casa dele (a lendária Mansão) dia tal às tantas horas. Apressei-me a confirmar, sem perceber a razão do convite. Embora se anunciasse uma sessão de cinema.
Na tarde aprazada, meti-me num táxi com uns colegas (em Los Angeles, o táxi é o único transporte possível para quem não dispõe de carro próprio) Sunset Boulevard acima ou Sunset Boulevard abaixo. O cinema preparara-me para muito, mas não para a verificação experimental de que ser bi ou tri milionário na América ou na Europa é coisa distintíssima.
O táxi parou à porta de um enorme portão de aço, entre altíssimos e irídicos muros. O motorista tocou em intocáveis botões e, com os nossos convites na mão, respondeu a uma voz de oz com os nomes que os nossos pais nos deram. Os portões abriram-se à sésamo e o táxi entrou, após cuidada contagem dos ocupantes. Seguiram-se três quilómetros de subida (não exagero) por uma estrada ladeada por árvores soberbas, com inscrições em latim. Fosse eu minimamente botânico (desgraçadamente não o sou) e esmagaria os peritos com nomes venerandos. A certa altura, lembrei-me da Rebecca de Hitchcock e do susto da Joan Fontaine da primeira vez que entrou em Manderley. Lembranças não eram lembradas e achei-me diante de uma mansão que parecia a do Senhor de Winter. O táxi contornou-a e descemos num jardim de buxos a perder de vista.
Em pequeno, a minha mãezinha ensinou-me que, quando se é convidado, a primeira coisa a fazer é ir falar aos donos da casa. As regras ali eram diferentes. Numa vasta varanda, inconfundível na «silk red robe» e no «silk red pijama», Hugh Hefner conversava com uns íntimos e com umas íntimas. Nem pensar em lá chegar. Para o impedir, existiam uns polidos e corpulentos guarda-costas que nos saudavam em nome do mestre, enquanto conferiam discretamente o nome que lhes dizíamos com uma lista que tinham. E logo chegaram as coelhinhas, servindo copos, louramente insinuantes. Andando, tremiam-lhes as mesmas coisas que tremeram a Vénus quando subiu ao Olimpo para interceder pelo Gama. Qualquer coisa entre o jardim de Klingsor e o Venusberg.
Depois que de nós afastaram o desejo de comida e bebida, propuseram-nos uma voltinha. Começou pelo muito celebrado Grotto, que, ao princípio, parece a ribeira misteriosa da antiga feira popular e, a pouco e pouco, recorda os lagos e as grutas do rei-virgem da Baviera. Música afrodisíaca, estalactites e estalagmites a que só extremos de boa educação podem chamar símbolos fálicos ou vaginais. Por aqui me fico na descrição, que estas coisas mais vale imaginá-las do que nomeá-las.
Após as vinte mil léguas submarinas, a Arca de Noé. Quero eu dizer, um jardim zoológico a perder de vista, onde não vi feras, mas muitas girafas, zebras, avestruzes e cangurus. O luxo da colecção era a morada dos répteis e o espaço dos aquários. A colecção de peixes do Pacifico era particularmente prodigiosa.

A essas horas, começava a anoitecer, as coelhinhas prometeram o resto para logo e levaram-nos para dentro. Era tempo de cinema. A sala privativa de Hugh Hefner cumulou os meus sonhos. Madeira escura, grandes maples de couro, mesinhas para o cinzeiro e para o copo, ecrã imenso. À frente, cadeirão especial para o anfitrião, que entrou por outra porta e nos introduziu, numa longa prelecção, ao filme que escolhera: a versão de 1939 de The Hunchback of Notre Dame, realizada por William Dieterle, com Charles Laugthon e Maureen O'Hara. Bem ao meu estilo, contou de como amara o filme aos 13 anos e de como a seguir o foi amando vida fora. Nunca vi mais bela cópia dele.
Finda a sessão, alguns voltaram aos prazeres da mesa, enquanto outros (foi o meu caso) preferiram continuar a explorar os jardins. Não me arrependi, pois que as nossas guias nos levaram ao «santo dos santos», a peculiaríssima garçonnière de Hef.
Na sala de entrada, aquela versão da «Última Ceia», onde Clark Gable, James Dean, Marlon Brando, Elvis e sete outros bebem néctar e comem ambrósia. Uma parafernália erótica preenchia cada canto e cada recanto, até nos mostrarem os quartos e as casas de banho. As posições do Kama-Sutra ilustravam as portas, sugerindo a especialidade de cada câmara, como parece que foi de uso nos lupanares do século XIX. Entrado no primeiro quarto, fui-me abaixo das pernas, não por culpa delas, mas por culpa do chão, almofadado e elástico e não propriamente destinado à parte do corpo humano conhecida pelo nome de pés. Paredes e tectos de espelhos. Cada quarto cada cor, qual delas mais kitsch e mais berrante. Uma rampa de igual moleza levava às casas de banho, muito escuras e subterrâneas. Mas a luz, como tudo o resto, dependia do gosto de cada qual. Também se podiam iluminar feericamente as casas de banho e escurecer os quartos. Ideal para jogar às brincadeiras às escuras, à cabra-cega ou à linda barquinha do lindo luar.

Quando voltei à Mansão, já havia poucos convidados, entretanto saídos ou entretanto recolhidos. Comecei a admirar a colecção de pintura de Hefner, sobretudo os seus Fragonard. Foi nessa altura que o homem de pijama de seda se aproximou de mim e a conversa voltou ao corcunda.
Contou-me ele então que sempre gostara tanto de ver filmes como de falar sobre eles. Mas, outrora, os amigos fugiam a sete pés dessas conversas intermináveis, sobretudo do seu requinte supremo que era contar um filme tintim por tintim. Por isso, quando ficou rico e famoso, resolveu organizar aquelas sessões. Eram sobretudo um pretexto para ele falar demasiado sabendo que os agradecidos convidados não ousariam pateá-lo ou virar-lhe as costas. «Agora, como viu» (e fora bem verdade) «ouvem-me em religioso silêncio e, no fim, dão-me muitas palmas. All that money can buy».
«All», depois de tudo o que eu vira, era um exagero. Mas ficou-me a sensação (talvez errada) de que, pelo menos em 1995, ele se divertia bastante mais com essas cinéfilas palestras do que com as coelhinhas. Pelo menos, quando nos despedimos, já não havia coelhinhas nenhumas e ele estava a meio de me contar a versão de Lon Chaney (1923) do romance de Victor Hugo.
As almas têm, às vezes, encontros singulares.
 

quarta-feira, janeiro 28, 2004

Não é normal
As alegações sobre o Direito Internacional não têm pés nem cabeça; politicamente, o raciocínio é uma alucinação. Mas o que seria mero nonsense torna-se arrepiante quando pensamos que Richard Perle é membro do Defense Policy Board da actual administração Bush e David Frum assessor do mesmo presidente, que agora se recandidata e que muita gente teima em encarar como um político normal, como um candidato como outro qualquer, melhor do que alguns radicais do Partido Democrático.
 
Tough reading this
Pela experiência do Filipe Nunes, sempre que há um presidente da Câmara de direita em Lisboa, ele é assaltado. Não me espanta: já devíamos ter desconfiado que a célebre complacência da esquerda com o terrorismo revela uma tendência geral, uma patologia do crime. Um bando de guerrilheiros políticos, um braço armado da oposição de esquerda, parte para as ruas para praticar assaltos sempre que a direita conquista o poder nas urnas. A única solução é eleger candidatos do PS.
Esperamos ainda, se possível, algum dado que permita dizer que os assaltos efectivamente aumentaram em Lisboa e, sobretudo, que há alguma forma de razoavelmente imputar esse aumento a um presidente de Câmara que ocupa o poder há dois anos.

Post-Scriptum. A minha avó, que não é uma eleitora habitual da esquerda e foi recentemente roubada, ainda assim acha a mensagem dos novos cartazes do PS entre o ridículo e o repugnante. Ah, pois, mas não pensem na minha avó: tem uma propensão inata para o pós-materialismo e fica radiante quando lhe levam a carteira.
 
A liberdade

O inimigo do presente representava sempre o mal absoluto, de onde decorria que qualquer acordo, passado ou futuro, com esse inimigo afigurava-se impossível.
[George Orwell, 1991 (1949), 1984, Lisboa: Antígona, pp.39-40].

