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A Praia

«I try to be as progressive as I can possibly be, as long as I don't have to try too hard.» (Lou Reed)

teguivel@gmail.com

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quarta-feira, março 31, 2004

Perseguição da tristeza
- «What do you have to say about your private life?»
- «It's private.»
[Diálogo de Capturing the Friedmans, um belo documentário que está em exibição no Quarteto, mas talvez já só hoje].

A tristeza é o assunto mais banido da blogosfera, e percebe-se porquê: ninguém está disposto a estar triste em directo e assim acrescentar à sua tristeza o incómodo de ter de responder por ela perante os outros. No entanto, um retrato do quotidiano sem tristeza seria muito truncado; e aquele que escrever os textos mais tristes nunca será o mais triste entre os seus contemporâneos.
O Dicionário do Diabo tem-se aproximado de falar da tristeza nos últimos dias. A tristeza do Pedro Mexia talvez pudesse afligir-me; mas a tristeza dos posts de Pedro Mexia não. Ontem, aliás, li Avalanche (ed. Quasi, 2001), o livro de poemas de amor de Pedro Mexia e aqueles de que gosto mais - «Alba» (A manhã não levou/ o que a noite não trouxe), «Losing my religion», «A tua biologia», «Demónios», «Afinal», «Poema de amor» e, sobretudo, «Neste poema» - são talvez os mais tristes.
 
Por ser exacto
Os demónios são amáveis, comoventes mesmo,
ao pé do demónio da comparação, que me
fere por ser exacto, insone, por nada esquecer
em memória em tudo mais tão
faltosa, porque oferece luz abundante ao pormenor
deplorável, ao erro de perspectiva, por ganhar
um corpo que nunca teve, apenas para se interpor
entre o teu corpo e o meu corpo, e o teu corpo.

[Pedro Mexia, «Demónios», Avalanche, V. N. Famalicão: Quasi, 2001, p.56]
 
Play as you please
Blogging is playing. You have to be free to play as you please.
 

terça-feira, março 30, 2004

A paz (2)
Como Lenine observou há já muito tempo, a paz por si só é um objectivo sem sentido. «Absolutamente todos são a favor da paz em geral» (...).
O interesse comum na paz mascara o facto de que certas nações desejam manter o status quo sem terem que lutar por ele, ao passo que outras querem alterar o status quo sem terem que lutar para isso. Já a ideia de que é no interesse de todos que o status quo se mantenha, ou que se altere, seria obviamente contrária aos factos. A ideia de que a conclusão a que se venha a chegar - manutenção ou mudança - deva ser obtida por meios pacíficos teria o assentimento geral, mas é uma trivialidade sem sentido. (...) Uma peculiar combinação de falsidade e trivialidade tornou-se assim endémica nas declarações dos estadistas sobre a situação internacional.

[EH Carr, 1946 (2ª edição, revista), The Twenty Years' Crisis, London, Macmillan, p.51].
 
A paz
[O termo «paz» é] tão difundido (...) que oferece, talvez, nesta época laica, um substituto para os sentimentos de devoção e de comunidade que se evocaram noutras épocas em referência a ideias religiosas.

[Johan Galtung, 1969]
 

segunda-feira, março 29, 2004

O melhor amigo do Papa
Actualização: estamos em 2004, Daniel Oliveira já não é comunista. Agora afasta Testemunhas de Jeová e peditórios da Cáritas dizendo-lhes na cara: - «eu sou pacifista». E eles, claro, fogem assustados - com horror e com medo.
 
Welcome back
A grande arte do Lomba é o regresso.
 
Irmã Lúcia
Eu na verdade nunca vi a Irmã Lúcia. Só vi a imitação da Irmã Lúcia feita por Mário Viegas: puxava o casaco preto para a cabeça, punha uns óculos redondos super-graduados e começava a babar-se.
 
Às vezes penso nisso
No final de A Vida é Bela, o pai é assassinado.
 
De muito a nada
[de um email]

Se me indigno com tudo, acabo por não me indignar com nada.
 
Dangerous wishes
Art represents freedom of thought - not merely in a political or moral sense - but the freedom of the mind to go where it wishes; to express dangerous wishes. This freedom, of course, is a kind of instability. Wishes conflict with the forbidden, the concealed, with that which cannot or should not be thought, and certainly not said. The creative imagination is usefully aggressive; it undermines authority; it can seem uncontrollable; it is erotic and breaks up that which has become solid.
(...) I was afraid to write because I was ashamed of my feelings and beliefs. The practice of any art can be a good excuse for self-loathing. You require a certain shamelessness to be any kind of artist. But to be shameless you need not to mind who you are.

[Hanif Kureishi, 2002, «Something given: reflections on writing», in Dreaming and Scheming - reflections on writing and politics, London: Faber and Faber, pp.14-16.]
 

domingo, março 28, 2004

Primeiro Mandamento
Amarás o próximo como a ti mesmo: com raiva e ódio e repugnância à mistura.
 
A esquerda beata

Lembra-te: só palavrinhas meigas

Escreveu o Paulo Varela Gomes um regozijo puramente pessoal, instintivo, pela morte de um criminoso de massas, e levanta-se em armas o povo do Barnabé, sob o sensato patrocínio de dois dos seus autores, contra «a cultura da morte». Ó meus amigos: também era feio desejar mal ao Adolf Hitler?
O que está em questão não é uma apreciação sobre as consequências políticas deste assassinato: sobre isso o Paulo é felizmente claro. O problema também não é com certeza o carácter político do xeique terrorista: ao lado dele, George W. Bush é uma referência moral, da esquerda e do progresso. Tão pouco discutem – embora provavelmente devessem fazê-lo – as grandiosas generalizações do Paulo sobre a cultura de judeus e muçulmanos. O que os choca, o que realmente os impressiona, é a raiva, o ódio, o exagero e – pecados entre os pecados – o individualismo e a soberba. Parece que acordei com o mundo virado do avesso: a esquerda fica incomodada estritamente por causa da iconoclastia.
É que realmente não me formei em nenhum grupo de escuteiros; nem conheci o Daniel Oliveira ou o André Belo em encontros de jovens ao fim da tarde na paróquia do Campo Grande. Pelo contrário: agora que penso nisso, lembro-me de o Daniel dizer que afugentava peditórios da Cáritas e Testemunhas de Jeová dizendo-lhes: - «eu sou comunista». No meu tempo, «luta de classes» eram as palavras mais meigas no vocabulário de Marx e Engels - o resto estava cheio de metáforas belicistas, exageros polémicos e maldade divertida. Eram os discos do Frank Zappa que traziam o aviso: «não aconselhável a crianças e republicanos». Pois este xeique, na melhor das hipóteses, era a versão terrorista da Irmã Lúcia. (No meu tempo o Barnabé gozava com a senilidade do Papa e da Irmã Lúcia).
Agora parece que é a direita - e logo a direita portuguesa – que reclama para si os louros da iconoclastia, embora continue mergulhada no compromisso político com os padres e devota do culto do chefe, de Salazar a Cavaco até à versão paródica e revisteira de Paulo Portas. «O mundo será livre no dia em que enforcarmos o último rei na tripa do último padre», dizia Voltaire (como aprendi com o André). Ah, que saudades do jacobinismo!
 

sábado, março 27, 2004

Pedro
Desde 1952 que na minha família não nascia um terceiro filho. Imagino que a minha avó havia de ficar contente e até um pouco orgulhosa.
 

sexta-feira, março 26, 2004

Outro biltre


Na terça e na quarta-feira defendi umas provas académicas sobre EH Carr (1892-1982). A importância de Carr na disciplina de Relações Internacionais resulta quase exclusivamente de um livro fascinante, publicado em 1939, mas que é também uma defesa bastante explícita do appeasement. Esse livro, The Twenty Years' Crisis, 1919-1939, não conhece até hoje uma edição portuguesa. Na verdade não sei se devemos encarar isso como um inconveniente ou uma benção, tendo em conta recentes e horríveis traduções de livros importantes desta área, como a de Theory of International Politics (1979), de Kenneth Waltz, há dois anos publicado pela Gradiva. A tradução brasileira, também recente, de The Twenty Years' Crisis é péssima, e isso é especialmente doloroso porque Carr é um magnífico escritor - um polemista de expressão clara, irónico, demolidor, às vezes terrivelmente cínico.
O livro de Carr mais famoso em Portugal - e provavelmente no mundo inteiro - será O Que é a História?, um conjunto de ensaios de 1961 de que existe uma tradução portuguesa na Gradiva - tradução fraca e edição que, creio, está esgotada. Na Grã-Bretanha, nos últimos anos Carr tem vindo a ser objecto de vários estudos e de boas reedições de obras há muito esgotadas. Escreveu muito e sobre muitos assuntos, desde biografias de Dostoievski, Herzen e Bakunine (à qual se referia, no final da vida, como o seu melhor livro) até uma monumental História da União Soviética em catorze volumes, cobrindo apenas os anos entre 1917 e 1929, e que praticamente lhe consumiu todo o tempo desde 1946 ao final da sua longa vida.
Por critérios estritamente «políticos», Carr era talvez «um biltre»: teve a cada momento o aparente condão de fazer as escolhas mais erradas que lhe foi possível. Richard Pipes, historiador anticomunista da URSS, super-reaccionário, que odiava Carr, diz com razão: «ele foi pró-nazi quando o sentimento anti-nazi dominava e pró-soviético no auge da Guerra Fria. O que é desconcertante é que o homem não era nem germanófilo nem marxista.»
Os julgamentos são fáceis, sobretudo para nós que os fazemos retroactivamente. Mas não é apesar dos seus erros, é também, entre outras coisas, com eles que Carr nos ajuda a pensar. Não penso que seja um «génio», não creio que a sua obra atravesse os séculos, se tivermos por bitola um Kant, um Marx, um Freud, os gregos. Mas deixou livros importantes em diversas áreas académicas, é um brilhante pensador, quase uma espécie de herói, um autor que me merece a maior estima.
 
