<$BlogRSDUrl$>


A Praia

«I try to be as progressive as I can possibly be, as long as I don't have to try too hard.» (Lou Reed)

teguivel@gmail.com

links | arquivo

 

domingo, novembro 30, 2003

A malta do meu liceu


Se não fosse por mais nada, Love Actually valeria a pena para ver Helder Costa no papel de um pai portuga encabeçando uma procissão de portugas por ruelas manhosas num blockbuster internacional.
Mas há ainda - é claro - Keira Knightley, e o melhor é nem lembrar que ela nasceu a 26 de Março de 1985, porque isso faz de mim e do Helder Costa praticamente colegas de liceu.
 
Dos blogs


Com um jornal cheio de novidades horríveis, encontrarmos as nossas personagens preferidas todas as manhãs durante alguns segundos, enquanto tomamos o café, é um pequeno ritual reconfortante. Tornam-se uma espécie de amigos. Preocupamo-nos quando estão em sarilhos e esperamos que sejam capazes de deitar sobre a vida um olhar ligeiramente divertido, que possa até talvez ajudar-nos a fazer o mesmo. Estão lá para nós sete dias por semana, ano após ano.

[Bill Watterson, Parabéns, Calvin & Hobbes, Lisboa: Gradiva, p.7].
 

sábado, novembro 29, 2003

Sobre o «cocktail» de Magalhães
Pedro Magalhães escreveu, que eu me lembre, pelo menos dois artigos brilhantes sobre a crise iraquiana no período em que os EUA e a GB se degladiavam com a França, a Alemanha, a Rússia e os inspectores das Nações Unidas (também escreveu um que me pareceu extraordinariamente infeliz sobre o «liberalismo» na América). Num deles desfazia impiedosamente, com base no muito que sabe de Ciência Política e processos de democratização, a expectativa de que no Iraque se pudesse criar uma democracia liberal à bomba. Não tenho o texto comigo, mas dizia qualquer coisa como: "pode haver muitas e boas razões para invadir o Iraque, mas a democratização não é uma delas". Noutro texto explicava que, quaisquer que fossem os resultados produzidos pelos inspectores das Nações Unidas, os EUA e a França não se poriam de acordo sobre o que fazer em face dessas conclusões: não haveria solução técnica para a controvérsia política. Mas é significativo que agora - e agora - Magalhães venha dizer que a invasão foi "um erro, fundamentado num logro («o perigo iminente») (...) de efeitos colaterais nocivos para a segurança internacional e com o qual nada se ganhou quanto ao seu suposto objectivo último: a «guerra contra o terror»". Em Fevereiro já era evidente que o perigo iminente constituído pelo Iraque era um logro, e que os partidários da guerra tinham manifesta falta de vontade em averiguar se esse perigo, ainda que não iminente, existia; e, portanto, o "suposto objectivo último", a "guerra contra o terror", era também evidentemente um logro, não o motivo real nem o ganho previsível da guerra que se anunciava. Magalhães escreveu brilhantes artigos na altura, dos quais estes factos, que agora reconhece como evidentes, estiveram conspicuamente ausentes. A preocupação obsessiva com a «imparcialidade» redundou - nesta como noutras vezes - não num excesso, mas num défice de sentido crítico.
Quando, em seguida, Magalhães se pergunta agora como foi possível que "a defesa da actuação da Administração americana tenha podido parecer tão eficaz, tão empenhada e tão intelectualmente robusta nos meses que precederam a guerra", parece-me, por isso, que está a falar para si mesmo. A defesa da actuação da Administração americana, pelo contrário, pareceu-me singular e surpreendentemente frágil: semana após semana esperei a smoking gun por que o Economist ansiava e que a administração americana e o governo de Tony Blair prometiam - na cândida expectativa de que ela pudesse aparecer. E, semana após semana, cada episódio no folhetim era mais lamentável, mais incredível, mais amador, mais à medida do que os opositores da guerra desejavam que fosse. Pedro Magalhães não ignora que vários destes momentos - o relatório de Tony Blair pescado na internet, a exposição de Colin Powell a 5 de Fevereiro perante o Conselho de Segurança - tiveram características de uma triste e pobre farsa.