No dia em que Saddam foi preso, o Daniel postou esta foto, de 1983. A fotografia gerou viva indignação e muita incomodidade entre os partidários da actual política dos EUA. Mas - independentemente dos detalhes pertinentes que por eles foram acrescentados sobre o contexto que eventualmente justifica ou desculpabiliza a fotografia - o post do Daniel prestou um serviço público mais importante: demonstrou para além de qualquer dúvida como a retórica do bem absoluto contra o mal absoluto só era possível na base de uma despudorada falsificação da história.
Eu tenho, como já disse muitas vezes, uma admiração infinita pelo Economist - e no entanto o Economist enalteceu várias vezes a «clareza moral» de George W. Bush, o homem que, não sendo muito sofisticado e até por isso, sabe porém distinguir claramente o bem do mal.
A guerra contra o Iraque não era, nunca foi, uma guerra entre o bem e o mal. Podia haver - no caso não havia, mas podia haver - razões ponderosas para iniciar aquela guerra; o bem e o mal não eram o cerne da questão num regime com 1/4 de século de existência e sem ligação discernível aos atentados da al-Qaeda. Mas o 11 de Setembro teve o efeito trágico de exponenciar a retórica do bem contra o mal. Só na absoluta mentira é que a retórica self-righteous da actual administração americana - que, aliás, não rompe mas aprofunda traços que lhe são anteriores - sobrevive e se expande. (Era sobre esta self-righteousness pós-11/9 o panfleto, a meu ver primário, de Lars von Trier intitulado Dogville).
Mesmo algumas boas cabeças depois do 11 de Setembro acharam que se justificava uma atitude de complacência com estas balelas. Em nome das «ameaças assimétricas» e do combate ao terrorismo admitiram justificações muito pobres, muito erráticas, muito desonestas e ao longo de meses, para desencadear a guerra.
Não se justificava complacência nenhuma. Quem disse «Eu vi as provas!» portou-se como o mentiroso que é.
Que a mentira descarada nos provoque repugnância é uma reacção saudável; que se exponha a mentira que se andou a vender é condição de sanidade mental, tanto ao nível das pessoas individuais como das sociedades.
A imagem do Daniel serve por isso para combater as «vitórias sobre a própria memória» em que assenta o duplopensar. Voltando a Orwell, o inimigo, entre outras coisas, do regime soviético:

A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Uma vez que se reconheça isto, tudo o mais virá por acréscimo.
[George Orwell, 1991 (1949), 1984, Lisboa: Antígona, pp.87-88].
 

terça-feira, janeiro 27, 2004

Diz alguma coisa de cívico
O Filipe Nunes, que não é nenhum idiota, diz que a esquerda não pode dar flancos à direita. A esquerda tem que ter ideias sobre a imigração. Tem que ter um «discurso/programa» sobre a família. Sobre a identidade nacional. E um «discurso/programa» que de um ano para o outro reduza a insegurança nas ruas; compense as pessoas assaltadas pelo prejuízo; e razoavelmente permita imputar a um presidente de Câmara com dois anos de exercício o alegado aumento do número de assaltos.
Eu gostava de conhecer o «discurso/programa»: ou o que se propõe é mais polícia, que talvez minimize no imediato a insegurança mas não é um programa de esquerda; ou o que se propõe é outra coisa qualquer, mas que não produz resultados a dois anos. Em suma: ou o que o cartaz propõe não tem nada especificamente «de esquerda», ou, na sua imputação ao Santana Lopes, não tem nada de sério. E o pior é que eu suspeito que nem uma nem outra: é um cartaz vazio, aldrabão, não é ideia nenhuma.

2003 foi o annus horribilis da actual direcção do PS. Mas enquanto se tratou do processo Casa Pia eles portaram-se, a meu ver, com muita decência e muito bem. O meu medo é que o pior venha agora, quando chegar a política.
 
Atiro a pedra
Escreveu o Filipe Nunes: «quem nunca foi assaltado na Lisboa de Santana que atire a primeira pedra». Cuidado: a convite, sinto-me disposto a pegar numa pedra com tanta despreocupação como - digamos - num copo de água.
 
Not in a shy way
To think I did all that
And may I say, not in a shy way,
Oh no, oh no not me,
I did it my way.

For what is a man, what has he got?
If not himself, then he has naught.
To say the things he truly feels
and not the words of one who kneels,
The record shows I took the blows
and did it my way.

[Excerto de "My Way", Frank Sinatra, uma das formas de dar algum sentido a esta merda]
 
Mais morte ainda
Há coisa de um mês e picos tive uma aterragem complicada no aeroporto da Portela. O avião descia, aos abanões, para um lado e para o outro, instalando o pânico entre os passageiros. Eu estava também cheio de medo, procurando racionalizar: os aviões quase nunca caem, o mais certo era aquilo não ser nada, o medo que temos de estar no ar não é proporcional ao perigo que efectivamente corremos. Acontece que, quando estavamos a vinte ou trinta metros do chão, o avião abanando para um lado e para o outro, a minha fé racionalista ficou ela própria abalada porque o piloto resolveu abortar a aterragem e voltar a levantar vôo. Afinal as coisas não estavam assim tão controladas e o perigo era real - caso contrário, não teria havido ocasião para desistir da aterragem. Nesses minutos, passaram-me muitas coisas pela cabeça. No pânico inicial, descobri um amor à vida mais forte do que supunha; passado o pânico, estava quase só concentrado no desejo de que, se fosse para morrer, não doesse muito.
À minha direita vinha uma senhora em convulsões desde quase o início da turbulência: às tantas chorava, rezava e vomitava, tudo ao mesmo tempo. A minha primeira reacção foi de irritação e de desprezo: era mais fácil aguentar o medo sem ter que escutar aquela banda sonora. Mas às tantas ocorreu-me que aquela banda sonora era indiferente, era igual à minha, não era pior nem melhor do que as minhas «ideias» sobre probabilidades. Estávamos os dois em pânico, lidando com o assunto da forma que nos era possível. A morte - ou nem a morte: o medo - é um grande igualizador.
 
A morte: algumas ideias um bocado apolíticas
Não entendo nada da morte, nem da maneira como ela deve ser assinalada. Nenhum assunto me ocupa tanto a cabeça, e desde sempre, como a morte: todos os dias - por vezes obsessivamente, outras apenas como pando de fundo. E deve ser por pensar tanto nisso que não entendo nada (ou o contrário).
Corre agora uma indignação pela blogosfera por causa do evidente excesso de discursos e imagens - muitas vezes as mesmas imagens - do Fehér morto no campo. Não percebo nada, como já disse, mas suponho que a indignação deve, no essencial, ser justa.
Mas acordei de manhã sem ter a mínima ideia do que se tinha passado ontem à noite no estádio e - sabe-se lá porquê - abri a página do Público, ao contrário do que eu sempre faço (que é abrir a página do Barnabé). Foi uma inteira surpresa e - se a palavra cabe - um inteiro choque. Mesmo sem ver, nem em diferido nem em directo.
A morte provoca uma consternação. Suponho que a maioria dos meus concidadãos, embora entenda talvez um pouco mais da morte do que eu, também não entenda muito - 24 anos, de um momento para o outro, puf. Eu não entendo nada mas tenho uma crença, provavelmente muito partilhada: o Fehér já não existe, nunca mais, para todo o inconcebível da eternidade, durou menos de vinte e cinco anos, da coisa chamada ele - ele, não a memória dele, que durará um pouco mais - não ficou nem ficará nunca mais nada. Nem de mim, etc.
Portanto, sendo isto tudo assim tão incompreensível, eu percebo que passemos horas de forma obsessiva a olhar para aquelas imagens, para tentar ver o que não tem nada para ver, tentar perceber o que não se percebe. É assim com aqueles aviões que rasgaram as torres. É assim com a minha cabeça que, por decisão autónoma pela qual não espero ser responsabilizado, todos os dias olha para a morte e não percebe nada.
Talvez eu me farte pouco da televisão porque não a vejo quase nunca. Talvez eu entenda que, ao fim de uma hora inteira de noticiário que não noticia coisa nenhuma, os meus concidadãos com mais sentido crítico já estejam fartos, e a perguntar-se pelo direito que têm a saber do estado do mundo. O estado do mundo: isso ainda interessa, claro que interessa, é a única coisa que fica depois de passarmos todos - até ao inconcebível dia em que nem isso ficará.
Não tenho muito para dizer porque não sei grande coisa. Pessoalmente, não quero um velório chato: quero que as visitas possam da janela contemplar a vista. Acho que tenho o direito, não me levem a mal, embora seja um bocado estúpido, a ruminar todos os dias sobre a morte, e a embasbacar, a contemplar com cara de parvo as imagens do rapaz que cai para o lado, do avião que fura as torres. Mórbido, talvez, mórbido, «a masturbação da dor».
Mas mais tarde ou mais cedo vai-me apetecer desligar o ecrã e irei à minha precária vida.
 

segunda-feira, janeiro 26, 2004

Copiar
Por momentos pareceu-me perceber qual devia ter sido o sentido e o fascínio duma vocação hoje inconcebível: a do copista. O copista vivia simultaneamente em duas dimensões temporais, a da leitura e a da escrita; podia escrever sem a angústia do vazio que se abre diante da caneta; ler sem a angústia de que o próprio acto se não concretize em nenhum objecto material.