Não adianta mas satisfaz
[email de Paulo Varela Gomes]

Eu gostava de ter sido não só o piloto que disparou um dos mísseis que fez o cheique em fanicos mas o próprio míssil. Ah quem me dera ver aqueles olhinhos de crápula a esbugalhar-se no último micro-segundo...
Digo-te: bebi um copo de prazer à saúde de quem tomou a decisão, politicamente errada, claro, de consequências provavelmente dramáticas, mas sentimentalmente das decisões mais satisfatórias, mais preenchentes da alma, que já tive oportunidade de saudar na minha vida.
Na minha hitlist pessoal, o Yazinzito da mãezinha dele figurava em posição muito alta e fico felicíssimo de o ver assim duplamente vítima dos desportos radicais, o futebol e o encorajamento dos homens-bomba, ao último dos quais dedicou a vida paraplégica e as mortes dos outros.
O falecimento dele não é um falecimento útil como o do Savimbi ou, por exemplo, o - tão desejável - do Berlusconi (espero sinceramente estar com isto a dar ideias a algum grupo terrorista desempregado) que, ao desaparecerem, a vida dos respectivos povos melhora instantaneamente. O fanicamento do cheique Yazin adianta pouco porque há muitos e muitos cabrões do calibre dele entre a cabrãozada palestiniana. Mas, mesmo assim, satisfaz.
Mais importante, porém, é que não adianta grande coisa discutir o cheique Yazin em picadinho do ponto de vista político, até porque estou persuadido de que ele não foi morto por considerações políticas. Foi morto por duas razões, uma curta e uma comprida. A curta é que foi possível, ou seja, os israelitas andavam a ver quando é que podiam, ou seja, quando é que dava para lhe acertarem com 100% de certeza e sem magoarem muita gente em volta.
Naquele dia, àquela hora, um tipo qualquer disse ao Sharon que sim, o Sharon perguntou «Tem a certeza?», o outro confirmou aí umas três vezes e foi-lhe dado o «go ahead». Cheique Yazin em bocadinhos. Há muitos mais à espera do dia certo e da hora certa, sem que se interponham pelo caminho quaisquer considerações políticas, tréguas, tratados, promessas. Apenas: podemos ou não podemos?
Isto leva-nos à segunda ordem de razões, as compridas, incompreensíveis para todos os que pensam que o Estado de Israel é apenas um estado moderno como os outros - quando afinal é, até um certo ponto, um estado parecido com os inimigos que combate e que o combatem, um estado do século XXI, um estado da Paixão de Cristo de Mel Gibson. Israel mandou matar o cheique Yazin por vingança. E condenou à morte todos os palestinianos envolvidos em atentados contra cidadãos seus. Assassiná-los-á. Agora ou mais tarde, daí a cinco, dez ou vinte anos. A eles, ou aos filhos ou aos netos. O estado de Israel pode negociar com Arafat, com o Hamas, com as Brigadas de Al Aksa. Sharon ou os outros podem cumprimentar os seus dirigentes, dar-lhes palmadas nas costas, posar com eles para fotografias, e até respeitar tratados. Podem, em resumo, ocupar-se de política com eles à maneira moderna. Mas, uma vez fechadas as portas e desligadas as câmaras de televisão, mandará assassiná-los. É como a Mafia. Uma coisa são os negócios, outra é a vingança, aquilo a que a Mafia chama a honra, uma velha cultura mediterrânica, que afinal é semítica – e que provém, em última análise, do Deus de Israel, o Deus do Antigo Testamento.
Israel não perdoa a quem lhe assassina os filhos. E faz questão que isso fique clarinho. Não há considerações políticas de qualquer espécie que detenham o braço da sua vingança. Acho que esse filho da puta do Yazin sabia. Como sabe o Arafat e sabem os outros. Afinal, são do mesmo género e filhos do mesmo Deus.
Nós, modernos, civilizados e filhos do ar condicionado, é que não percebemos nada daquilo.
 

quinta-feira, março 25, 2004

A um biltre político
biltre, a. s. (do fr. bélitre). Deprec. Pessoa sem escrúpulos, vil. «Sou ainda bastante orgulhoso da minha idade, para que obtenha mulheres, mesmo bonitas como a sua, por processos que são próprios de biltres ou de velhos.» (A. Redol, Cavalo, p.276).
[Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, I vol., 2001, Lisboa: Verbo, p.531.]
 
As coisas podem sempre piorar
A propósito do assassinato do xeique paralítico, um longo post de Pedro Mexia. Fico banzado. Embrulha-se nas considerações sobre o que se deveria esperar do comportamento de um Estado democrático, como Israel; não distingue entre um líder ideológico e um dirigente operacional dos terroristas. Mas não é só isso. Tem sobretudo esta frase: «Não creio que se possa exactamente 'agravar' o que já era gravíssimo».
Acho difícil imaginar argumento mais irresponsável para a questão da Palestina. Nothing matters anymore para o Pedro, aparentemente. Mas não, tenho que lhe explicar uma coisa, a ele que gosta de se definir como pessimista: as coisas podem sempre piorar. Ariel Sharon está farto de saber isso.
 
A equipa estrangeira
Tenho pela lista do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu uma simpatia análoga à que me desperta o Arsenal, de Londres. O futebol inglês é, como toda a gente sabe, feio e tosco. Nada mais eficaz que contratar meia selecção de França para resolver o problema.
 

segunda-feira, março 22, 2004

Stripped of our bodies
The Honesty Virus
Clive Thompson
New York Times, 21.3.2004

Everyone tells a little white lie now and then. But a Cornell professor recently claimed to have established the truth of a curious proposition: We fib less frequently when we're online than when we're talking in person. Jeffrey Hancock asked 30 of his undergraduates to record all of their communications - and all of their lies - over the course of a week. When he tallied the results, he found that the students had mishandled the truth in about one-quarter of all face-to-face conversations, and in a whopping 37 percent of phone calls. But when they went into cyberspace, they turned into Boy Scouts: only 1 in 5 instant-messaging chats contained a lie, and barely 14 percent of e-mail messages were dishonest.
(…) Wasn't cyberspace supposed to be the scary zone where you couldn't trust anyone? (…) There's something about the Internet that encourages us to spill our guts, often in rather outrageous ways. Psychologists have noticed for years that going online seems to have a catalytic effect on people's personalities. The most quiet and reserved people may become deranged loudmouths when they sit behind the keyboard, staying up until dawn and conducting angry debates on discussion boards with total strangers. (...) Another researcher, an Open University U.K. psychologist named Adam Joinson, conducted an experiment in which his subjects chatted online and off. He found that when people communicated online, they were more likely to offer up personal details about themselves without any prompting. Joinson also notes that the Samaritans, a British crisis-line organization, has found that 50 percent of those who write in via e-mail express suicidal feelings, compared with only 20 percent of those who call in. This isn't because Net users are more suicidally depressed than people offline. It's just that they're more comfortable talking about it - ''disinhibited,'' as the mental-health profession would say.
Who knew? When the government created the Internet 30 years ago, it thought it was building a military tool. The Net was supposed to help the nation survive a nuclear attack. Instead, it has become a vast arena for collective therapy - for a mass outpouring of what we're thinking and feeling. I spend about an hour every day visiting blogs, those lippy Web sites where everyone wants to be a pundit and a memoirist. (Then I spend another hour writing my own blog and adding to the cacophony.) Stripped of our bodies, it seems, we become creatures of pure opinion.
Our impulse to confess via cyberspace inverts much of what we think about honesty. It used to be that if you wanted to know someone - to really know and trust them - you arranged a face-to-face meeting. Our culture still fetishizes physical contact, the shaking of hands, the lubricating chitchat. Executives and politicians spend hours flying across the country merely for a five-minute meeting, on the assumption that even a few seconds of face time can cut through the prevarications of letters and legal contracts. Remember when George W. Bush first met Vladimir Putin, gazed into his eyes and said he could trust him because he'd acquired «a sense of his soul»? So much for that. If Bush really wanted the straight goods, he should have met the guy in an AOL chat room. (...)
 

domingo, março 21, 2004

O meu candidato ao Parlamento Europeu

Antonio Tabucchi, na lista do BE
 

sábado, março 20, 2004

Saddam não volta
Considero, como já disse, uma grosseira chantagem o argumento da direita sobre as eleições em Espanha. Quem da evidência de que o voto dos espanhois foi influenciado pelo atentado de dia 11 - como poderia não o ser? - retira que a vitória do PSOE representa uma cedência aos terroristas não está a praticar senão a (reiterada) táctica de «connosco ou contra nós». Mas, seis dias depois das eleições em Espanha, as minhas maiores preocupações são exactamente estas.
Temos um ano difícil pela frente. A esquerda sabe que para inverter a estratégia errada que a administração americana tem seguido na luta contra o terrorismo tem que lhe fazer frente. Tem que fazer como diz o primeiro-ministro eleito de Espanha e condicionar a permanência das tropas no Iraque à supervisão das Nações Unidas. Tem que desejar ardentemente a derrota eleitoral de Bush. Mas não pode ter como objectivo político o abandono puro e simples do Iraque, que seria «uma tragédia em cima de outra tragédia».
Não é possível regressar ao statu quo ante no Iraque, repor Saddam no poder - embora, do ponto de vista da guerra contra o terrorismo da al-Qaeda, isso fosse desejável. O que ficará no Iraque depois da intervenção americana ou será um regime semi-democrático ou será, do ponto de vista da ordem internacional, uma situação muito mais perigosa do que o regime de Saddam. Não é errado culpar Bush por quatro anos de políticas desastrosas e por uma guerra que foi uma asneira. Mas é preciso perceber que, para o melhor ou para o pior, Saddam é que não volta.
 