Para a supresa mental que ele próprio convoca, Magalhães sugere uma resposta que me parece igualmente fantasiosa: "a defesa da invasão do Iraque baseou-se numa combinação nova e quase irresistível de realismo e idealismo, que deixou muitos dos seus opositores prostrados e sem alternativas credíveis". Faço um rápido percurso mental à procura na memória e na teoria do que estará Magalhães a falar; como não encontro, repito a operação, e repito e repito. Eis o que encontro: do realismo, um excelente artigo de John Mearsheimer e Stephen Walt defendendo que, mesmo que Saddam tivesse armas de destruição massiva (o que consideram improvável), a guerra contra o Iraque seria uma má solução. Pode-se, é certo, discordar da lógica de Mearsheimer e Walt - mas não, parece-me, com argumentos realistas (estamos a falar de «realismo» no sentido de realpolitik). Da parte do idealismo, lembro-me do artigo do próprio Magalhães - "Fé Democrática" - que explicava sucinta e convincentemente que tudo não passava de uma frágil fantasia. De modo que "a combinação nova e quase irresistível de realismo e idealismo" apresentada pela administração americana, que deixou os seus opositores "prostrados", parece-me o género de argumentário capaz de prostrar intelectualmente um José Manuel Fernandes, mas não um Pedro Magalhães, nem qualquer pessoa sensata. Quanto a cabeças como a de José Manuel Fernandes, aplique-se a receita que o próprio Magalhães propõe no texto desta semana: "em relação a esses, por muito que nos custe, talvez seja melhor desistir. Há limites para aquilo que ainda se pode discutir racionalmente".
Dizer, por fim, que ao "novo «cocktail» de realismo e idealismo, os opositores da guerra responderam quer com excessivo lirismo (a luta contra o «imperialismo americano» ou contra a «globalização») quer com uma igualmente inadequada defesa do «statu quo» nas relações de poder e das instituições internacionais" parece-me uma caricatura que não faz justiça à persistente seriedade com que Magalhães trata os argumentos do campo contrário. Sobre este assunto, Pedro Oliveira - no Barnabé e, felizmente, também na secção de cartas do Público - responde-lhe de forma que me parece inteiramente convincente. Pela minha parte, satisfaço-me até com menos: o realismo de Waltz, Mearsheimer e Walt, acrescido do «idealismo» de um plano de paz para a Palestina parece-me um «cocktail» infinitamente mais sério e promissor do que a péssima receita de Bush. Sobre as razões por que, apesar de ser um caminho curto para o desastre, a administração Bush resolveu prosseguir com esta guerra, parece-me muito convincente o texto de Anatol Lieven que Pedro Magalhães certamente não ignora.
Magalhães termina com uma exortação a que os opositores da guerra desenvolvam "uma agenda própria" e façam o "trabalho de casa" que dá o título ao artigo. A mim parece-me muito bem - sobretudo porque, o que nem sempre acontece, a exortação ao trabalho intelectual vem de uma pessoa que notoriamente faz o dele. Mas não se se tentar atribuir à suposta falta de agenda alguma responsabilidade pela situação que neste momento está criada no Iraque, no Médio Oriente e no mundo.
Termino o post com a sensação de que me distanciei tanto de vários dos argumentos de Magalhães que os elogios que fizer a este mesmo texto podem parecer hipócritas. Mas não são. O texto é muito inteligente e informado - e já nem lhe faço a desonra de o comparar com a esmagadora maioria dos textos, desonestos, desinformados ou simplesmente primários, que se publicam por aí. Magalhães está a três galáxias de distância do resto. Penso apenas, como penso há mais de dez anos, que a sua obsessiva preocupação em ser imparcial o leva a aceitar de forma muito mais acrítica argumentos de um lado do que doutro. Não há, no entanto, na imprensa portuguesa outro colunista que ajude tanto a pensar.
 