[Italo Calvino, Se numa noite de inverno um viajante. O número de página não sei, porque copiei esta citação do Barnabé]

Eis a verdade: - nenhum morto devia ir para as capelinhas, jamais. Elas traduzem um sintoma terrível da nossa época. Antes de mais nada, significam um frívolo desamor à morte e aos mortos. Não sabemos morrer, nem enterrar. E pior do que isso: - não sabemos fazer quarto. Essa impotência diante da morte é o melancólico e inevitável resultado das capelinhas. Antigamente, o defunto tinha domicílio. Ninguém o vestia às carreiras; ninguém o despachava às escondidas. Permanecia em casa e, pois, dentro de um ambiente em que até os móveis eram cordiais e solidários. Armava-se a câmara-ardente numa doce sala de jantar ou numa cálida sala de visitas, debaixo dos retratos dos outros mortos. Escancaravam-se todas as portas, todas as janelas; e esta casa iluminada podia sugerir, à distância, a idéia de aniversário, de casamento ou de velório mesmo.
Era a época em que as mães, as viúvas tinham furores de Sarah Bernhardt. Lembro-me de uma menina, que morreu de febre amarela, quando eu tinha meus cinco anos. Pois bem. A mãe da morta quase pôs a casa abaixo. Batia com a cabeça nas paredes; derrubava as cadeiras; e queria arrancar os próprios olhos. Teve que ser contida, amordaçada, quase amarrada. Todos haviam parado de gemer, de chorar, para espiar essa dor maior. Houve um momento em que só ela gemia, só ela chorava, como uma insuperável solista.
Hoje, isto não é possível. A capelinha esvaziou a morte do seu conteúdo poético dramático e, direi mesmo, histérico. Preliminarmente, o defunto está fora do seu clima residencial. Como os demais, ele é um constrangido, um cerimonioso, um deslocado. Sim, todos, inclusive o cadáver, têm um ar de visita. Essa polidez impede a violência e a espontaneidade da dor que vem de dentro, das profundezas, como um gemido vacum. Bem que a viúva desejaria espernear, esganiçar-se, como uma canastrona do velho teatro. Mas eis a verdade: - a capelinha torna inexeqüíveis as histerias magníficas dos funerais antigos.

[Nelson Rodrigues, «O craque na capelinha», publicado originalmente em Manchete Esportiva, 11/2/1956, reproduzido em À Sombra das Chuteiras Imortais, São Paulo: Companhia das Letras, pp.21-22]


[imagem copiada da morsa]
 
Blogs
O Barnabé é uma casa. Mas A Praia é um jogo.
 

sábado, janeiro 24, 2004

Contra os comentários

Há dias em que me dizem que sou igual ao Calvin. E há dias em que sou igual ao Calvin.

Depois de, na mais disparata asserção que lhe ouvi em quinze anos de convívio, o André ter proclamado «a superioridade moral da maioria dos blogs de esquerda em relação à maioria dos blogs de direita» por os primeiros se abrirem a comentários e os segundos não, ele prova-lhes agora o fel. Não tenho nada a favor dos comentários. Pelo contrário, acredito que há um estímulo excessivo à opinião avulsa e irresponsável. Não custa muito a quem quer falar - desde que tenha um computador e uma ligação à net - fazer um blog e escrever, se quiser até no anonimato, aquilo que pensa; também não custa, se quer estabelecer o diálogo com uma pessoa que escreveu, mandar-lhe um email. Eu gosto muito de receber correio de leitores, mas acho esta barreira mínima altamente saudável: se a opinião não merece o esforço de mandar um email, então é porque não merece a pena. A generalidade dos comentários que se escrevem nas respectivas janelas não existiriam se tivessem que ser formulados por email - e não se perdia nada.
Há de resto outra coisa que acho que convém cultivar e as janelas de comentários tendem a destruir: um registo de relativo monólogo. Há algumas ideias que demoram tempo a ser elaboradas na cabeça de quem as pensa, e que não podem ser imediatamente percebidas pela generalidade das pessoas que as lêem. As pessoas percebem bem à primeira aquilo que já estão à espera de ler; e, quando não estão à espera, é muito comum perceberem não o que lá está, mas o que estavam à espera que estivesse.
Repare-se que eu sou todo a favor do debate e essas coisas todas: comunicar obriga certamente a esclarecer o que se diz, e falar em monólogo não é apenas inútil como - enfatizo - estupidificante. No entanto, um relativo monólogo, o espaço para elaborar, para não ser imediatamente chamado à realidade (ou à «normalidade») é indispensável para se poder produzir alguma coisa de novo. Para desenvolver temas e registos pessoais. As janelas de comentários que existem por aí são bem ilustrativas de como, na discussão, os bloggers pensam muitas vezes menos, aquém e com menos originalidade do que nos posts. E isto já para não falar no hooliganismo.

Em suma: acredito na superioridade moral dos blogs de esquerda sobre os de direita. Mas por causa da guerra do Iraque e das posições face ao governo português, não por causa das janelas de comentários.
 
Outro campeonato

Nove vitórias consecutivas. Porreiro. Para a semana já podemos perder.
 
Tão maluco
Vini Reilly era tão maluco, tão maluco, que visitava o psicanalista dia sim, dia não.

[Este post é dedicado às cinco ou seis pessoas que o perceberem].
 

sexta-feira, janeiro 23, 2004

Consulte o seu médico ou farmacêutico
Costumava ter um anúncio a um «master en psicoanálisis» ali em cima na barra azul; agora tenho sugestões para o alívio das hemorróidas. São problemas sérios, que merecem atenção, mas não há confirmação científica de que a leitura deste blog resolva alguma coisa. Em caso de persistência ou agravamento dos sintomas, consulte o seu médico ou farmacêutico.
 

quinta-feira, janeiro 22, 2004

Gajos mais novos
Todos os gajos mais novos que eu, sejam quais forem as qualidades que tenham, são novos demais. Há quinze anos que reparo nisto, e desde então não mudou nada.

[Não esperem um post dedicado ao tema «gajas mais novas»].
 

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Lenine esquiava

O melhor Lenine que encontrei online

Passam hoje oitenta anos que morreu Lenine, com apenas 54 anos de idade, embora, devido à doença, parecesse entre oitenta e cem. Não tenho muito a dizer sobre o personagem, que acho que nunca li e que foi protagonista de uma História que nunca estudei. Mas aproveito para lembrar, sobretudo aos esquerdistas que chateiam o Pedro Adão e Silva por ele ter um blog a falar de surf, e por assim demonstrar a sua irresponsabilidade política e insensibilidade às desigualdades sociais, que Lenine, mesmo tendo sido uma das personalidades mais marcantes do século XX e deixado uma obra volumosa, tinha fama de preguiçoso e, enquanto viveu na Suíça (entre 1913 e 1917), aquilo que mais gostava de fazer era esquiar.
 
As ricas cada vez mais ricas?
Ainda o impressionante estudo divulgado pelo Expresso: num só ano, 40% dos homens portugueses recorreram à assistência técnica de profissionais para se satisfazerem sexualmente. Contas por alto, um milhão e duzentos mil homens. Se pagassem imposto, resolvia o défice? E quantas mulheres são precisas para satisfazer um milhão e duzentos mil clientes por ano? Se imaginarmos uma prostituta para cada vinte clientes, ficamos com o bonito número de 60.000 profissionais. Teremos um país com muitas prostitutas, ou poucas que fazem muito dinheiro?
 
Aquele gesto magnífico parecia aniquilar uma civilização inteira
Qual é a metáfora da liberdade e do inconformismo em 1984 de Orwell?