Brasilifica
O meu bairro está a ficar brasileiro. Todos os dias me cruzo com eles na rua, ou a trabalhar nos restaurantes e cafés; várias vezes por dia lhes ouço o sotaque. Às vezes interajo, para partilhar as saudades de uma terra que supostamente não devia ser a minha.
Desejo um dia, espero que não muito distante, ter uma chinatown brasileira em Lisboa: um bairro onde possamos ir e a única língua que se fale seja o «brasileiro», onde as livrarias, os cafés, os jornais, sejam do Brasil. Seria uma espécie de arremedo de viagem, uma visita ao Brasil sem ter de passar doze horas no avião a atravessar o Atlântico.
A verdadeira e ambiciosa utopia seria mais que isso: quando de Portugal não houvesse mais que uma chinatown portuguesa em Lisboa, uma pequena aldeia gaulesa rodeada de outras coisas por todos os lados.
Há uma intensa nostalgia do Brasil na minha vida. Quero ir ao café e discutir com os amigos no quadro de outro universo mental. Talvez este Brasil seja imaginado, turístico, uma fantasia minha. Mas foi um brasileiro, Jorge Mautner, que formulou este imaginário da maneira exacta: «ou o mundo se brasilifica, ou vira nazista».
 
Com uma coroa toda à roda de espinhos

A Paixão de Cristo, de Mel Gibson

VIII

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

[trecho de Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos]
 
Quaresmas passadas
[email de Nuno Serra, a propósito de A Paixão de Cristo, de Mel Gibson]

Lembro-me de uma quaresma perdida algures no tempo. Decorria a semana santa e eram projectados numa tela colocada no altar principal da igreja, nos finais de tarde, episódios de uma série sobre a vida de Cristo que culminava com a paixão e ressurreição. Os momentos mais impressivos eram, naturalmente, aqueles que retratavam a via sacra, nomeadamente a flagelação e a crucificação. Conhecendo bem o argumento, lembro-me de sentir uma angústia crescente à medida que se aproximavam os episódios mais violentos, acompanhada do desejo de que estes passassem e dessem lugar àquela paz que a Páscoa instala, como se de um ansiado pós-guerra se tratasse. Recordo os soluços que se ouviam durante a exibição dos mistérios dolorosos, e que vinham sobretudo da parte de trás da igreja envolta na escuridão, dos lugares que as mulheres ocupam, algumas delas envoltas em xailes negros e a dedilhar terços durante a projecção.
No rosto dos mais novos espelhava-se um misto de angústia e medo silenciosos, que davam lugar a um crescente sentimento de culpa. Sim, era-nos explícita e implicitamente incutido que também nós tínhamos culpas naquele cartório, que aquele nazareno flagelado e crucificado tinha morrido por nossa culpa, para nos salvar, ainda que não lhe tivéssemos pedido fosse o que fosse. E era assim inevitável não sentirmos em cada flagelo, em cada espinho e em cada prego o gesto cruel da mão dos nossos pecados. Era, pois, a minha culpa que aquele homem também carregava, a culpa dos pecados que já tinha cometido e de todos os pecados que ainda iria cometer. A minha culpa, a nossa culpa, a culpa deles, a culpa de todos, mortos, vivos, nascidos e vindouros. Lembro-me, aliás, de um dia pensar que, assim sendo, talvez até pudessemos já pecar livremente, porque afinal de contas estava tudo pago por adiantado.
Demorei a perceber que a igreja necessita da culpa para formatar o seu sentido do mundo, como o diabo de almas para encher os infernos. Levei tempo a perceber que um deus que reconhecesse como tal, a existir, não era aquele. Precisei de tempo e, literalmente, de distância para me dar conta do absurdo que há em pensar num deus que sacia a sua vontade de justiça com o sofrimento, pago pela humanidade, e pelo seu filho na impossibilidade de ela o fazer. Percebi que o deus de que me falavam era basicamente um merceeiro sádico, incapaz de perdoar sem castigo, incapaz de compreender e aceitar as fragilidades da natureza humana sem a compensação e o deleite da satisfação que seguramente lhe proporcionaria o sofrimento físico e espiritual dos seres. Um deus assim, que gostava do sofrimento, foi-se tornando cada vez mais estranho, ausente, inconcebível e absurdo. E não estou a falar do deus do velho testamento, porque é esta a leitura e a doutrina que ainda hoje nos apresentam para a paixão e a ressurreição de Cristo. É isto a remissão dos pecados, é disto que se trata quando se fala em redenção.
A história de Cristo enquanto história de um homem que nos legou um código ético admirável e intemporal, independentemente da dimensão religiosa que o envolve, tornou-se a pouco e pouco a interpretação que me pareceu mais razoável para o entender na história do mundo e dos homens. Face ao contexto histórico, cultural e religioso, é a dimensão subversiva do seu discurso e da sua prática, e sobretudo o modo como afrontou leis e instituições, éticas e mundividências religiosas e políticas, que constitui a explicação da sua condenação à morte, sem que seja sequer necessário recorrer a desígnios divinos insondáveis. Aliás, o argumento da insondabilidade dos desígnios divinos sempre me soou a desculpa esfarrapada para a ausência de sentido das coisas. Cristo morreu condenado na cruz, tal como tantos do seu e de outros tempos, na mesma violência e crueldade, vítima dos mesmos sistemas de leis e punições que imolaram tantos outros.
O Cristo da Paixão de Mel Gibson recupera e cristaliza, de uma forma que impressiona - como talvez nenhum outro filme o tenha feito -, o deus da culpa e do sofrimento. E é, nesse sentido, um registo profundamente fanático e obsessivo, um desinteressante retrocesso face ao exercício subjectivo do Scorsese da Última Tentação. Do ponto de vista da narrativa evangélica, trata-se de um documento paradoxal, pois, sob a aparência de uma intenção esforçada de objectividade fidelíssima aos textos, esconde a subjectividade - que se torna assim desonesta - da intenção pastoral do realizador, que evangeliza a partir do exacerbar do sofrimento como instigação do sentimento de culpa. Por um lado, narra a paixão de uma forma que divide inequivocamente os personagens entre os genuinamente maus e os intrinsecamente bons (é difícil, por exemplo, imaginar aqueles soldados romanos como pessoas que têm família, filhos, uma réstea de afecto por qualquer coisa que seja). Por outro, reduz a complexidade da paixão de Cristo a uma carnificina levada aos limites possíveis da crueldade, em livre exercício de imaginação delirante, sedenta de acrescentar sempre mais horror e transmitir, até à exaustão das possibilidades, a percepção da dor, mesmo que ao arrepio dos textos evangélicos (não me recordo, por exemplo, de nenhuma referência ao virar da cruz ao contrário, ainda no solo, já com Cristo nela pregado). (...)
Repugnado, resisti contudo às várias tentações de abandonar o filme a meio. E saí no final com aquela sensação de «cordas no estômago» que conheço bem de quaresmas passadas. Mas desta vez não era a angústia inocente nem a culpabilização induzida que me invadiam. Era sobretudo uma espécie de revolta com um filme que professa e incentiva os tempos que correm, pelo fanatismo clarividente, pela ânsia de dividir entre bons e maus, convertidos e infiéis, iluminados e bestas satânicas. Pela descrença na humanidade, pelo regresso do deus implacável que pede ajustes de contas e castiga, pela recuperação do dogma da culpa. A culpa que é a raiz maior do obscurantismo e que concede apenas aos dela purificados, aos que não são por múltiplas razões infiéis ou tresmalhados, a piedosa dimensão de humanidade que os habilita a julgar, sobranceiramente, os outros. Repugnância por perceber claramente a intencionalidade da Paixão de Mel Gibson: instigar um profundo sentimento de culpabilidade como forma de evangelização, sentimento que se inscreve nas correntes ainda dominantes das concepções de deus, do mundo e da humanidade que a Igreja Católica ciosamente conserva.
 