sexta-feira, novembro 28, 2003

Começo de conversa sobre o catolicismo
Penso que tenho com os católicos e o catolicismo o menos possível em comum. Tive, é certo, em miúdo uma grande vontade de que Deus existisse, que me levou a querer ser baptizado, e cheguei a aprender três ou quatro lenga-lengas básicas a que se chamam rezas. Mas o padre da aldeia disse que antes dos 14 anos só poderia baptizar-me se os meus pais dissessem que queriam que eu fosse baptizado - e os meus pais disseram que me autorizavam mas não declaravam que queriam (já na altura não perdoei a distinção hipócrita). Não fui baptizado aos nove, e aos catorze já não fazia sentido. Não tinha perdido o medo da morte, mas isso aos 14 anos já não chega para acreditar em Deus. Isso nem é bem Deus: isso é o Pai Natal.
Embora não tenha sequer simpatia por aquilo que identifico com os católicos - fui formado e abracei apaixonadamente concepções de vida materialistas, individualistas, anti-místicas, e tenho horror à retórica piedosa -, o facto de praticamente não conhecer católicos tem vindo a criar em mim, ao longo dos anos, muita curiosidade. Não pelos católicos triviais, claro, os católicos por default, os do hábito, comodidade ou conservadorismo, mas os que são católicos porque pensam nisso. Mas não só estes indivíduos são muito difíceis de encontrar nos meios por onde circulo como, quando se encontram, revelam uma resistência quase patológica a falar sobre a sua fé aos que, como eu, não são convertidos. O que é essa coisa a que chamam Deus? O que esperam dela? Em que sentido é que acreditam numa alma imortal libertada do corpo? Acham que existe o inferno, e o que é? O respeito sagrado que supostamente temos de ter pelas convicções religiosas das pessoas tende a tornar-se numa proibição de fazer qualquer pergunta.
As minhas perguntas são muito simples, as minhas perguntas são quase infantis. Às minhas perguntas simples os quatro ou cinco católicos que conheço não querem responder. Os outros, os que poderiam querer responder, não dizem duas frases direitas sobre o assunto e regridem rapidamente para um pensamento fantasioso que faria mais sentido em crianças de quatro anos de idade.
Encontrei por acaso aqui um blog que é justamente sobre a experiência do catolicismo, a reflexão sobre isso, numa linguagem que me interessa [especialmente, 3/11]. Talvez pelo blog se possa ouvir o que nas conversas não se consegue dizer.
Chamo a este post «começo de conversa» porque gostaria de voltar ao assunto.