Ela despiu-se praticamente com tanta presteza como ele imaginara, e quando atirou a roupa para o chão foi com aquele gesto magnífico que parecia aniquilar uma civilização inteira. O seu corpo branco cintilava ao sol. Mas só decorridos alguns segundos ele o olhou; tinha os olhos presos àquele rosto sardento, ao leve sorriso atrevido. Ajoelhou diante dela e pegou-lhe nas mãos.
- Já fizeste isto alguma vez?
- Claro que já fiz. Centenas de vezes. Bom, dezenas, pelo menos.
(...) O coração dele deu um pulo. Ela fizera aquilo dezenas de vezes: oxalá tivessem sido centenas, milhares. Tudo quanto sugerisse corrupção enchia-o sempre de louca esperança. Quem sabe, talvez o Partido estivesse podre por dentro, talvez o seu culto do esforço e da abnegação não passasse de simples máscara a esconder a iniquidade. (...)
- Escuta. Quanto mais homens tiveres possuído, maior o meu amor por ti. Percebes?
- Percebo perfeitamente.
- Odeio a pureza, odeio a virtude! Só desejo que não haja no mundo uma única alma virtuosa. Quero toda a gente corrupta até à medula.
- Bom, nesse caso devo ser a pessoa ideal para ti. Sou corrupta até à medula.
- Gostas de fazer isto? Quero dizer, mesmo que não fosse comigo? Gostas da coisa em si?
- Adoro!
Era precisamente o que ele queria ouvir. Não o mero amor humano, mas instinto animal, o simples desejo indiscriminado: essa força que havia de destruir o Partido.

[George Orwell, 1991 (1949), 1984, Lisboa: Antígona, pp.130-131]
 
Aproveitando para fazer uma pergunta mais rasteira
É muito engraçado, mesmo que seja impossível de acompanhar, assistir à conversa que se trava entre a Bomba e o Abrupto a propósito de traduções do grego. Traduções são um assunto decisivo para quem gosta de palavras, como é o meu caso, e obviamente que não é só no grego, ou provavelmente não sobretudo no grego, que uma grande parte da edição em Portugal não presta. Uma coisa que me intriga é que grandes escritores, como Jorge de Sena, tenham dado o nome a traduções que, salvo melhor opinião, são muito más e não se conseguem ler - como a de Fiesta, de Hemingway. Alguém tem uma dica para resolver o enigma?
 
O meu universo mental
Houve alturas em que me foi difícil escrever para o blog, designadamente: quando estive no estrangeiro e agora. Há uma coisa que une esses momentos: a falta do tandem Mexia/Lomba, que quando não escrevem, ou não escrevem com regularidade, esvaziam o universo mental onde esta conversa ficcionada, às vezes só dentro da minha cabeça, faz sentido. Há outros blogs que leio e até que são, de certo ponto de vista, melhores - como, especialmente, o Barnabé; e nalguns aspectos a blogosfera é hoje mais rica e diversificada do que há três ou quatro meses. Mas aqueles compõem, como eu sabia desde o primeiro post, o ambiente em que A Praia subsiste.
 

terça-feira, janeiro 20, 2004

Para os meus alunos
Este post é de estilo novo: até aqui eu mais ou menos fingia que nenhum dos meus alunos sabia que eu tinha um blog e eles, os que sabiam, mais ou menos fingiam que não sabiam que era meu. Penso que este acordo tácito se destinava a preservar a gravitas inerente à docência e obviamente incompatível com quase tudo o que se passa por aqui.
Mas agora vou fazer ao contrário: aos que passarem por aqui, sugiro que dêem uma espreitadela nos cursos do MIT da área de Ciência Política (e, já agora, também pelo menos História, para não ficarmos muito quadrados), onde se apresentam o programa, a bibliografia e questões de orientação relativas a cada disciplina do departamento. A sobreposição entre os temas que lá se tratam e os nossos é apenas parcial, o que demonstra que na nossa área há ainda bastante pouco consenso sobre o que se deve estudar. O universo mental que se forma nas universidades americanas é substancialmente distinto do nosso, que é mais próximo da bibliografia inglesa - e eu, contra todas as evidências, nem sequer tenho a certeza que o nosso seja pior.

(Cheguei ao link via Cruzes Canhoto.)
 
Sovietchic
 

segunda-feira, janeiro 19, 2004

2500 páginas de «origens»
Hoje, em vez de escrever, transcrevo, uma carta de Herberto Hélder para o Jornal de Letras, um recorte de jornal que descobri agora a meio de arrumações, e que guardei com tão pouco cuidado que não sei a data precisa de publicação mas deve ter para aí uns três anos. Diz assim:

No último número do JL, o 769, leio, a propósito das complexas iniciativas do Porto Capital da Cultura, estas linhas que muito me impressionam:
«O livro 2001 Poemas para o Futuro pretende constituir-se como uma antologia da poesia universal, compilando, em cerca de 2500 páginas, o essencial da poesia esquimó, celta, judia, árabe, vietnamita, germânica, persa, entre outras origens.»
Se me desse licença, Sr. Director, eu classificaria o parágrafo acima como qualquer coisa assim entre o pesadelo e o jogo dos matraquilhos. E o pior é que se diz logo a seguir que a «selecção e organização das peças», isto é, dos matraquilhos do pesadelo, está a meu cargo e de mais duas pessoas.
Não sei o que é que elas pensam sobre o assunto, as outras duas, eu cá por mim acho que se trata da noite do mundo.
2001, germânica, celta, futuro. A minha alma está parva.
Mas é mentira, Sr. Director, felizmente que é tudo mentira. Por isso venho pedir-lhe para partilhar comigo o alívio de saber que acordámos - e verificamos agora não ter sido isto mais que um sinistro disparate nocturno. Eu não estou a seleccionar nem a organizar coisa nenhuma. Era o que faltava, com a minha idade, a minha úlcera, a minha preguiça. E também a minha intransponível ignorância dos vietnamitas. E, coragem!, dos persas.
Em suma: V.ª Ex.ª e todos os meus amigos podem ficar tranquilos. Eu nunca conseguiria ser tão intrepidamente sacana. 2500 páginas de «origens», imagine-se!
[Herberto Hélder]
 

domingo, janeiro 18, 2004

Encher chouriços
A quem interessa ler uma escrita que não transforme quem a escreve? A quem interessa um trabalho que não transforme quem o faz?
 
O próprio ódio
Quem se odeia mais: os bloggers que ciclicamente se perguntam pelo sentido do que andam a fazer, ou os leitores de blogs que ciclicamente concluem que os bloggers são uns narcisistas e doentes mentais?
 
Quarenta por cento
Fulano lamenta-se-me que todas as mulheres por quem se interessa são «comprometidas». Fulano acha-me «optimista» por dizer que isso não faz diferença nenhuma.
Fulano até costuma assinalar que, numa sociedade marcada pela gratificação imediata, o amor se tornou difícil. Fulano, que se acha pessimista, acredita que todas as mulheres estão com os respectivos namorados e maridos satisfeitas e felizes, e não para combater o pavor da inutilidade e da solidão. Fulano, pessimista, acredita num mundo quase perfeito: quase, porque os solteiros ficam de fora, e pessimista porque, enfim, ele é solteiro.

40% dos homens portugueses vão às putas, diz o Expresso. Sejamos, pois, estatísticos: 40% das mulheres portuguesas «comprometidas» já tiveram relações extraconjugais. E 99% dos homens portugueses que vão às putas estão-se a marimbar para a lei do aborto, mas nunca admitiriam que do espermatozóide depositado nascesse uma criança.
E eu, destes todos, só reprovo os que mantêm a lei como ela está.
 
Realizar a utopia da comunicação
Quando A Praia for inteiramente dos leitores, terá finalmente morrido.
 
Ex-blogger
Ciente de ser regularmente lido por algumas centenas de pessoas, o blogger renunciou a escrever coisas fúteis, subjectivas e narcisistas. Tornou-se no proprietário de uma tribuna de ínfima dimensão, na verdade um ex-blogger.
 

sábado, janeiro 17, 2004

Falta o link
Que pena o texto do João Pereira Coutinho no Expresso não estar disponível online. Ainda não tenho nenhum post intitulado vómito.
 
Magalhães démodé
Como sempre, chamo a atenção para o artigo de Pedro Magalhães, desta vez sobre a mais recente missa do Embaixador Cutileiro e em registo démodé.
Já em 1979, em "FMI", José Mário Branco sintetizava muito bem o pensamento que agora exprime o Embaixador Cutileiro:

«Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é, filho? Todos temos culpas no cartório, foi isso que te ensinaram, não é verdade? Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande - tenho dito. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém - não é isto verdade? Quer isto dizer: há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular. Somos todos muita bons no fundo, né? Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né?»
 
Não é nada a não ser cinema


«O aspecto sedutor desta cena reside na sua própria gratuitidade. É uma cena esvaziada de qualquer verosimilhança e de qualquer significado: o cinema, praticado deste modo, torna-se verdadeiramente uma arte abstracta, como a música».
A frase, segundo li também na folha da Cinemateca, é de Truffaut sobre a longa sequência do deserto de North by Northwest em que Cary Grant espera. Mas - sacrilégio! - foi exactamente o que pensei de Kill Bill, um filme de que, contra a opinião de vários bloggers, eu gostei imenso.
 