A Paixão de Cristo
A minha ignorância em matéria bíblica é sólida, é enciclopédica - embora não, espero, espalhafatosa. Como filme, A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, pareceu-me deplorável, embora talvez não tanto quanto Braveheart (essa peça que se encheu de óscares incluindo a «melhor realização»). Não tenho qualquer relação pessoal com o cristianismo. Mas tenho uma relação pessoal com os flashbacks e com as câmaras lentas e com a forma como em certos planos os romanos são filmados a flagelar o Cristo, e ainda com um outro plano filmado do ponto de vista do Cristo que está no chão e por isso põe a câmara de pernas para o ar. A inteligência estética não é o forte de Gibson.
Do ponto de vista da substância, vejo o filme assim: um mundo de selvagens e bárbaros e primitivos, que acreditam em coisas incrivelmente estúpidas como diabos, por onde anda um desgraçado (nada no filme o faz sobressair: nem inteligência da mensagem, nem sensibilidade, nem rasgo pessoal) que julga que tem uma iluminação divina e é selvaticamente punido, como é natural num mundo de selvagens. Yes, I guess that sums it up.
Do ponto de vista formal, salvam-se para meu gosto duas ou três cenas especialmente violentas - o corvo que come os olhos de um dos crucificados - e, às vezes, a personagem de Maria.
Voltei do cinema e reli o Pedro Mexia, que, do que tem sido escrito, foi o texto que me pareceu mais interessante, mais honesto e inteligível. Mas gostei, naturalmente, em especial da seguinte passagem:

«a adesão emocional de um crente não se reporta directamente ao filme mas, em salto, aos próprios eventos e à sua fé. Para isso confesso que foi para mim importante a aposta (arriscada) do aramaico; não apenas, como disse, por causa da verosimilhança, mas também pelo próprio poder ritual de ouvir frases que aprendi de cor (de coração) na língua original, com a incompreensibilidade fascinante de uma língua do oriente. O que 'Jesus' diz em inglês nunca me tocou. O que este 'Jesus' diz em aramaico tem a ver, com muito mais força, com as palavras dos Evangelhos, e isso não me foi indiferente. Mas isso, repito, não é cinema.»
 

sexta-feira, março 19, 2004

Chantagem
(...) Então é assim: o governo de um país conduz a sua nação para a guerra baseando-se em pressupostos falsos; não protege a nação dos terroristas; e envolve-se numa operação de encobrimento da verdade quando um atentado terrorista ocorre. Mas se esse governo é derrotado nas urnas isso não é um exemplo da democracia a funcionar; é uma vitória dos terroristas.
Note-se, de passagem, que o primeiro-ministro eleito da Espanha insiste que quer combater o terrorismo. Ele até afirmou que as forças do seu país poderiam permanecer no Iraque desde que sob comando das Nações Unidas. Portanto, se a administração Bush estivesse realmente interessada em constituir uma frente comum contra o terrorismo, tudo o que tinha a fazer era abandonar esta abordagem «à minha maneira ou de maneira nenhuma». Mas não o fará.
Porque a denúncia da Espanha, embora contraproducente como orientação de política externa, serve um propósito interno crucial: ajuda a restabelecer o clima político que a administração Bush prefere, aquele em que quem se opõe às políticas da administração pode ser acusado de estar a minar a luta contra o terrorismo. (...)
Na perspectiva de Bush, é sempre ilegítimo pôr em causa qualquer aspecto da sua política em relação ao Iraque. Antes da guerra, era nosso dever patriótico confiar nas afirmações do presidente que justificavam a guerra. Depois de termos ido para lá e de essas asserções se terem revelado totalmente falsas, tornou-se dever patriótico apoiar as nossas tropas – uma expressão que, para a administração, equivale a apoiar o presidente. Em momento nenhum foi legítimo pedir contas a Bush. E é assim que ele quer que as coisas se mantenham.

[tradução minha, do artigo de Paul Krugman no New York Times de hoje]
 
Vinha vindimada
Ivan Nunes, Pedro Lomba e Pedro Mexia
Diário de Notícias, 19.3.2004

Baptista-Bastos (BB) escreveu sobre Nelson Rodrigues no Canal de Negócios (Cofina) de 12 de Março. As considerações políticas do artigo não nos interessam. Discutir a «nova direita» a propósito de Nelson Rodrigues não faz nenhum sentido. Os autores deste texto têm posições políticas em quase tudo divergentes e não fazem parte de nada de «novo». A «novidade» é uma superstição. Superstição a que BB não escapa quando recrimina alguns pela descoberta recente de um autor «antigo».
Sabemos que BB é um homem culto e ecuménico, que se tem gabado mesmo de possuir uma biblioteca da qual constam excelentes escritores «fascistas» (palavras suas). Muito nos admira, por isso, que tente confundir a esfera da política e da prosa jornalística. Nelson Rodrigues é um dos grandes prosadores da língua portuguesa e um cronista de eleição. Depois existem as suas ideias políticas, que serão sempre menos importantes que o estilo. Nem Éluard se atira fora por ter elogiado Estaline. Nem Céline por causa do anti-semitismo.
A opinião de BB sobre o estilo de Nelson Rodrigues é legítima. Menos legítima será a censura moral infundada. Fica mal a BB fazer um julgamento sumário de um homem e de um escritor que foi um moralista só no sentido mais nobre e mais atormentado da palavra. Um homem - como BB reconhece - de contradições e excessos, na obra como na vida. Basta pensar nas suas crónicas «reaccionárias» e no seu teatro «imoral».
BB sabe que Nelson Rodrigues foi um exemplo de desassombro e coragem, nos momentos felizes e nos outros. É por isso estranho que acerca de um escritor que nunca fugiu à solidão intelectual use palavras como «asqueroso» e «sordidez». Convém guardar essas palavras para os vivos. A relação de Nelson Rodrigues com a esquerda brasileira, na década de 1960, foi amarga. Mas resumi-la a um suposto entusiasmo por tiranos é elaborar uma caricatura difamante, mesmo porque Nelson se empenhou pessoalmente na libertação de vários intelectuais de esquerda.
Quase quarenta anos passados sobre essas polémicas, Nelson Rodrigues é hoje um autor muito lido e admirado no Brasil. A distinção entre esquerda e direita não constitui obstáculo a isso. Em Portugal conhece-se ainda pouco da literatura brasileira. Seria estranho e inconveniente que importássemos as polémicas de há quarenta anos antes de importarmos a escrita. À luz do que por cá se escreve, a condescendência com que BB trata as crónicas de Nelson Rodrigues só faz lembrar a parábola do cão e da vinha vindimada.
 

segunda-feira, março 15, 2004

O debate amargo
O PSOE ganhou em Espanha. Nesta altura, não sei se já há confirmação conclusiva de que o atentado da passada quinta-feira em Madrid foi perpetrado pela al-Qaeda. A vitória do PSOE é uma boa notícia. Mas o facto da semana e provavelmente do mês – e esperemos que do ano, porque seria sinal de não haver nenhum pior – é a al-Qaeda ter feito o seu primeiro atentado na Europa. Sobre o facto de o atentado ser infinitamente mais importante do que o resultado das eleições, não tenho dúvidas, como os espanhois não terão.
O debate dos próximos dias e das próximas semanas será, suspeito, amargo, muito amargo. Será tanto mais amargo quanto a direita pró-Bush, sentindo má-consciência, for incapaz de reconhecer duas coisas muito simples. A primeira é que o PP perdeu por ter mentido. O governo espanhol podia ter desde o início revelado a existência de uma pista que indicava a al-Qaeda, e o PP podia ter-se apresentado ao eleitorado como a face dura e intransigente perante o terrorismo; preferiu tentar esconder a pista. A segunda coisa simples é que os governos que, seguindo Bush, se apresentam como os da guerra contra o terror não têm virtualmente nenhum sucesso para apresentar ao longo do último ano. No seu lugar, têm uma sequência de fracassos e mentiras.
A crispação da direita, a sua incapacidade para reconhecer estes dois factos simples, tomará a forma de uma chantagem (nos Estados Unidos, poderá tomar as cores mais acentuadas de uma espécie de racismo anti-europeu). Dirão que a única forma de fazer frente à al-Qaeda é apoiar Bush e os governos que o seguem; e que desautorizar estes governos e a sua política é transigir, revelar medo perante os terroristas. Farão – os generais de secretária - digressões filosóficas sobre as sociedades ocidentais do conforto e a sua cobardia perante a guerra.
O facto não é só que a direita pró-Bush não tem o monopólio da posição anti-al-Qaeda; o facto é que o «presidente da guerra» e os seus seguidores não têm virtualmente nenhuns serviços a apresentar ao longo do último ano a favor da causa de que dizem ser os representantes. Há coisas para ler, para pensar - sobre como se pode mudar de política, de forma a não favorecer a disseminação mundial da al-Qaeda, a não propiciar a aliança (que se diz combater) de Estados e movimentos «desafectos» com os terroristas, a não comprometer princípios de Direito Humanitário básicos no caminho do combate ao terror, etc. Há o óbvio trabalho de tentar resolver uma das ameaças sempre presentes à segurança internacional que é o problema da Palestina. Mas para isso será necessário reconhecer que se errou e mudar de agulha.
O debate amargo não vai, obviamente, ajudar nada. Mas consola-me pensar que o isolamento e a amargura geralmente vão de par. Talvez a direita pró-Bush já tenha começado a perder.
 

domingo, março 14, 2004

Domingo
Comer sozinho em restaurantes nos dias em que nem os restaurantes estão abertos.
 