(Será que o Manuel do Palombella Rossa viu um filme de Nanni Moretti chamado O Fim da Missa (1985)? Passou na RTP há muitos anos e eu tive-o em video, mas emprestei a cassette e extraviou-se. Gostaria muito de revê-lo - embora eu suponha que Moretti terá pessoalmente mais que ver com os valores em que me formei que com o catolicismo.)
 
A direita séria
Na semana passada, comprei O Independente pela primeira vez em muitos anos. Esta semana, comprei O Independente pela última vez em muitos anos. No seu artigo, João Marques de Almeida acusa a esquerda (não diz qual) de ter um problema de antisemitismo, outro de antiamericanismo e um outro de solidariedade com os terroristas. Não cita um único exemplo para amostra, a não ser o Barnabé, por o Barnabé ter rejeitado as duas primeiras destas três acusações (na lógica de «se dizem que eles não são é porque reconhecem que há outros entre eles que são»). Num artigo mais inofensivo, João Pereira Coutinho acusa extensamente Eduardo Prado Coelho de ser contra os blogues por querer ser um intelectual sem concorrência.
A direita «inteligente» - está muito bem. E séria? Não fará mais falta a direita séria?
 
Delírio marialvista
Ó João! Ó João! Anda cá ver o que perdes por eu não ser arguido!
 

quinta-feira, novembro 27, 2003

Massacre turco


Quando era puto, uma coisa como a que se passou hoje era o fim do mundo. Para um miúdo não é óbvio que jogadores e treinador medíocres não podem fazer muito; com aquelas camisolas, eles são por definição uns heróis. Há-de haver muitos putos como eu hoje à noite, a chorarem até adormecer com uma decepção infinita.
Diz o Marías que o futebol é «a recuperação semanal da infância». Hoje em alvalade foi a recuperação da minha infância de sportinguista - tal como ela realmente se passou.
 
Bourdieu


A «direita inteligente» tem com Eduardo Prado Coelho uma coisa em comum: o ódio a Pierre Bourdieu (1930-2002). Com a diferença de que EPC não se engana a escrever o nome de Bourdieu, como a «direita inteligente» sempre faz. Eu não gosto nada de fazer acusações no vazio, mas suponho que a razão por que os detractores - e também alguns entusiastas - de Bourdieu não acertam com o nome é muito simples: não o leram. «Bordieu» é igual a «sociologia» que é mais ou menos igual a «Boaventura» que é mais ou menos igual a esquerdalha antiquada e pateta. Mas olhem: não é bem assim. Eu tenho as minhas reservas quanto a alguma retórica dos textos de Boaventura Sousa Santos, como tenho talvez ainda mais à retórica de Bourdieu, que a princípio é impenetrável - embora depois de algum esforço se torne compreensível. E sou também frequentemente céptico em relação às posições que eles representam enquanto intelectuais com causas públicas. Daí até desacreditar inteiramente a obra académica dos dois - que têm ambos textos muitíssimo interessantes e, no caso português, de qualidade que não é comum por cá - vai um grande salto.
Claro, quem nunca se dá ao trabalho de ler essas coisas fá-lo por sua conta e risco, o problema é de cada um. Eu também não sou um padre para andar a perguntar aos meninos: - e isto, já leram? Pois se há tanta, tanta, tanta coisa que eu nunca li - que o melhor é nem puxar o assunto.
Assim sendo, só peço uma coisa: atinem lá com a grafia do nome. «Bordieu» vai a meio caminho de bordel piroso e soa muito mal.
 

terça-feira, novembro 25, 2003

Credo!
[Do Público]
Inês Ferreira, que passou metade dos seus 20 anos de vida a ouvir o autor de «Thriller», não acredita nas acusações. «O Michael [Jackson] transmite uma mensagem importante: podemos tornar o mundo melhor. Essa ideia de que todos podemos fazer alguma coisa para melhorar influenciou a minha vida». Inês, camisola Sisley e calças descaídas, no 4º ano da universidade, diz que a identificação com «a mensagem» do cantor é tão profunda que até poderá ter influenciado o curso que escolheu, o de Relações Internacionais.
 

segunda-feira, novembro 24, 2003

À Direita Inteligente
Somos todos ou anti-comunistas ou anti-fascistas. Estas coisas até já nem querem
dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá. As palavras são só bolinhas de sabão: «parole, parole, parole»...