Tell me about it


Quando se supõe amado está a ser enganado; quando se supõe enganado está a ser amado. E em ambos os casos o seu comportamento é egoísta e cobarde, sempre nada percebendo e tropeçando a cada passo.

[João Bénard da Costa sobre o personagem de Cary Grant em North by Northwest de Hitchcock, 1959]
 

sexta-feira, janeiro 16, 2004

O que é «ver»?


Esta noite ouvi Bénard da Costa contar a seguinte história: há um filme de Buñuel, o último filme de Buñuel, Esse Obscuro Objecto do Desejo (1977), em que a personagem feminina principal é interpretada por duas actrizes muito diferentes. É a mesma personagem, no mesmo momento da história, que ora é interpretada por uma actriz, Ángela Molina, ora outra, Carole Bouquet. João Bénard da Costa - certamente o português que melhor escreve, e provavelmente o que mais sabe, sobre cinema - à saída do filme comentou:
- «Óptimo filme - e a actriz é espantosa. Não a conhecia.»
- «Qual actriz?»
- «A protagonista.»
- «Qual das duas?»
- «Duas?»
Fisicamente, as duas actrizes não são parecidas. Mas, onde havia uma personagem só, Bénard da Costa viu só uma actriz.
Faz-me lembrar Nelson Rodrigues - pois é: somos burros, burríssimos - que escreveu dos melhores textos que já se fizeram sobre futebol embora visse com dificuldade.
 
Observação marginal a texto muito interessante
O Daniel disponibilizou - e fez muitíssimo bem - no Barnabé o artigo que publicou hoje n'A Capital. Excelente artigo. A minha observação é bastante marginal à substância do problema que coloca, mas a descrição do ritmo das notícias televisivas e do efeito provocado por esse ritmo fez-me lembrar - os próprios blogs.

«Esta rapidez faz com que todas as notícias, cada uma delas, isoladamente, sejam inconsequentes. Elas são sempre devoradas pela notícia seguinte.»
 

quinta-feira, janeiro 15, 2004

A presunção não era de inocência?
Muita confusão me faz ler Boaventura Sousa Santos, jurista de formação e eminente sociólogo do direito, referir-se a arguidos como «presumíveis criminosos», no artigo da Visão desta semana. Será que nada do que nos ensinaram era para levar a sério?
 

quarta-feira, janeiro 14, 2004

O blogger é um fingidor
É sempre interessante olhar para as horas dos posts para saber quando foram escritos. Salvo que os bloggers, uns aldrabões, manipulam como lhes apetece as datas e horas de publicação.
 
O Deserto
A propósito: há dias em que olho para aqui e vejo muita areia mas não vejo o mar. Às vezes a diferença entre a praia e o deserto pode ser bastante ténue.
 
Instalo-me (plano de actividades)
Descalço-me, para sentir os pés enterrarem-se na areia. Caminho até encontrar um lugar onde não esteja muita gente. Abro a cadeira, pouso o livro que trouxe comigo, tiro a t-shirt e o boné. Dirijo-me para o mar, com os olhos nele até ter os pés lá dentro. Enquanto entro e não entro olho para as pessoas que passam, para um lado e para o outro. Hei-de ler, passear, estar deitado de olhos fechados e mergulhar no mar, nas próximas horas estarei por aqui. De forma não programada haverá coisas novas e velhas a passar-me pela cabeça.
 
A contra-corrente
Vou passar a escrever menos. Não me pagam para isto. Ando cansado. Tenho muitas coisas para fazer. Isto não é uma obrigação e às vezes não me apetece. Há muitas invejas. Percebem-me mal. Não me dão tanta atenção como deviam. Não me merecem. Preparem-se que eu vou escrever menos.
Vou escrever menos? Não senhor. Eu vou, a partir de hoje vou, se deus quiser e me der vida e saúde, vou mas é escrever mais. Muito mais. O resto? Quero lá saber do resto.
 
Que o leias assim
Esperemos que Inês diga que sim, e que mais tarde, num momento de impaciência ou de cansaço, quando estiver prestes a ser agressiva, se recorde que «numa manhã de Inverno o meu nome foi escrito, lido, transmitido e envolvido de paixão, num encadeamento sem fim, num segredo mais transparente do que a própria luz». Espero que tu leias assim, o que lá está escrito, em silêncio, sobre o que lá está escrito.

[Do belo texto - o que vai sendo raro - de Eduardo Prado Coelho no Público de ontem, com o lapso curioso de na edição online vir assinado por José Manuel Fernandes]
 
Excelentes notícias do Porto
Pontapé de Saída, o ciclo comissariado pelo antropólogo Carlos Mendes, é, para já, a única actividade cultural inteiramente pensada - com cabeça, tronco e membros - tendo em conta o Euro 2004. Organizado pela Culturporto, o ciclo decorre entre Abril, Maio e Junho no Rivoli Teatro Municipal, e foi gizado "para que sejam reequacionadas as fronteiras simbólicas entre os universos do futebol e da cultura".
No programa provisório, destaque para a vinda a Portugal de quatro "avançados" das letras europeias e mundiais, num painel moderado por António Mega Ferreira: Umberto Eco, ensaísta e romancista italiano, autor do texto "Como não falar de futebol", incluído em "O Segundo Diário Mínimo", editado em Portugal pela Difel; Javier Marías, escritor espanhol cujas crónicas futebolísticas para o jornal "El País" estão reunidas no volume "Selvagens e Sentimentais"; Jorge Valdano, antigo jogador argentino, autor de crónicas sobre futebol; o francês Bernard Pivot, responsável pelo programa televisivo "Bouillon de Culture", e Ruy Castro, escritor brasileiro, e biógrafo de Garrincha. Tome nota do "match": 20 de Maio.
Entre 21 e 23 de Maio, Eduardo Prado Coelho organizou um conjunto de cinco reflexões em torno de cinco blocos temáticos - Jogo, Corpo, Televisão e Media, Identidades e Artes e Espectáculo - em que "chutam", entre outros, António Mega Ferreira, Paulo Cunha e Silva (director do Instituto das Artes), o crítico de cinema João Lopes, o crítico de TV Eduardo Cintra Torres e o encenador/actor Nuno Cardoso.
Além de ciclos de cinema, perças de teatro e exposições e outras interevenções relacionadas com o mundo do futebol, há dois concertos já programados: com Elza Soares, a última mulher do futebolista brasileiro Garrincha e com o trio inglês Saint Etienne cuja denominação homenageia o clube de futebol francês homónimo.

[Do Público. Salvo que Elza Soares não foi a última mulher de Garrincha.]
 

terça-feira, janeiro 13, 2004

Nada importa mais que a referência bibliográfica
Há mais de cinco anos que sou professor e é-me difícil saber se ensinei alguma coisa a alguém. O ensino é uma tarefa difícil para quem não pensa ter muitos conhecimentos susceptíveis de serem transmitidos. Houve, no entanto, uma coisa que procurei ensinar por métodos ortodoxos e com zelo positivista, convicção absoluta de que é assim: a referência bibliográfica. Quando se cita é preciso dizer pormenorizadamente donde se cita e qual é a data do original.
Rui Tavares, por exemplo, cita Nelson Rodrigues dizendo «Boa tarde». Não me repugna em princípio a ideia de que o extraordinário escritor brasileiro alguma vez o tenha escrito. Mas onde? Se soubessemos onde, saberíamos porquê e perceberíamos, quase com toda a certeza, que esse «boa tarde» não foi nem trivial nem estúpido.
 