Menina sem Estrela
Aos 48 anos, casado e pai de dois filhos, Nelson Rodrigues apaixonou-se por Lúcia Cruz Lima, uma menina de vinte e cinco anos, «linda, loura, olhos verdes, ‘mignon’, 48 quilos, leve e delicada como Audrey Hepburn, (...) fina, esportiva» e casada.
Tanto Lúcia como Nelson abandonaram os respectivos casamentos, mas os pais de Lúcia – o pai era um dos médicos mais conceituados do Rio de Janeiro – opuseram-se terminantemente à relação entre eles. Só após o nascimento de Daniela, filha de ambos, mais de dois anos após o início do namoro, Nelson Rodrigues pôde partilhar a mesma casa com a sua segunda mulher. Daniela nasceu em 1963 e Nelson e Lúcia viveriam juntos até 1969.
Mas Daniela Rodrigues nasceu de parto prematuro, de seis meses; pesava 1,5kg.

«Tudo era prematuro em Daniela: baço, fígado, pulmões. Finalmente conseguiram fazê-la respirar, mas, pela manhã, ela voltou a estar clinicamente morta. Uma junta de médicos, entre os quais doutor Cruz Lima, conseguiu salvá-la. Na realidade, conseguiram que ela não morresse. Poucos dias depois, ainda na casa de saúde, Daniela sofreu uma espécie de icterícia e tiveram de trocar-lhe o sangue. (...)
Daniela passaria todo o seu primeiro ano de vida numa tenda de oxigênio, com horríveis crises respiratórias. Desde o primeiro momento apresentou má circulação nas pernas, o que lhe provocava câimbras lancinantes. Nelson e Lúcia ainda não sabiam, mas a menina atravessaria os seus primeiros anos praticamente sem dormir, chorando de forma enlouquecedora, com dores que poderiam ter todas as origens. Devido à paralisia cerebral, jamais iria andar ou articular um movimento. Também seria muda. E irreversivelmente cega.
(...) Durante anos, Nelson observou Lúcia, todas as noites, ajoelhada com Daniela dentro da tenda de oxigênio, massageando suas pernas sempre geladas pela má circulação. Algumas vezes o próprio Nelson a rendeu, ninando a levíssima Daniela pela noite inteira.»

[Ruy Castro, 1992, O Anjo Pornográfico - a vida de Nelson Rodrigues, São Paulo, Companhia das Letras, pp.334-336].

Nelson Rodrigues morreu em 1980. Hoje não sei, mas em 1992, quase aos 30 anos, Daniela permanecia viva.

Este post assim como está faz o sentido que faz. Isso não impede, por outro lado, que não haja certos temas que eu deseje relacionar com este, nos próximos dias. Entretanto, e apesar de não ter sido a pensar nisso que o escrevi, o que me ocorre agora é que, entre os 1400 feridos de Madrid, alguns passarão a ter uma existência semelhante à de Daniela.
 

sábado, março 13, 2004

Continuação de conversa sobre a fé religiosa
[email de resposta a um post que publiquei há já alguns meses]

As quatro questões que põe - «o que é essa coisa a que chamam Deus?» «O que esperam dela?» «Em que sentido é que acreditam numa alma imortal libertada do corpo?» «Acham que existe o inferno, e o que é?» - não são sobre catolicismo, são sobre fé. (...) As perguntas que faz podiam ser feitas a um Muçulmano, a um Judeu ou a qualquer uma das denominações cristãs que existem, para falar só nas três maiores religiões monoteístas. (...) Como sabe, a fé não se explica. O cristianismo defende que a fé é um dom de Deus - uma das coisas que, confesso, mais me custa a compreender.
Para mais, foi logo escolher as perguntas impossíveis. As perguntas que, sendo sobre o tema vasto e complexo que é «a religião», são sobre os aspectos mais pessoais desse tema. Pode perguntar a mil pessoas de todas as religiões para definir Deus e todas lhe darão uma resposta diferente, e nenhuma o deixará satisfeito, porque nenhuma é a sua. É como pedir a dez irmãos que definam o seu pai, da forma como puderem. O Pai é o mesmo, mas todos realçarão aspectos diferentes dele porque para cada um os aspectos mais importantes variam, e você, o 11º filho que se perdeu há muito tempo e não sabe quem é o pai, vai desconfiar da existência dele porque claramente o que estão ali representados são dez pais diferentes, pelo que a noção de pai deve partir da imaginação de cada um.
(...) Se eu lhe disser que Deus é Amor, para além de parecer um cliché, em nada nos ajuda, porque Deus não é o amor que nós sentimos uns pelos outros, não é o amor que sentimos pelas nossas mães nem o que elas sentem por nós. Não é o amor que alguns sentem pelas suas pátrias, as suas causas ou os seus clubes. É mais que tudo isso, é o sol do qual todos esses amores são reflexos mais ou menos brilhantes. Deus é Amor, mas é o Amor de Deus. (...)
Deus é uma montanha. É demasiadamente grande e complexa para ser compreendida. Vista de um lado pode parecer muito diferente do que se for vista do outro lado. Eu, católico, vejo de um lado e acredito que me foi dada a conhecer a forma mais segura e certa de a escalar; os meus amigos muçulmanos ou protestantes vêem a mesma montanha mesmo que de ângulos diferentes. A meu ver, os caminhos que eles seguem não os levarão tão seguramente ao cume.
Poderia agora dar-lhe uma explicação detalhada sobre o que eu vejo deste ângulo da montanha. Mas não serve de nada, porque você não acredita em montanhas e por isso para si tudo pareceria fútil e infantil.

O que espero eu de Deus? Isto é como perguntar «o que espera do Sol?» É como pegar num bébé recém nascido e perguntar à mãe o que é que ela espera dele. O que espero dEle quando? Agora? No meu dia a dia? Para o resto da minha vida? Depois da morte? Se eu lhe perguntasse «o que espera do Sporting», assim, só, sem especificar mais nada, perguntar-me-ia se me referia a um jogo, a uma prova específica em que estava envolvida a equipa, a uma década, a um novo século... Se estas dúvidas todas se podem pôr em relação a uma pergunta sobre o Sporting, então quanto mais sobre Deus - que, pelo contrário, é bom?
Não pode esperar respostas que o satisfaçam quando faz perguntas tão vagas como esta.
Da minha parte digo-lhe que, como em tudo, espero de Deus coisas diferentes em fases diferentes da minha vida. Neste momento estou numa fase de consolo, espero de Deus consolo e espero poder consolá-lo. De resto espero que Ele me dê o que mereço e para isso procuro merecê-lo, espero dEle o meu pão de cada dia, que não me deixe cair em tentação e que me livre do mal. Amen.

«Em que sentido é que acreditam numa alma imortal libertada do corpo?»
Esta pergunta é, ao contrário das outras, complexa demais para ser tratada assim, e por mim. (...) No entanto, posso dizer-lhe que acredito que temos uma alma, que quando morremos essa alma vai para junto do Pai, mas que de maneira nenhuma devemos depreender daí um conflito maniqueísta entre alma como bem vs corpo como mal. Aliás merece mais atenção do que recebe a ideia da resurreição dos mortos no fim dos tempos que a Igreja defende, que poucos exploram ou abordam hoje em dia, que é uma ideia estranha mas que ajuda a compreender que o corpo também é santo, tal como a alma, e não é apenas uma gaiola onde a alma está presa, como que a pagar por algum crime, até ao dia em que é liberta para voltar para o céu.
Mas veja o que diz o catecismo da Igreja Católica, que tem umas explicações interessantes sobre a Alma nas entradas 360 e seguintes.