[José Mário Branco, "FMI"]

(Ao João Marques de Almeida, que n'O Independente desta semana diz que a direita «sub-40» também "cresceu a ouvir Rolling Stones, Doors, Lou Reed, Bruce Springsteen ou U2";
a Paulo Portas, líder do CDS, partido a cujo Conselho Económico e Social João Marques de Almeida pertence, por convite pessoal de Portas;
a George Bush, chefe do governo actualmente existente no qual a «direita inteligente» portuguesa mais se revê).

I was getting so sick of this rightwing Republican shit
These ugly old men scared of young tit and dick
So I tried to think of something that made me sick
And there it was: - Sex with your parents

Now these old fucks can steal all they want
And they can go and pass laws saying
you can't say what you want
And you can't look at this
And you can't look at that
And you can't smoke this
And you can't snort that
And me, baby, I got statistics, I got stats
These people have been to bed with their parents

Now I know you're shocked
but hang and have a brew
If you think about it for a minute
you know that it's true
They're ashamed and repelled
they don't know what to do
They've had sex with their parents
When they looked into their lovers' eyes they saw Mom
In the name of family values we must ask: - whose family?
In the name of family values we must ask:

Senator - It's been reported that you have had
illegal congress with your mother
Sex with your parents
Ah, Senator:
An illegal congress by proxy is a pigeon by any other name
Sex with your parents

Senators, you polish a turd
Here in the big city we got a word
For those who would bed their beloved big bird
And make a mockery of our freedoms
Ah, without even using a condom
Without even saying, "No"
By God we have a name for people like that
It's, hey, motherfucker

[Lou Reed, "Sex With Your Parents", do álbum Set the Twilight Reeling, 1996]
 

domingo, novembro 23, 2003

Em vez da hipocrisia, por que não a hipocrisia?
Para a Ana Sá Lopes, a descriminalização do aborto tem a mesma importância e a mesma urgência que tem para mim: máxima. Por isso, deu-se ao trabalho de reproduzir o artigo de Vasco Rato que n'O Independente desta semana defende a descriminalização. O seu apoio a esta causa é bom porque todos os apoios são bons, venham lá de onde vierem; no entanto, o último parágrafo do artigo de Rato merece um comentário. Diz assim:

"Em Portugal, devemos descriminalizar o aborto, mas não devemos ignorar que muitos portugueses se opõem a essa medida. De facto, julgo que seria uma afronta a estes cidadãos se o aborto fosse pago pelos seus impostos. A solução política é, portanto, permitir o funcionamento de clínicas privadas, mas o custo do aborto seria sempre suportado por quem opta por esse caminho. Tal como o Estado não deve criminalizar uma decisão individual, não há razão para que o Estado pague as despesas dessa decisão através do Serviço Nacional de Saúde. Numa sociedade pluralista, julgo que esta solução é a única que poderá respeitar as sensibilidades de todos os cidadãos. Não terá a «coerência» dos absolutistas, mas poderá humanizar uma lei hipócrita que é sistematicamente violada com toda a impunidade."

O aborto é um acto que só pode ser praticado em condições de higiene e segurança por pessoal especializado (médicos, enfermeiros) em locais próprios, que serão hospitais ou centros de saúde. Das duas, uma: ou Rato acha que o aborto não é um acto reservado a pessoal médico; ou acha que a saúde das pessoas, mesmo das mais pobres, não deve ser «subsidiada» pelo Estado - que, por não «subisidiar», se torna «neutro» perante as «escolhas» dos cidadãos. Acho esta solução de compromisso interessante, porque partilha com a lei actual o seu principal pressuposto: assenta de igual forma na hipocrisia. Faltam-me palavras para caracterizar a agudeza deste raciocínio político. Direi só o seguinte: se o liberalismo é isto, provoca-me a mesma reacção que qualquer outra filosofia política primária. Oscilo entre o bocejo e a indignação.
 