Ninguém morreu em Hiroxima
O Rui já falou sobre isto e melhor do que eu. Cada vez que vejo o cartaz de publicidade ao Record sinto-me enojado, e sobretudo entristecido, com os portentos da estupidez humana de todos os dias. Que um jornal desportivo procure promover as suas vendas com uma colecção sobre a 2ª Guerra Mundial é em si mesmo significativo: a 2ª Guerra Mundial não é um acontecimento da História do século XX, que as pessoas não conhecem e pela qual não se interessam, mas uma história de ficção, ou uma lenda, como Romeu e Julieta, Pedro e Inês ou as aventuras de James Bond. E nessa ficção, construída pelo cinema e por séries televisivas predominantemente americanas ao longo dos últimos cinquenta anos, não houve crimes de guerra praticados pelos Aliados. A bomba atómica, quando aparece, nem sequer é um fenómeno em que tenham morrido pessoas, indiscriminadamente. Ninguém se lembra dos mortos de 1945. A esmagadora maioria dos meus concidadãos, sou capaz de apostar, não tem consciência de que «a jogada» represente a morte de alguém de carne e osso, quanto mais de dezenas de milhares de civis. A bomba atómica nem sequer existe, é um fenómeno de ficção. Ninguém morreu em Hiroxima. De resto: Hiroxima nem é nome de um lugar que exista.
 

segunda-feira, janeiro 12, 2004

O cinema na teoria (das RI)


Um dos livros sobre os quais me dá mais prazer falar nas aulas é este: uma introdução às Teorias das Relações Internacionais (a minha disciplina preferida, onde trabalho há mais anos) em que cada tradição teórica é discutida por relação com o argumento de um filme. Os filmes utilizados não são todos, nem a maioria, bons. A autora usa-os muito engenhosamente, traçando um paralelismo entre os filmes como «estórias» e as teorias como «estórias» sobre o mundo. Cada filme ilustra os aspectos que uma dada tradição teórica considera serem os essenciais da realidade. Assim, o Deus das Moscas ilustra a ideia central do «Realismo» de que, na ausência de um poder coercivo, os indivíduos se portam agressivamente, de civilizados passam a selvagens e a única coisa que conta é a força; o Independence Day ilustra o projecto «Idealista» de uma sociedade internacional unida em torno de objectivos comuns. Mas os filmes servem também para outra coisa: em cada um deles Cynthia Weber procura mostrar quais são os pressupostos sobre a realidade em que a tradição teórica assenta mas que não explicita. Isto é: aquilo que nós temos que presumir que seja assim, que é indiscutível para a teoria, que temos que aceitar para que a teoria - qualquer teoria, cada uma das teorias, todas elas - possa fazer sentido. Os pressupostos últimos sem os quais não funciona.
A principal inspiração teórica de Cynthia Weber é Barthes, um autor praticamente desconhecido das Relações Internacionais. Uma das virtudes é exactamente essa: expandir as fronteiras do que é teoricamente relevante para as RI. Cada tradição teórica assenta, segundo Cynthia Weber, num «mito», numa «verdade» naturalizada.
Enfim, estou a tornar-me chato. O que importa é isto: uma fantástica introdução às teorias, um livro pedagogicamente fascinante, muito inteligente, muito complexo, muito simples, muito inteligível. A minha primeira aula de 2004 foi sobre isto, uma óptima maneira de começar para os alunos do 1º ano (acho eu). Uma óptima leitura para qualquer pessoa.
 

domingo, janeiro 11, 2004

Se eu me apaixonasse pela Ingrid Bergman


Fui ver um Hitchcock e saiu-me inesperadamente Copacabana, 1946. Como acontece com alguma frequência, achei mais interessante a interpretação de Bénard da Costa sobre o filme do que o próprio filme. E reparei que os textos de Bénard da Costa fazem sistematicamente uma confusão muito acertada: referem-se indiferentemente aos personagens pelo seu nome no filme e pelo nome do actor que os encarna.
 
Rochemback
Pena não ter recortado o Globo, do Rio de Janeiro, do final de Dezembro em que Rochemback era entrevistado e se queixava amargamente, não dissimuladamente, de o obrigarem a vir a Portugal jogar o Benfica-Sporting quando ele «sempre tinha deixado bem claro que a prioridade era a seleção». Quando cheguei cá, a imprensa tratava o assunto como se o Rochemback tivesse tido muito empenho em vir jogar o derby. Presumo que dar aos leitores a versão autêntica sobre o futebol português visto de fora seria muito deprimente, e os jornais desportivos sabem muito bem que a sua função é entreter o leitor.
 
Sobre Meninos e Lobos

Mystic River - Sobre Meninos e Lobos (chama-se no Brasil)

Parece um policialzeco, mas é o melhor filme do ano. O melhor filme americano em anos.
 

quinta-feira, janeiro 08, 2004

A justiça está nos procedimentos
Ao contrário do que é opinião generalizada, pareceu-me péssima, ou pelo menos bastante má, a comunicação ao país do Presidente da República. (A condescendência com que o PR é tratado merecia uma explicação cabal da Ciência Política, porque obviamente tem que haver uma). Num estilo que é da função mas é também muito seu, Jorge Sampaio falou em geral, o que no caso redundou numa coisa péssima: moralizou em geral. Mas o mais perturbador para mim, que não sou jurista, foi aquela ideia de que podemos ou devemos dispensar «os procedimentos». Pensava eu que os procedimentos eram mesmo a única coisa em que podíamos confiar para ter a certeza de que a verdade descoberta pela justiça é realmente a verdade para lá de todas as dúvidas; e pensava que qualquer verdade fora do estrito respeito por todos os procedimentos formais não podia ser aceite como verdade, por mais que haja muitas pessoas a acreditar nela. Se não, para que servem os procedimentos? Se há procedimentos que são meramente formais e não têm nenhuma função a não ser empatar, por que é que não se deitam fora?
Mas como Jorge Sampaio é elíptico, talvez ele não quisesse dizer nada disso. Tenho alunos assim: escrevem as respostas aos exames com uma caligrafia incompreensível na esperança de que, não percebendo o que lá está, adivinhemos pela positiva.
 
Por um punhado de dólares
Espero que João Pereira Coutinho vá ser muito bem pago pela sua coluna no Expresso. Sinceramente. Eu odeio o Expresso, que deixei de ler em 1993, mas, se fosse muito bem pago, também aceitaria escrever para lá.
 
Iconoclastia sem dor
É muito divertida esta notícia de que o João Pereira Coutinho vai escrever para o Expresso. Não conheço bem a obra de Pereira Coutinho, mas sei que é vasta e não tenho dúvidas de que há-de estar recheada de declarações bombásticas contra o Expresso. O ódio ao Expresso é o código genético de O Independente, de que Pereira Coutinho se tornou no colunista mais emblemático. Mas a direita mais iconoclasta dar-se-á sempre bem com as instituições estabelecidas do país: por mais iconoclasta que seja, continua a ser direita. João Pereira Coutinho escreve no Expresso enquanto o blogger mais referenciado à esquerda, Daniel Oliveira, se entretém, se quiser, com A Capital.
 

quarta-feira, janeiro 07, 2004

Sportinguista de olhos fechados
Na sua biografia de Nelson Rodrigues, Ruy Castro conta que aos trinta anos o escritor já tinha perdido irreversivelmente 30% da visão em ambos os olhos, em virtude de sequelas da tuberculose. No entanto, recusava-se a usar óculos. Isso não foi obstáculo a que escrevesse durante cerca de três décadas crónicas de futebol que eram não apenas de referência na altura mas continuam a ser amplamente lidas até hoje. Ia aos jogos acompanhado por alguém que lhe pudesse esclarecer o que não via. O primeiro jogo a que assistiu depois da perda parcial de visão foi um Fluminense-Bangu:

Aos quinze minutos do primeiro tempo, vendo Nelson torcer por uma arrancada do Bangu na direção do arco tricolor, Elza perguntou: «Bebeu, Nelson? Torcendo contra o Fluminense?»
O Fluminense estava de branco e o Bangu com o seu uniforme listrado de vermelho e branco, dos «Mulatinhos rosados». Nelson confundiu-o com a camisa de listras tricolores e, sem saber, estava torcendo pelo inimigo. Nunca mais iria assistir a uma partida direito. Via vultos correndo pelo campo e só fazia uma idéia do que estava acontecendo porque as torcidas têm um código coletivo, de uhs e ohs, além dos gritos de gol.

[Ruy Castro, 1992, O Anjo Pornográfico - a vida de Nelson Rodrigues, São Paulo, Companhia das Letras, p.150]

Sinto-me às vezes um pouco como Nelson Rodrigues, embora a minha vista permaneça intacta. Das épocas mais recentes, a que acompanhei com maior entusiasmo não foi, provavelmente, nenhuma daquelas em que o Sporting foi campeão, mas a de 1996/97 em que, vivendo no estrangeiro, eu não via nada: o meu avô telefonava-me religiosamente no fim de cada jogo - ou, em dias de jogos importantes, várias vezes ao longo do jogo - para me informar do resultado. A minha paixão clubística não era perturbada pelas limitações técnicas dos jogadores, nem pela monotonia dos jogos, nem pelas declarações de treinadores nem dirigentes; a bola, em suma, era estritamente uma ideia.
Agora, eu não estou a dizer que o futebol não merece a pena ser visto: há jogos, em particular de competições internacionais, que merecem ser vistos, que precisam de ser vistos por qualquer pessoa de bom senso. Mas se Nelson Rodrigues se deslocava aos estádios, mesmo depois de já existir televisão, não era para ver melhor, e a minha paixão pelo meu clube - ou por qualquer clube português, de resto, com a eventual excepção do Porto - não resistiria se tudo se resumisse a ver.
 