Sobre o inferno, poderia remetê-lo para o catecismo também. Da minha parte digo-lhe que acredito no inferno, acredito em Satanás. Já ouvi dizer a alguns que o inferno não é mais que a eternidade na ausência de Deus, uma eternidade passada sabendo que Deus afinal existe e que não podemos estar perto dEle. É uma imagem bem mais atraente que muitas outras, mas no fundo, tal como as imagens que temos do Céu, não passa de uma construção de algo que não conhecemos. As imagens do inferno de antigamente, que hoje criticamos, estariam provavelmente tão longe da realidade como as que temos agora. Outros defendem que o inferno existe mas que só lá vai parar quem quer. É mais uma ideia que me agrada, mas não me agarro a ela.
Não sei como é o inferno, acredito que deve ser terrível e isso basta para mim; há muito tempo que parei de tentar imaginar como são o inferno e o céu, pouco me interessa. Seja como for, acredito. A Bíblia e toda a tradição cristã e católica falam do inferno. Só não temos é a certeza de que lá se encontre alguém. E, se sabemos de muita gente que lá devia ter ido parar, foi Cristo que nos disse que, embora seja mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus, para Deus nada é impossível. E isso, para mim, é a imagem mais reconfortante de todas.
 

sexta-feira, março 12, 2004

Não dizer nada
Cada vez que ETA asesina - y casi siempre lo hace de buena mañana, los terroristas madrugan, o quizá es que no duermen la noche previa -, existe la costumbre de que, hacia el mediodía, los responsables de los ayuntamientos de las ciudades salgan a la puerta de sus edificios, con calor, frío o lluvia, y guarden uno o dos minutos de silencio. A ellos se suman cuantos ciudadanos lo deseen, normalmente los que están cerca de allí. Es una cosa que impresiona mucho, ese silencio que es a la vez luto y repulsa, un silencio colectivo, de personas que interrumpen sus actividades o sus recorridos y se quedan quietas en mitad de la calle. Si alguien lanza un grito o una maldición contra los asesinos entonces, su voz suele ser acallada, porque en esos momentos la condena verdadera es no decir nada. Y, pese a la reiteración de esta costumbre a lo largo de demasiados años, el acto no ha perdido fuerza, ni se ha gastado, a diferencia de tantas otras reacciones que se han tornado huecas por culpa de las repeticiones.
A diferencia de los terroristas, yo me levanto tarde. Desde mis balcones se ve el Ayuntamiento de Madrid, en pleno centro de la ciudad. Si estoy escribiendo, más bien absorto, un repentino silencio me indica que se ha producido un atentado. ¿Quién habrá sido?, se pregunta uno. ¿Quién esta vez? ¿Un pobre concejal de pueblo, que compagina sus tareas municipales con su trabajo de carpintero o su tienda de golosinas? ¿Un periodista? ¿Un militar, un policía? ¿Un juez? ¿Alguien importante, un político? ¿Una señora con sus niños, que pasaban cerca de donde estalló la bomba? ¿Unos obreros? ¿Quizá bomberos, cuando ayudaban a otras víctimas anteriores y la segunda bomba retardada los pilló cuando las rescataban? (...)
Hoy he notado ese silencio sospechoso, desde mi casa. (...) «Otra vez», he pensado, ¿quién habrá sido?, sin imaginar que esa pregunta carecía hoy de sentido, porque de momento sólo hay muertos anónimos, y van ciento setenta y ocho cuando escribo estas líneas, y aún habrá más, aún no han acabado de morirse muchos de los asesinados, en tres o cuatro estaciones de ferrocarril madrileñas, trece bombas han estallado de buena mañana, cuando los trenes de cercanías van llenos de gente que va al trabajo, de estudiantes que van a sus clases, de personas con sueño, que acaban de levantarse.
(...) Hace unos años supimos, por confesión propia, que los miembros de un comando etarra que dispararon en la nuca a un concejal de Sevilla y a su mujer, que paseaba con él por la calle pero que ni siquiera tenía ningún cargo, celebraron aquella noche su hazaña con una gran cena, champagne incluido, e incluidas las risas. No hay por qué pensar que hoy no lo celebren igual, los autores de esta matanza y quienes les dieron las órdenes. Qué estupendo, y qué risa, mirad cómo llora la gente, cómo cae despedazada, cómo estallan sus cuerpos o quedan aprisionados en el amasijo de hierros, cómo salen despedidos, volando, mirad cómo arden vivos, y cómo siguen muriendo luego en los hospitales, uno tras otro. Iban al instituto, a la oficina, a la fábrica. Y miradlos ahora, qué gran risa.
Puede que un día ETA se disuelva. Es muy posible que entonces haya una amnistía que saque a la calle a todos sus presos, como la que ya hubo al comienzo de nuestra democracia, y a todos los que entonces había se les devolvió la libertad, incluidos los que habían cometido asesinatos. Si ese día llega, será de alegría, porque ETA habrá acabado, y estoy seguro de que los ciudadanos consentirán esa amnistía, la darán por buena, aunque sea con asco. Pero no en nuestro fuero interno, no en nuestra memoria ni en nuestra conciencia. Ahí, en el terreno no cívico ni político; ahí, en el terreno personal e íntimo, jamás la perdonaremos.

[Javier Marías, «De Buena Mañana», El Pais, 12.3.2004]
 


Sapatos Agnósticos
Eduardo Prado Coelho
Público, 28.2.2004

Pedro Mexia, com este título (Eliot e outras observações, Gótica, 2003), mostra-nos algo que o seu livro exuberantemente documenta: que a sua passagem para o «real» é sempre mediatizada pela leitura de outros poetas e entra portanto numa intertextualidade implícita ou explícita que, de certo modo, põe entre aspas a realidade e os sentimentos que ela suscita no sujeito. (...) Mas todo este gosto de citações, evocações ou alusões tem uma razão de ser: é um enquadramento protector em relação a algo que ganharia uma dimensão mais pungente caso nos fosse dado sem estas aspas protectoras, estes parênteses com que a literatura se protege da vida que a própria literatura revela.
(...) Mas o mais interessante neste título é o «outras»: Eliot e outras observações. O seu uso leva a pensar que Eliot é aqui uma «observação»: mas que é isso de um escritor ser uma «observação»?
(...) O livro de Pedro Mexia tem uma organização dos poemas muito clara e metódica: parte do café matinal numa pastelaria de bairro, passa pelas ruas de Lisboa, anda de metro, deambula por caminhos de casas arruinadas, regressa a casa. Nesta travessia, há muito de um andar indolente e aleatório, de um caminhar sem direcção (...). Mas há sobretudo uma emoção desvitalizada, uma sonolência brumosa. De certo modo, este é um dos livros mais tristes que se escreveram em Lisboa.
 

quinta-feira, março 11, 2004

Ver
Chegas ao fim do dia de repente descobres que hoje não viste ninguém. Ver teria feito alguma diferença?

Há frases que nem se pensam na primeira pessoa do singular.
 

quarta-feira, março 10, 2004

Lista Negra
Por José Vítor Malheiros
Público, 09 de Março de 2004

Existe uma hierarquia na nossa convicção pessoal da culpa que tem um paralelo nas diferentes figuras do processo de acusação judicial. Pode ser-se investigado, suspeito, arguido, acusado, pronunciado, julgado e condenado. Apesar de todos os cuidados da lei e da moral, que estabelecem a presunção de inocência como princípio básico até ao fim destes trâmites, é evidente que ninguém continua a ver como absolutamente inocente alguém que foi acusado de um crime. Um acusado vive já num limbo, entre a inocência e a culpa, onde talvez não seja ainda culpado mas onde já não é certamente inocente.
Podemos não condenar um acusado, mas relativamente a ele estabelece-se pelo menos uma suspensão da confiança. É preciso alguma disciplina profissional (como a que se exige de polícias, juristas e jornalistas) para tratar acusados de acordo com o princípio da presunção de inocência.
(...) Penso que podem existir três maneiras de construir as colecções de fotos usadas para identificação de suspeitos: 1) juntar a foto de um suspeito a outras obtidas de forma aleatória, 2) misturar a imagem de um suspeito com as de indivíduos de características físicas semelhantes (quando elas tenham sido previamente referidas num depoimento) ou 3) reunir aleatoriamente uma colecção de fotos de indivíduos pertencentes a um dado grupo (malabaristas, por exemplo) quando uma vítima afirma ter sido abusada por alguém que pode reconhecer e de quem sabe apenas ser malabarista de profissão.
Não parece provável que a famosa lista de fotos tenha sido organizada de nenhuma destas formas.
Há uma quarta hipótese, que é a de que a polícia tenha feito uma colecção de fotos com toda a gente que já foi objecto de rumores relacionados com a pedofilia (que é natural que apenas toque pessoas famosas), mas é menos surpreendente o contrário: que seja devido à sua presença na lista de fotos que certas pessoas são objecto de rumores.
O que nos devolve à pergunta que nos intriga a todos: por que raio é que as fotos mostradas foram estas e não outras? É que se estas não foram obtidas aleatoriamente, foram escolhidas e os cidadãos têm o direito de saber os critérios da escolha. Até porque, com intenção ou sem ela, a utilização destas fotos lança suspeitas sobre os incluídos, que o Ministério Público não pode ignorar. A lista coloca os fotografados numa antecâmara da acusação, num estado de «presumível suspeição» que afecta de forma inaceitável a sua imagem pública.
Tal como está, a colecção de fotos de notáveis é um índex, uma lista negra (...) Como ninguém quer dar a impressão de que resiste a ser investigado ou quer pressionar a justiça, ninguém reage à sua inclusão. E os que estão fora não querem dar a impressão de que receiam passar à categoria de «presumíveis suspeitos» e também não atacam o método. Não é por isso de estranhar que a generalidade dos políticos - como notou Mário Mesquita - se mostre refém deste instrumento e reaja com tibieza à notícia da sua inclusão. Mas o que exigimos dos eleitos é algo diferente: que combatam a difamação que a lista constitui, o medo que a lista (e a sua difusão) pretende espalhar e a descredibilização da investigação que ela é.
 

terça-feira, março 09, 2004

À atenção do Procurador Guerra
«Fui comido como um miúdo», diz Manuel Monteiro a propósito do que lhe fez Paulo Portas no processo das Presidenciais de 1996. (Se tivesse consciência de si, perceberia que continua a ser). Vale a pena ler a história toda.
 

segunda-feira, março 08, 2004

Pouco prático
Mandaram Jean-Bertrand Aristide para a República Centro-Africana porque enviar o Haiti para a África Ocidental era lógico, mas não era prático.
 