Ideias viris


Everyone says I love you - que o génio criativo do tradutor português conseguiu transformar em Toda a gente diz que te amo - é um dos meus filmes preferidos de Woody Allen dos últimos anos: é uma comédia e um musical, é muito divertido, é muito irónico sobre o amor e cheio de ternura. Tem várias coisas em que vale a pena reparar, desde Woody Allen cantando afinado mesmo sem voz até Natalie Portman. Mas um dos personagens particularmente divertidos é o de Lukas Haas, aqui fazendo de Scott, um rapaz que, para desgosto dos pais, liberais de esquerda, se converteu num republicano conservador, que lê a National Review e anda pela casa bramando contra o welfare e a favor da religião nas escolas, do direito ao porte de arma, da América e do imposto de taxa única.
«Ideas! Viril, modern ideas! A strong America! The right to bear arms!»
Ao que parece, todos os musicais acabam bem excepto Dancer in the Dark, de modo que por fim vem a descobrir-se que Scott tinha um pequeno problema de saúde que lhe prejudicava a oxigenação do cérebro e que era afinal a causa de tanto fervor reaccionário. Removido o problema, removida a tolice.

O Pedro Lomba é bom rapaz. Um dia descobriremos que tudo não passa de uma pequena partida da mãe-natureza.
 
Leituras que ficam II
Um Dia em Santa Maria
Por José Vítor Malheiros
Público, 11 de Novembro de 2003

São 11h45 quando entro na Urgência do Hospital de Santa Maria, a acompanhar um familiar que sofreu uma queda. Mandam-nos para uma sala de espera e dizem-me que temos de esperar que nos chamem para ir à triagem. Um quadro branco afixado na parede tem escrito em cima "Tempo de espera". Na coluna da esquerda tem escritos os códigos que representam a gravidade de cada doente ou acidentado: "Vermelho", "Laranja", "Amarelo", "Verde", "Azul". À frente de cada cor, na coluna seguinte, está assinalado o tempo médio de espera. À frente de "Verde" está escrito "35 minutos", todas as outras cores têm um traço à frente. Pergunto o que significa o traço. Quer dizer que não há tempo de espera? Que não se sabe? Dizem-me que quer dizer que não há qualquer espera. Mas a sala de espera está cheia! A empregada no balcão de informações encolhe os ombros e volta-se para um recém-chegado.
As pessoas na sala de espera começam a desfiar as suas queixas para o ar. Uma delas espera há uma hora, outra quase há três. Volto ao balcão de informações e pergunto como se explica a diferença entre o quadro e a realidade. A funcionária finge que não me ouve mas um segurança explica-me que o tempo marcado na tabela é o tempo que leva um doente da triagem até ser visto pelo médico. O tempo que se espera até à triagem não é contabilizado. É excelente para as estatísticas! Tão bom como a maneira de contabilizar as listas de espera de cirurgia - só se contam os casos que se quer, da maneira que se quer, até se chegar a um número confortável.
Às 12h50 um enfermeiro vem actualizar o quadro. Apaga os 35 minutos que estavam na mesma linha que "Verde" e escreve um traço. Digo-lhe que estou à espera há uma hora e cinco minutos e que o seu quadro é uma fraude. Responde-me a mesma coisa que o segurança: o quadro mede o tempo desde a triagem até ao médico. Repito-lhe que o quadro induz os utentes em erro e que não passa de uma fraude. Responde-me que é enfermeiro, que não lhe compete ouvir a minha reclamação, que posso falar às funcionárias no balcão de atendimento.
Às 13h20 chamam o nome do meu familiar. Entramos na triagem. Um interrogatório sumário, uma medida de tensão, nenhuma observação. Regresso à sala de espera. Chamam-nos de novo passados quatro minutos. Uma hora e 40 minutos depois de ter visto escrito preto no branco que na Urgência de Santa Maria ninguém espera sequer um minuto para ser atendido, vemos à nossa frente o primeiro médico.
Interrogatório, exame, a papeleta começa a encher-se de pedidos de exames, de análises, de notas. Do médico passamos para uma sala de tratamentos. Às 14h00 o meu familiar é enviado para o Serviço de Observação, onde já não o posso acompanhar. Dizem-me para esperar no corredor, pois um médico virá falar comigo, para me pedir pormenores da história clínica. Espero meia hora, uma hora, duas horas. Ando de um lado para o outro frente ao guichet da enfermeira para que veja que estou por ali, de vez em quando pergunto quando poderei falar ao médico, peço informações. A dada altura a enfermeira, sempre delicada, explica-me que é mais urgente tratar os doentes que falar aos familiares. Claro que concordo, mas os dados da história clínica não serão necessários?
Às 17h30 vejo passar, numa maca, a pessoa que acompanho. Dizem-me que vai fazer uma ecografia e uma TAC. Posso acompanhá-la se quiser. Deixam-nos na sala de espera da Imagiologia. Um pouco depois das 19h00 faz a ecografia. Às 19h13 vai fazer a TAC.
Estamos no hospital há sete horas e meia mas a tabela afixada na urgência diz que o nosso tempo de espera é zero minutos. Nunca saberei quanto tempo demoraria todo o processo até ao diagnóstico porque a minha mãe morreu na mesa da TAC durante o exame.
 