Banho de bola
Mesmo com a ajuda de Nelson Rodrigues, nós os dois contra um, levamos um banho de bola.
 
Deus nos livre dos que estão do nosso lado
João Miguel Tavares é obviamente um recém-convertido à direita. Nada pior que um convertido. Pela lógica do artigo dele, não se aceitaria que o Estado se empenhasse na recuperação de toxicodependentes; nem que os meus impostos servissem para pagar o tratamento de doentes de cancro do pulmão, causados pelo tabaco que eu não fumo nem desejo que se fume. A despenalização do aborto não é eminentemente uma questão de liberalismo. É uma questão de saúde pública.
 
A bola é um ínfimo detalhe
O meu amigo André Belo gostava que se acabasse com o que chama «mau ganhar»: este péssimo hábito de aquele que ganha fazer pirraça ao que perde. O meu amigo André Belo será feliz quando o futebol for um espectáculo belo e chato como a patinagem artística. Como a patinagem artística não, que ainda é muito competitiva: há-de ser belo e chato como um festival de acrobacias aéreas. Para ele o futebol deixou de ser um jogo: nele só reconhece os elementos «eminentemente racionais». Dez anos de derrotas sucessivas põem nisto um benfiquista: pedindo que se extraia do futebol o elemento da paixão.
O André não devia preocupar-se tanto. É que um dia destes, quando já tiver aprendido a perder com tranquilidade e a ganhar com prazer, quando menos se esperar, contra todas as probabilidades previstas pela lógica, o Benfica há-de voltar a ser campeão. Se aconteceu ao Boavista, por que não há-de acontecer ao Benfica? Que digo eu - se aconteceu ao Sporting...

Certo e brilhante confrade dizia-me ontem que «futebol é bola». Não há juízo mais inexato, mais utópico, mais irrealístico. O colega esvazia o futebol como um pneu, e repito: - retira do futebol tudo o que ele tem de misterioso e de patético. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidente do sobrenatural. Eu diria ainda ao ilustre confrade o seguinte: - em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.
(...) Nós é que vamos exigir, de um jogo de futebol, a cerimônia, a polidez, a correção de uma sessão da Câmara dos Comuns? (...) Se o jogo fosse só bola, está certo. Mas há o ser humano por trás da bola, e digo mais: - a bola é um reles, um ínfimo, um rídiculo detalhe. O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão.

[Nelson Rodrigues, À Sombra das Chuteiras Imortais, São Paulo: Companhia das Letras, p.104. Crónica publicada originariamente no Globo de 18/11/1963].
 

segunda-feira, janeiro 05, 2004

O lábio, o olho


Encarei de novo, «de lábio trémulo e olho rútilo», o Pão-de-Açúcar, o Corcovado, o Morro Dois Irmãos; renovei no mar «a baba elástica e bovina». Para os incondicionais de NR, há um volume novo: A mulher que amou demais, romance único de Myrna, publicado originariamente em fascículos diários durante um mês no Diário da Noite carioca no Verão de 1949.
 
De novo Magalhães
Para quem conheceu o Pedro Magalhães quando ele tinha mais ou menos vinte anos – e embora ele já revelasse na altura grandes qualidades –, é impressionante constatar como se tornou tão depressa no melhor analista político: não apenas teoricamente sólido, mas com capacidade para interpretar a actualidade contra um pano de fundo mais amplo. Mais um artigo que vê muito mais longe, e com muito maior solidez, do que os outros.
É curioso notar que na sua entrevista ao Público de ontem Pacheco Pereira diz exactamente o contrário de Pedro Magalhães. Penso que o que se passa é que, na ausência de um quadro de interpretação que lhe permita explicar a «anomalia» que é a resistência de Paulo Portas e do CDS, a visibilidade do seu discurso mesmo sendo um parceiro menor no governo, Pacheco prefere pensar que ela não existe. Pedro Magalhães, pelo contrário, confronta-se com o que não esperava e procura explicá-lo. Eis o que diz Pacheco:

P - Há pouco elogiava o papel do primeiro-ministro. Uma das qualidades que ele tem tido tem sido a de gerir muito bem a relação com o parceiro de coligação...
R - O que aconteceu foi um bónus para a coligação que foi o processo da Moderna. Quer se queira quer não, o dr. Portas hoje é uma pessoa muito diferente daquela que entrou no Governo. O processo da Moderna tirou-lhe muita agressividade, arrogância. Hoje o seu papel está muito fragilizado e isso foi um factor de estabilidade da coligação. O dr. Portas é hoje um político que não pode fazer uma afirmação ético-moral, não pode falar alto sobre matéria nenhuma. É por isso que agora se dedica àqueles temas esotéricos da guerra colonial, tentando encontrar uma espécie de linguagem perdida da direita que nem à direita tem clientes, que gera por si própria mal-estar, porque é uma coisa de outro mundo, de outro passado...
P - E isso retirou ao dr. Paulo Portas intervenção na forma de governar?
R - Colocou-o na dependência da coligação. O PP hoje não pode ir a votos. Colocou-o dependente de um único plano para o futuro: ver se, com o tempo, entra para o PSD. (...)
P - Em que medida é que a marca do dr. Portas tem sido notória na imagem do Governo?
R - Neste momento, porque é uma pessoa ferida pelo seu comportamento na questão da Moderna, o dr. Portas tem um pequeno papel, mesmo até na imagem do Governo.
 

domingo, janeiro 04, 2004

Vitória na Luz
Como diz um amigo, eu gosto que eles percam - e, de preferência, injustamente.
 
Chegar-se à frente
Passam este ano dez anos desde que fui cabeça-de-lista da Política XXI ao Parlamento Europeu. Tenho curiosidade de ir ver as cassetes de video das minhas aparições televisivas, com a pele lisinha, a barba bem aparada e um bocado mais de cabelo. No entanto, os sentimentos que essas coisas me despertam são sempre muito contraditórios. Por um lado, tenho simpatia pelo personagem que era eu. Por outro, a televisão, e sobretudo a campanha política, desencadeia uma série de tiques que me desagradam. Uma forma de resumir estes tiques é dizer que a própria expressão corporal das pessoas na televisão é chegada para a frente: muito tensas, como se estivessem muito alerta, muito dispostas a cumprir um papel. Uma parte das coisas que eu dizia era, necessariamente, bluff: um político é suposto ter opiniões sobre todos os temas, e quando não tem prepara-se para inventar, e depois já nem precisa de se preparar porque a invenção lhe sai espontânea. Lembro-me que nas últimas sessões de campanha o discurso já me saía completamente engatilhado - tinha resposta para tudo.
E, no meu caso, havia uma coisa pior: tendo 21 anos era tratado como o «puto esperto», que tinha sempre coisas espertas para dizer. Eu desfrutava do papel, com o pequeno inconveniente de que me obrigava sempre a ser esperto, e a fazer de esperto.
No meio, naturalmente, havia umas interferências. Lembro-me de um dia ter ido à RTP para um debate com o Carlos Marques, da UDP, e o Delgado Domingos, do Partido da Terra. Lembro-me de termos estado mais de vinte minutos de pé num corredor esconso enquanto o Primeiro-Ministro, Cavaco Silva, era entrevistado em directo a partir do Algarve. E depois estivemos os três a «debater», se não estou em erro, durante sete minutos. Tudo isto são sinais de um tempo que passou, em que, embora existissem já televisões privadas, a RTP ainda estava bastante protegida da concorrência. A forma nada cuidadosa como fomos recebidos contrastava com a simpatia com que fui tratado na mesma altura na SIC - a RTP não achava que devesse tratar bem os seus convidados. Por outro lado, nós não eramos exactamente convidados: só lá estávamos, naquela simulação de debate entre pequenos partidos (os pequenos iam aos três de cada vez, ao passo que os quatro grandes iam todos juntos), porque a RTP ainda fingia que dava tratamento equitativo a todas as candidaturas. (Havia uma equipa da RTP a passear comigo pelo país durante toda a campanha, ao passo que as privadas não acompanhavam). E tivemos tão pouco tempo e Cavaco tanto porque a governamentalização do canal do Estado era bem maior do que é hoje. Todo esse mundo acabou no espaço de um ano, quando a SIC ultrapassou a RTP nas audiências.
Quando entrei para o estúdio já estava certamente um bocado irritado. A jornalista, a malograda Dina Aguiar, resolveu fazer perguntas sobre política aos dois crescidos e, quando chegou a mim, disse qualquer coisa do género: «Então? Tão novo?». Aí saltou-me mais ou menos a tampa, tratei-a mal, disse-lhe que a pergunta era estúpida ou coisa parecida e que eu já estava atrasado três anos, estava na plena posse dos meus direitos políticos desde os 18. Na altura tratar mal a Dina Aguiar pareceu-me realmente a melhor coisa que eu podia ter feito, porque discutir política num terço de sete minutos com outros dois candidatos escolhidos ao acaso era coisa que não poderia ter feito.
 