Nada é segredo
Preservar a nossa intimidade não é preservar meia-dúzia de factos que são secretos; é preservar o direito de tratar alguns como secretos.
Em si mesmo, nenhum facto é íntimo. E ainda assim a intimidade existe.
 
Mostrar
A tristeza é uma obscenidade. A obscenidade nunca está nas coisas mas na sua revelação.
 
Confecção
A questão não é se o casaco é bom; é se ele te serve.
 
(Nelson Rodrigues sem génio)
Gostar do fim-de-semana é desumano, como escrever holocausto com aspas.
 
Email sobre o panfleto
[A propósito da polémica sobre os panfletos distribuídos pelo movimento SOS Vida, recebi o seguinte email. Mais tarde eventualmente publicarei um ou outro comentário meu a este texto - que no essencial considero sensato e razoável - mas não já. Acho que às vezes convém ter tempo para ponderar os argumentos de um lado e do outro fora do registo ligeiramente histérico do «contraditório». Como o Economist permite que aconteça na sua secção de cartas.]

Penso que todos já sentimos, numa ou noutra altura, a frustração de andar a fazer um bom trabalho, com muito esforço, para depois aparecer alguém e estragar tudo com um gesto pouco pensado. Falo do panfleto que foi distribuído em escolas não sei onde, da autoria do movimento SOS Vida, a que se refere num post.

A fotografia do oriental com um feto no prato não é nova. Não a vi no panfleto, mas já a vi noutros sítios. A sua utilização num panfleto que se diz informativo é extremamente infeliz, não apenas por ser chocante, mas principalmente porque a fotografia não é verdadeira. Aliás, o feto não é verdadeiro. Essa fotografia foi feita para chocar, o feto é um modelo, e até chegou a sair uma notícia sobre isso na Time há uns anitos. Não é admissível que se coloque num folheto com objectivos sérios uma fotografia de que não se sabe a origem nem a veracidade. É, aliás, muito estúpido e não serve propósito nenhum. (...)

O SOS Vida apoia grávidas em dificuldades que precisem de aconselhamento ou ajuda material para levar as suas gravidezes até ao fim. Foi uma das primeiras associações a ser criada para esse efeito e já ajudou muitas mulheres que necessitaram e pediram ajuda. Criticar os seus panfletos, nomeadamente este e a tal fotografia em particular, não me parece só aceitável como necessário. Mas não deve põr em causa a ajuda que dá de facto a mulheres que solicitam e precisam. São coisas distintas. (...)

Eu não gosto de fotografias de fetos dilacerados, de imagens de embriões abortados. Não gosto de ver, nem gosto de mostrar a outros como propaganda. Não me passaria nunca pela cabeça mostrá-las a crianças de 6 anos. No entanto, existe a meu ver uma clara hipocrisia da parte de quem constantemente censura essas fotografias. Se o aborto apenas retira um incómodo «aglomerado de células», se o aborto é uma coisa tão importante que se chega a chamar-lhe um direito fundamental, então certamente não haverá qualquer problema em mostrar aquilo que se aborta.
Das duas uma, ou se está a causar a morte a um Ser Humano, ou não. Não me parece que haja muito espaço para meios termos. Respeito, discordando, de quem me diz que não. Mas se aquilo não é um Ser Humano (com direito a protecção) e podemos abortá-lo, se isso não causa mal nenhum, então quem me explica por que razão as fotografias são tão chocantes? É que se de facto estamos a falar de um aglomerado de células sem personalidade jurídica, então falamos de algo que tem o mesmo valor moral e jurídico que um dente, um rim ou um tumor. Alguém se queixa de fotografias de tumores retirados? Qual é a diferença?
Fotografias de cadáveres de Seres Humanos chacinados em campos de concentração da II GM, sim; fotografias de crianças amputadas e feridas na Palestina e no Iraque, sim; fotografias e imagens de aviões a rebentar com torres e a matar milhares de pessoas, sim; mas fotografias de aglomerados de células retirados de mulheres a seu pedido, invocando um «direito fundamental»... não. Mas o que é que se passa aqui?
Eu sei muito bem o que é que se passa. Mas é pena.

(...) Ironicamente noto que o argumento de que a vida começa noutro momento que não a concepção tem características quase religiosas, especialmente quando se afirma com tanta convicção que não será na concepção, mas também ninguém parece saber indicar quando é.
Eu admito que, por um acto de fé, queiram supor que a vida começa noutra altura - chama-se a acto de fé qualquer convicção que não tenha bases científicas. Agora, que queiram impor essas «verdades de fé» em leis, isso já é outra coisa.
Enfim, tudo isto para dizer que concordo e partilho a sua revolta pela difusão de um panfleto com desinformação. Mas recuso as ilações que daí retira e tenho dúvidas de que desse a mesma ênfase a notícias igualmente censuráveis vindas do outro campo. (...) Existem pessoas inteligentes e bem intencionadas de ambos os lados nesta contenda. Da mesma forma existem pessoas estúpidas e mal intencionadas também. Não julgue, nunca, por favor, que de um lado está a tolerância e o bem e que do outro está uma massa de gente ignorante com ideias antiquadas que quer oprimir as mulheres.
 

domingo, março 07, 2004

Revezavam-se
(...) sofria de dupla personalidade. Era graças a isso, aliás, que se mantinha casado. Quando uma das personalidades se cansava da esposa a outra substituía-a. Revezavam-se.

[José Eduardo Agualusa, hoje]
 

sábado, março 06, 2004

Old Friends

Ivan, o Terrível, e o seu filho Ivan, 16 de Novembro de 1581, de I. Repin (1885)

Desde pelo menos os meus 4 anos que me lembro de ouvir a gracinha: «Ivan? Mas não é o terrível, não?»
Ainda hoje a ouço. Dá-me vontade de dizer: «ah, ah! Essa foi boa!»
A primeira vez que ouvi a versão divertida - o teguível - foi em 1989. Já foi inventada por várias pessoas autonomamente, e ainda lhe acho graça.
Mas o meu nome não é assim tão incomum. Em Dezembro de 1999, por alturas da transição de Macau para a soberania chinesa, a Francisca Gorjão Henriques esteve lá durante algumas semanas, em reportagem para o Público. Um dia foi à escola portuguesa e entrevistou entre outros um rapaz de 17 anos.
- «Como é que te chamas?»
- «Ivan Nunes.»
- «A sério?! Tenho um amigo chamado Ivan Nunes!»
- «Ah. O da política.»
 
Mais uma associação de apoio a mulheres grávidas
Numa das imagens vê-se um feto colocado num prato e um homem aparentemente oriental, de talheres na mão, que se prepara para comer. Ao lado, um texto informa que se «matam dois bebés por segundo, mais que todas as guerras juntas e que no hospital de 'Taywan' até se compram bebés mortos a 50 - 70 dólares para churrasco!!!» Há testemunhos anónimos que descrevem o sofrimento, o desespero e até uma tentativa de suicídio de pessoas que abortaram ou o aconselharam.
Todas estas mensagens e imagens anti-aborto constam de um folheto informativo, concebido pela associação SOS Vida, a que a agência Lusa teve acesso. O Padre Jerónimo Gomes é um dos principais dinamizadores deste movimento cívico de apoio às mulheres grávidas e confirmou que tem facultado estes desdobráveis «a quem pede» e que terão chegado já a vários estabelecimentos de ensino. «Ainda há uns três ou quatro dias me pediram de uma escola de Águeda uma quantidade grande», confirmou ao Público.
(...) Acompanhado de imagens ultrassónicas de fetos no útero, o folheto, intitulado «Amor precisa-se» [bom título], cita ainda testemunhos de obstetras condenando a interrupção voluntária da gravidez e atestando «cientificamente que a vida humana começa no momento da concepção». E acrescenta-se: «As imagens permitem observar como a criança vai sendo torturada, desmembrada, desarticuldada, esmagada e destruída pelos insensíveis instrumentos de aço do abortista».
A SOS Vida manifesta-se mesmo contrária às situações de aborto permitidas pela actual legislação. «Em caso de violação ou perigo de saúde para a mãe, não se pode tentar resolver uma violência com outra não menos terrível», lê-se no folheto.
(...) O padre Jerónimo Gomes (...) assegura que a recepção a estes folhetos tem sido muito positiva. «Estas imagens não são chocantes. Tudo se pode dizer às crianças desde que seja científico e de maneira simples.»
 
Campanha eficaz
Se o Pina não cala a boca, ainda acabo a votar PS nas Europeias por causa do Sousa Franco.
 
O estereótipo diz que elas se preocupam
A explicação científica de por que é que nós lhes toleramos a elas coisas que não toleraríamos a um homem:

David Williams, a psychologist at the University of Westminster in London, (...) [has been] trying to figure out what influences the perception of pain. What he discovered was that both men and women were willing to take more pain from a woman than from a man.
«A person's perception of pain doesn't necessarily depend on the intensity of the stimulus,» Mr. Williams said in a telephone interview from his home in Stevenage, 30 miles north of London. It depends on environmental factors, like who is inflicting it. The 40 people who were tested waited longer to say «stop» when a woman was causing the pain than when a man was.
«The stereotype we have of women is that they are nurturing, caring, sensitive, that they have empathy,» said Mr. Williams, who administered the experiments for his doctoral dissertation. «We feel safer with them.»