sábado, novembro 22, 2003

Leituras que ficam
O Problema de Credibilidade dos Estados Unidos
Por Zbigniew Brzezinski (Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente norte-americano James Carter, 1976-1980)
Público, 11 de Novembro de 2003



Há quarenta anos, um emissário importante foi enviado a França por um Presidente dos Estados Unidos em apuros. Foi durante a crise dos mísseis de Cuba, e o emissário era um determinado ex-secretário de Estado, Dean Acheson. A missão dele era dar informações ao Presidente francês, Charles de Gaulle, e pedir-lhe apoio no que podia tornar-se uma guerra nuclear envolvendo não apenas os Estados Unidos e a União Soviética mas toda a NATO e o Pacto de Varsóvia.
No fim do encontro, Acheson disse a de Gaulle: "Gostaria agora de mostrar-lhe as provas, as fotografias que temos de mísseis soviéticos equipados com armas nucleares". O Presidente francês respondeu: "Não desejo ver as fotografias. A palavra do Presidente dos Estados Unidos chega-me. Diga-lhe por favor que a França está ao lado da América".
Será que algum líder mundial reagiria hoje da mesma maneira a um emissário norte-americano enviado ao estrangeiro para dizer que o país X está armado com armas de destruição maciça que ameaçam os Estados Unidos? É improvável. A conduta recente da política externa americana, ao distorcer as ameaças que a América enfrenta, isolou os Estados Unidos e prejudicou a sua credibilidade. Causou danos na nossa capacidade para lidar com questões na Coreia do Norte, no Irão, na Rússia e na Cisjordânia. Se for preciso argumentar pela necessidade de acção contra uma ameaça de facto iminente, que nação nos levará a sério?
Há 53 anos, depois do ataque da Coreia do Norte à Coreia do Sul patrocinado pela União Soviética, Moscovo boicotou uma resolução do Conselho de Segurança da ONU para uma resposta colectiva à acção norte-coreana. Isso deixou a União Soviética sozinha, colocando-a na condição de pária internacional.
Hoje são os Estados Unidos que se encontram sozinhos. Nas últimas três semanas houve duas votações sobre o Médio Oriente na Assembleia-geral da ONU. Numa delas, a votação foi de 133 contra 4 e na outra de 144-4 - Estados Unidos, Israel, Ilhas Marshall e Micronésia. O Japão e todos os nossos aliados da NATO, incluindo a Grã-Bretanha e a chamada "nova" Europa, votaram com a maioria.
A perda da credibilidade internacional dos EUA e o seu isolamento crescente são aspectos de um paradoxo perturbante: o poder americano em todo o mundo está no seu auge histórico, mas a percepção política global dos EUA encontra-se no seu ponto mais baixo.
Desde a tragédia do 11 de Setembro, o nosso governo assumiu um ponto de vista paranóico do mundo, resumido numa frase que o Presidente Bush usou em 20 de Setembro de 2001: "Ou estão connosco ou estão com os terroristas". Suspeito que os responsáveis que adoptaram a formulação "connosco ou contra nós" não sabem as suas origens históricas. Foi usada por Lenine para atacar os social-democratas como anti-bolcheviques e para justificar o tratamento conforme que lhes foi aplicado. Esta frase faz parte do objectivo traçado pelos nossos estrategos políticos, resumido pelas palavras "guerra ao terrorismo". A guerra ao terrorismo reflecte, do meu ponto de vista, uma visão razoavelmente tacanha e extremista de política externa para uma superpotência e para uma democracia com tradições genuinamente idealistas.
O nosso país sofre de outra condição perturbante, um medo que periodicamente se aproxima do pânico cego. Em consequência, falta-nos uma percepção clara de questões críticas de segurança, como a disponibilidade de armas de destruição maciça que os nossos inimigos realmente têm. Nos últimos meses, tivemos talvez o mais significativo falhanço em termos de informações recolhidas pela espionagem na história dos EUA. Esse falhanço foi alimentado por uma demagogia que dá ênfase aos cenários mais negros, que estimula o medo e que induz uma visão da realidade mundial a preto e branco.
É importante que nos interroguemos, como cidadãos, se uma potência mundial é capaz de exercer uma liderança global na base do medo e da ansiedade. Seremos realmente capazes de mobilizar apoio, mesmo de amigos, quando lhes dizemos que se não estão connosco estão contra nós?
Isto exige um debate sério sobre o papel da América no mundo, que não é servido por uma definição abstracta, quase teológica, da guerra ao terrorismo.
Devemos ser bem sucedidos no Iraque. Falhar não é uma opção. Mas temos de perguntar a nós próprios qual é a definição de sucesso. Mais mortes, mais repressão, mais acções eficazes de contra-insurgência? A utilização de novas tecnologias para esmagar a resistência? Ou o sucesso é um esforço para promover, usando a força, uma solução política?
Se vai haver uma solução política para o Iraque, têm de ser preenchidos tão depressa quanto possível dois pré-requisitos: a internacionalização da presença estrangeira no país e a transferência do poder, o mais cedo possível, para uma autoridade iraquiana soberana. Quanto ao primeiro ponto, já se perdeu demasiado tempo. Quanto ao segundo, nada se perderá ao declarar prematuramente como soberana uma autoridade iraquiana, se isso lhe conferir legitimidade política num país que está à procura de se definir, que foi humilhado, e que continua ambivalente em relação a nós.
Qual é o futuro para a doutrina de prevenção contra nações ou grupos com o potencial para obter armas de destruição maciça? É importante não mergulhar de cabeça na noção tentadora de que agiremos preventiva e unilateralmente ante uma suspeita, que é aquilo a que essa doutrina agora corresponde. Muito simplesmente: não sabemos o suficiente para sermos capazes de agir preventivamente com confiança.
Durante quatro anos, fui o principal canal de informações de espionagem para o Presidente dos Estados Unidos. Tínhamos uma boa ideia dos desafios de segurança que enfrentávamos. Hoje o problema é mais volátil.
Estes novos desafios só podem ser enfrentados se tivermos aquilo que não temos - um serviço de informações verdadeiramente eficaz. Acho aterrador que quando atacámos o Iraque não soubéssemos se havia armas de destruição maciça. Pensámos que elas existiriam a partir de cálculos largamente baseados na extrapolação. Isso significa que os nossos comandantes no terreno entraram em batalha sem conhecerem a ordem de combate das armas de destruição maciça do Iraque.
Tudo isto aponta para uma falha fundamental na nossa política de segurança nacional. Se queremos liderar, temos que fazer com que outros países confiem em nós. Quando falarmos, eles têm de pensar que dizemos a verdade. É por isso que de Gaulle disse o que disse. É por isto que outros acreditaram em nós antes da guerra no Iraque.
Já não acreditam, e para corrigir isso precisamos de um serviço de informações que fale com autoridade. Se a prevenção se tornar necessária, esse serviço deve ser capaz de nos dizer isso mesmo: que, como último recurso, a prevenção é necessária. Agora não há maneira de saber.
Em questão, no limite, está a relação entre as novas exigências de segurança e as tradições do idealismo americano. Durante décadas, desempenhámos um papel único no mundo porque éramos olhados como uma sociedade que estava geralmente comprometida com certos ideais, preparada para os praticar em casa e para os defender no estrangeiro. Hoje, pela primeira vez, o nosso compromisso para com o idealismo em todo o mundo é desafiado por um sentido de vulnerabilidade. Temos de ser cuidadosos para não centrarmos tudo em nós e subordinarmos o que se passa no resto do mundo a um sentido exagerado de insegurança.
Vamos viver num mundo inseguro. Isso não pode ser evitado. Temos de aprender a viver nele com dignidade, com idealismo, com determinação.
 