A festa da família
Uma das coisas que o Natal produz - com a sua presença totalitária nas televisões e nas ruas, com o encerramento de cafés, restaurantes e cinemas - é não apenas o isolamento mas a ostracização temporária de quem não tem ou não quer ter família.
 
Lixo
De tudo o que é detestável no Natal, talvez nada me repugne mais do que a superabundância das coisas compradas e oferecidas. Tenho um amigo que se costumava ocupar, no próprio dia 25, a deitar fora quase tudo o que tinha recebido. A maior parte das prendas não tem nada para dizer; mas - o que é de certa forma pior - a maioria das que têm no meio da confusão não encontram quem as ouça.
 

sábado, janeiro 03, 2004

Outro favorito
Excelente novidade a de ter Vital Moreira escrevendo posts todos os dias.
 
Ás do palavrão


Por que é que pus entre os meus blogs favoritos um cuja característica mais saliente é pontuar as suas frases com palavrões? Tem várias coisas de que gosto - sentido de humor, auto-ironia, originalidade, generosidade -, mas sobretudo isto: pontua as suas frases com palavrões. Poucas coisas emancipam como o palavrão - sobretudo o que eu não escrevo e ele escreve. É exactamente como diz Nelson Rodrigues: «Nas relações humanas em geral, o nome feio produz [um] impacto criador e libertário». Lembro-me de com seis anos passear pelo corredor de casa dos meus avós paternos disparando palavrões. E a minha avó perguntava: «onde aprendeste essas coisas?» E eu, com candura (hoje com orgulho): «Foi o avô Salvador».

Cada nome feio que a vida extrai de nós é um estímulo vital irresistível. Por exemplo: - os nautas camonianos. Sem uma sólida, potente e jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro Álvares Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da Cantareira. O que os virilizava era o bom, o cálido, o inefável palavrão. (...)
O futebol é o mais falado e o mais pornográfico dos esportes. Durante os noventa minutos, tanto os craques em campo como o torcedor nas arquibancadas rugem os palavrões mais resplandecentes do idioma. (...) O futebol se nutre da pornografia como uma planta de luz.

[Nelson Rodrigues, À Sombra das Chuteiras Imortais, São Paulo: Companhia das Letras, pp.17 e 74].
 
Seis meses
E para dizer com franqueza ainda não percebi muito bem o que é isto.
 
Já nada é como era
A Praia, na minha opinião, já não é o que era. Mas ainda é o que pode ser. Metade da vida, aliás, é esta história.
 

sexta-feira, janeiro 02, 2004

Se não aconteceu, podia ter acontecido
Entrevistámos «Saddama, a oitava mulher de Saddam Hussein», em Janeiro de 1991, durante a primeira guerra do Golfo. Aparecia a minha irmã entrapada em vestes negras que só permitiam descobrir os olhos, num cenário árido e devastado:
«É uma chatice, borra-me as calças todas. Agora tenho muito mais roupa para lavar.»
Isto era um programa de televisão que uma equipa de pessoas de que eu fazia parte escrevia, quando eramos bastante jovens - o Lentes de Contacto, um informativo juvenil aos domingos de manhã na RTP 2 (mas só entre Outubro de 1990 e Janeiro de 1991, porque abandonámos o barco cedo). Não sei já quem escreveu o texto - pelo estilo, talvez o André Belo, talvez o Daniel Oliveira. O que acho mais engraçado agora, com a notícia de que no momento em que foi preso Saddam quis ainda negociar, é que acertámos, sem saber como acertámos no essencial: retratámos o cagarola.
 
Curtíssimo conto moral
Foi há cerca de um ano: ia pela estrada, de noite, quando o carro de trás fez sinal de ultrapassagem. Mas ao deixá-los passar enconstaram-no à berma. Do outro carro saltaram três homens, dois deles armados. Roubaram-lhe tudo; e o terceiro gritava «mata o velho!».
Pode, um dia destes, acontecer comigo. Que farei nessa situação? Mato o velho?
 
Flores a Iemanjá
Consta-me que o Pedro Mexia publicou - mas não sei onde - um artigo intitulado «Contra o fim do ano». Estou em posição privilegiada para o criticar de uma ponta a outra, impiedosamente, por uma razão: é que não o li. Se o tivesse lido, é provável que achasse convergência num ou noutro aspecto; assim, pelo contrário, o meu repúdio é inteiramente livre e total.
Achei cómico que um católico como Mexia tivesse levado ao extremo o anti-misticismo e o anti-ritualismo, vindo sustentar (ao que me dizem) que nada muda com a mudança do ano - e que, se muda, é para pior. Acho, pelo contrário, que a mudança do ano é dos poucos rituais que fazem sentido. A passagem do ano é a altura dos balanços e dos desejos. É altura para reparar no que aconteceu de mais incrivelmente imprevisto em 2003: a blogosfera. (Uma dívida que tenho especialmente em relação a Mexia & Lomba). É altura de pensar o que se ganhou ao fim de um ano: não há praticamente ano nenhum que não traga ao menos uma ou duas pessoas novas e imprescindíveis à nossa vida. E é altura - que haja pelo menos uma altura - de pensarmos no que falta, no que apetece. É altura, em suma - mesmo para um ateu empedernido -, de lançar flores a Iemanjá.
É claro que poderíamos fazer estes balanços todos os dias, ou todas as semanas, ou todos os meses. Mas são muito raras as semanas, ou mesmo os meses, que são suficientemente significativos para fazer balanços. Pelo seu lado, um ano, se passa sempre a uma velocidade incrível, tem a qualidade inesperada de trazer coisas novas. Não há ano nenhum em que não aconteça qualquer coisa.
Pois, se assim é - que sejam coisas boas.
 

Mais ordem, só com mais progresso.
 
Resoluções de ano novo
1. Fazer ginástica.

I'm out of shape, I can't jog... I haven't touched my treadmill in weeks. 572 weeks - that's eleven years.
[Woody Allen em Everyone Says I Love You]

2. Escrever dois ou três textos mais ou menos «académicos».

3. Ler e ir ao cinema.
 
Janeiro
Foi durante a noite de domingo para segunda-feira, creio, que começaram os interrogatórios. (...) Lá despejava a lenga-lenga que tinha fixado e, sobre os acontecimentos, não me arrancavam mais nada. Insultos, ameaças, ficava impávida, apenas lhes ia dizendo que a obrigação deles era a de tratar os presos com o respeito devido a um ser humano, o que os desequilibrava um pouco.
Deram-me papel, deram-me um lápis, não sei se à espera que eu me abrisse por escrito. Tinha que arranjar formas de me defender do tempo infindável o melhor que pudesse. Lembro-me de fazer um trabalho de paciência que os punha mais do que nervosos. Com uma folha de papel, ia-a dobrando e rasgando em quadrados, cada vez mais pequeninos, até só terem milímetros de tamanho. Então, punha outra folha em baixo e deixava cair os pedaços minísculos. Para mim, aquilo era neve a cair sobre a terra branca, e eu admirava a paisagem e ficava pregada nela, completamente em paz. Outras vezes, punha-me a olhar para a bolsa de plástico com as suas conchas e deixava de estar ali, estava no Algarve, com o João e com os filhos, e havia o mar, e a areia, e as conchas, e assim perdia a noção do tempo por completo. (...)
Os interrogatórios eram, regra geral, feitos pelo chefe Mortágua. Em matéria de palavrões, batia, por larga margem, todos os artilheiros e cavaleiros que eu já conhecera na vida. A minha lenga-lenga punha-o em fúria, mas a sua inteligência não era longa e comigo não ia a parte nenhuma.
Acabaram por concluir que eu dormia de olhos abertos, e passavam o tempo a obrigar-me a olhar para sítios diferentes, ou a bater na secretária com qualquer coisa metálica. Alguns, fartos de ali estarem, sem nada que fazer, recorriam aos meus préstimos profissionais. Problemas de filhos, de casa, já nem recordo. Outros mostravam santinhos que traziam na carteira. Tinham vindo da aldeia, mandados pelos padres, para salvarem a pátria dos comunistas.

[Maria Eugénia Varela Gomes, op.cit., pp.211-212, sobre os interrogatórios na PIDE quando foi presa em Janeiro de 1962. Estaria presa até Junho de 1963. O seu marido, João Varela Gomes, ficaria preso de 1 de Janeiro de 1962 a 1 de Janeiro de 1968]

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