[Para ler o resto da notícia, do New York Times, está aqui. Para o fazer, a inscrição é indispensável, mas gratuita.]
 

sexta-feira, março 05, 2004

A política como paixão
Os processos de elaboração de listas são os processos mais passionais que há na vida política.
[Francisco Assis, há bocadinho, a falar para as televisões]
 
Cursos de escrita
Tenho estado a frequentar o curso de dissuasão da escrita coordenado por Clara Ferreira Alves. Interessante e eficaz, é pena só recrutar alunos numa base voluntária.
 

quinta-feira, março 04, 2004

Ainda não há remédio
 

quarta-feira, março 03, 2004

Mesmo eu
Bom, se alguém tem paciência para ler coisas sobre mim - é verdade: é mesmo, literalmente e apenas sobre mim -, leia isto.

(A parte que lá se menciona sobre a Palestina era «a benefício da discussão»).
 
Moral, não penal
As propostas de, através de engenharias jurídicas diversas, descriminalizar sem despenalizar o aborto, que têm vindo a surgir nos últimos meses, são inúteis como solução mas interessantes como sintoma. Que são inúteis como solução é bastante óbvio: se é realmente chocante que haja pessoas policialmente investigadas, julgadas e eventualmente condenadas pela prática de aborto, por outro lado toda a gente sabe que a criminalização actualmente em vigor não produz quase nenhuns efeitos em termos de julgamentos e condenações. Por mais que o Ministério Público e a Polícia Judiciária se esforçassem, nunca levariam a tribunal mais do que uma em cada mil das mulheres que clandestinamente abortam. O problema essencial desta lei é que, ao tornar o aborto ilegal, clandestiniza-o; e o que a criminalização acrescenta à clandestinização, embora seja horrível, é, no plano prático, quase irrelevante.
Inúteis como solução, as propostas são no entanto interessantes como sintoma: denotam o progressivo esvaziamento moral dos que se opõem à despenalização. Confrontados com a iniquidade prática da lei que têm defendido, parecem simplesmente já não saber o que defender. De um ponto de vista teórico, é dificilmente concebível que alguém pense que a violação do direito fundamental à vida - são estes os termos em que a questão é por eles colocada - não deve ser castigada com pena de prisão mas deve, ao mesmo tempo, implicar todas as provações da clandestinização (humilhação, riscos para a saúde, extrema desigualdade social, etc.). E no entanto é exactamente esta salada jurídica e moral que alguns agora defendem.
Penso que sairão do beco moral em que estão metidos quando finalmente reconhecerem que o aborto, sendo um problema moral, não tem resolução possível no quadro da justiça penal. E tenho a sensação de que estas novas propostas, embora patetas, são um sinal de que caminhamos para esse dia.
 
Para que foi a conferência de imprensa?
Os textos de Paulo Portas sobre a despenalização do aborto, de 1982, divulgados agora pelo Barnabé dizem, a meu ver, muito sobre o carácter do moralista de plástico. Mas nem todos os moralistas são de plástico, e os velhos textos de Portas não revelam nada sobre o carácter de ninguém senão ele. Eles não falam pelo carácter da maioria das pessoas que de boa-fé se opõem à despenalização. Tudo o que dizem sobre a substância do assunto, a despenalização e os obstáculos que ela enfrenta, é apenas indirecto.
Parece-me, por isso, má ideia que o Bloco de Esquerda tenha, em véspera de debate sobre a matéria substancial, em que se enfrentam duas correntes de opinião visivelmente organizadas no país, convocado uma conferência de imprensa para fazer observações, ainda que pertinentes, sobre a manifesta insinceridade de Portas.
 

terça-feira, março 02, 2004

Tudo meu
Indico a fonte, mas não ponho aspas no início e no fim das transcrições que faço. A razão é óbvia. Tudo o que está no meu blog é meu.
 
Feira Popular, património universal
[Copiar]

(...) A minha ideia de adolescência (...) tinha forçosamente de estar acoplada a algo rasca e duvidoso, visto que foi o período mais lamentável que vivi. E a Feira Popular, que na imaginação de um teenager pode assumir proporções de divertimento acessível, rápido, adocicado, tem, para olhos mais ímpios, um travo ao que de mais rançoso e mal-amanhado tem a nossa amada pátria. Se tentar pensar na Feira de forma desapaixonada, vejo apenas um circo dos portugueses pimba, com muito lixo, magalas entesados, cheiro a farturas. (...) Uma «choldra» inócua, trivial, de fim-de-semana. O sonho do adolescente pobre de espírito, povoado de «máquinas» (como me lembro de querer ir «às máquinas») e de divertimentos que ignora serem tristes. Passeava espantado e mudo por aquelas ruas de restaurantes ruidosos e quase típicos, odoríferos, por aquela assombração de engenhocas, de fantasias, de creche à solta. O comboio-fantasma, que atravessei de pálpebras cerradas, julgando que o medo era aquilo. Os cavalinhos, que faziam os adolescentes zombar dos putos. Os tirinhos, que me denunciavam a inépcia. O poço da morte, com rapazes de calças coçadas. E mesmo os meus favoritos, os carrinhos de choque, com a sua adrenalina ligeira, o ímpeto confuso e quase agressivo, a incómoda sensação do riso canibal das raparigas.
Fui à Feira umas vezes, não sei quantas, não importa. Fui inconscientemente feliz e infeliz sem o ser realmente, apenas um miúdo de 15 anos num absurdo descampado animado no Campo Grande. Com as incipientes frustrações e ideias. Com os amigos com quem não me sentia bem. Com a inabilidade. E mesmo os pequenos prazeres eram um incómodo, como o algodão doce de que nunca gostei e que se tornava metáfora de qualquer coisa que não recordo. O medo persistente da montanha-russa, onde nunca cheguei a andar, espécie de cabo Bojador de tudo, do modo de vencer o medo. A montanha-russa aos pés da qual me viram, em contrapicado, numa das noites da minha penosa provação. Do meu fracasso. Misturada, porém, por entre brindes, com as noites deprimentes com colegas de liceu, já no vinho quando eu bebia coca-cola, com a nicotina e o sexo de uma classe média mais baixa do que a sociologia ordenava, geração de transição, nem carne nem peixe, ruidosa mas apagada, relativamente frustre e perdida e quase desbotada na minha memória talvez injusta.
E depois, deixei de ir à Feira. Acabada a adolescência, atravessada a noite. Ainda voltei, uma última vez. Quero crer que foi a última. Saído do exame final do curso, espécie de doutor em leis há dez minutos, com a gravata de banda e os códigos. (...) Fui com o meu melhor amigo, embora tivessemos deixado de ser amigos meses antes. Fomos, quase em silêncio, com alívio mais que alegria, e jogámos snooker. Jogámos mal. Um jogo lento, elegíaco, em que ambos nos despedíamos um do outro, disso de sermos novos, de tudo o mais. A bola branca melancolicamente fazendo a sua rotina. Um fim de manhã ou de tarde no meio desse aterro semi-habitado e lamentável, fora de moda, condenado. Regressámos ao carro tirando a gravata e a adolescência.
Agora, ao que parece, a Feira Popular vai para mais longe. Talvez para Monsanto. Ainda bem. Longe da vista. Longe do coração.

[Pedro Mexia, «Feira Popular, elegia», Grande Reportagem, 28.2.2004]
 

segunda-feira, março 01, 2004

Vaidade, denegação
Gostei muito dos dois posts que a Ana Sá Lopes escreveu a propósito de ter ido com o filho dela ver o Woody Allen. Aproveitei o pretexto para lhe mandar o que eu próprio escrevi sobre esse filme. Fiquei tão indisfarçadamente vaidoso com esse meu post que já usei outros fracos pretextos para o mandar a duas ou três pessoas. A ASL não foi de modas e pespegou com o meu texto no Glória Fácil.
Aconteceu-me, aí por finais de 1997 ou inícios de 1998, um episódio parecido. O Independente publicou uma notícia segundo a qual haveria conversas entre o PSR, a UDP e a Política XXI para virem a formar uma espécie de novo partido (aquele de que agora se comemoram cinco anos). A ilustrar a notícia, apareciam fotografias dos vários supostos «líderes» dessas «forças», incluindo eu - que já nem era dirigente nem tinha, nem queria ter, nada que ver com tais conversas.
Escrevi então uma carta ao jornal, expondo a minha indignação perante a conversão da minha cara em símbolo. O Independente publicou-a em estilo, acompanhada de uma foto minha do tamanho de meia página em formato broadsheet (o formato do Expresso, que O Independente por pouco tempo adoptou), com o singelo título «Ele não estava lá».

Pois não - tu não és nada vaidoso: tudo o que queres é que te deixem, e passar despercebido.
 
A expressão autêntica da vontade popular
Muito engraçados estes movimentos contra a despenalização do aborto: acham mal que se contem votos em referendo, mas discutem números de assinaturas em petições.
 
O único comentário que se me oferece fazer sobre os Óscares
Desde o Titanic que nenhum filme era tão premiado.

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