quinta-feira, novembro 20, 2003

Entre as ondas
Esta é uma praia de todos os dias. Ali é só a parte das ondas.
Há duas razões para fazer o link. Uma é que gosto daquele rapaz. Outra é que li o Paradise News, do David Lodge, e, como já disse, fiquei vontade de aprender a surfar.
 
A minha biblioteca ideal teria uns sete livros
Há um indicador infalível que me diz que ando meio-chateado: se compro muitos livros. Tenho as prateleiras cheias de livros que nunca li. Se andasse sempre feliz, suponho que a minha biblioteca teria uns sete volumes. Os outros leria emprestados de amigos, tomados a bibliotecas; e, reciprocamente, ofereceria os livros já lidos a amigos e a bibliotecas. (Isto já eu faço às vezes).
Há pessoas que se orgulham de ter colecções pessoais com 12 mil livros. Nunca terei uma biblioteca desse tamanho: se isso estivesse para acontecer ter-me-ia, seguramente, suicidado primeiro.
 
O elogio
Toda a gente se preocupa com a crítica destrutiva. A crítica nunca é destrutiva; o elogio sim. O elogio é mutilador de uma forma que a crítica nunca consegue ser. Nunca vi um aluno destruído por causa das críticas: pode ficar triste, frustrado, pode até chorar, mas no dia seguinte não será pior aluno do que era antes. Se não for burro, pode tornar-se melhor. Em compensação, já vi vários excelentes alunos destruídos por causa do elogio: ficam paralisados, tornam-se incapazes, ou repetem-se compulsivamente até se tornarem uma caricatura de si mesmos.
Alguém escreve uma coisa espontaneamente e sai bem. Não escreve a saber que saíu bem nem sabe exactamente por que saíu bem. A seguir alguém faz um grande elogio: «fulano, sim senhor, é uma grande cabeça». E depois? Nós sabemos que fomos elogiados e que gostamos de ser elogiados - mas nem sabemos por que fomos elogiados nem o que devemos fazer a seguir. Imaginamos qualquer coisa; tentamos fazer de maneira a que venham mais elogios. Carregamos nas tintas de um lado ou do outro, preocupamo-nos em aperfeiçoar uma parte e atiramos fora o que não estava perfeito.
Mutilamo-nos. A graça perdeu-se e nunca mais ninguém saberá para onde foi o talento. Para quem fez o elogio não há problema: haverá sempre outro alguém a quem elogiar no dia seguinte.
 
O cadeado está lá - mas aberto
"A greve, obtida a cadeado, ou seja, sem verdadeira liberdade de escolha, com violência, coloca em dúvida se os estudantes estão ou não com os seus dirigentes associativos."

Pacheco Pereira tem razão nesta frase. De resto, segundo me parece, não tem razão em mais nada. Não tenho condições para saber exactamente o que se está a passar na minha Universidade ontem e hoje, na multiplicidade das suas faculdades. Na minha faculdade, o «encerramento» foi puramente, e estritamente, simbólico. Os estudantes colocaram um cadeado num pequeno portão e deixaram um outro, dois ou três metros ao lado, aberto; não puseram cadeado na porta, limitaram-se a fazer um piquete. Ninguém impediu ninguém pela força de ir às aulas. Nesse sentido, a greve foi voluntária.
No entanto, esta frase de Pacheco Pereira é correcta de dois pontos de vista. Primeiro, porque é verdade que todos os actos que sejam vistos como manifestações de força física contra os colegas e contra os docentes e funcionários enfraquecem a luta dos estudantes. O folclore criado desde o encerramento da reitoria e, consequentemente, da Faculdade de Direito, há umas semanas atrás, é lamentável. Os estudantes não ganham nada em alienar a simpatia que os docentes possam ter pela sua luta. É certo que a forma como as notícias foram transmitidas na altura dava a ideia de que toda a Universidade estava fechada a cadeado, quando isso só se passava, tanto quanto sei, em uma faculdade; e hoje está visto que a política do cadeado não foi realmente levada às últimas consequências. Pelo seu lado, a exuberância com que alguns opinion-makers e também colegas meus manifestam a sua indignação contra a universidade acorrentada disfarça mal aquilo que é, na verdade, uma oposição não à forma de luta, mas à substância da luta dos estudantes. Neste aspecto, os estudantes, façam o que fizerem, enfrentam grandes dificuldades, porque a maioria da opinião publicada é hoje hostil ao movimento estudantil porque é de direita, e não vejo forma de transformar José Manuel Fernandes ou Pacheco Pereira em espectadores isentos.
O segundo aspecto em que a frase de Pacheco é correcta é que a ameaça, ainda que não concretizada, do cadeado reflecte realmente uma fraqueza do actual movimento estudantil. Se o cadeado não impediu ninguém, efectivamente, de entrar na minha faculdade e ir às aulas, o anúncio do cadeado foi indispensável para que a greve fosse levada a sério pelos próprios estudantes. Graças ao anúncio do cadeado, toda a gente presumiu que não haveria aulas e cada um pôde sentir-se confortável na sua falta, com a certeza de que a greve não seria furada por ninguém. Isto mesmo me foi dito pelos próprios estudantes há dias: estando genericamente de acordo com as razões da luta, não estavam dispostos a pagar o preço de perder as aulas se pensassem que as aulas decorreriam normalmente. De modo que a greve de hoje aconteceu embora muitos estudantes não se tivessem realmente mobilizado a favor dela; limitaram-se a não se mobilizar contra ela. Penso que as associações de estudantes estão a convocar demasiadas greves, e pagam naturalmente o preço político por isso. Tenho a sensação de que os actuais dirigentes estudantis do Ensino Superior Público são muito fracos, e chego-me mesmo a perguntar se o problema não estará em serem pouco - e não muito - politizados.
 
Sociologia
A Sociologia deixa intrigados os nossos melhores bloggers. Pedro Lomba pergunta se as pessoas vão para Sociologia por serem de esquerda, ou se ficam de esquerda por estudarem Sociologia. Tenho o mesmo género de dúvida: casam-se porque vão para Direito e Medicina, ou vão para Direito e Medicina porque o seu destino é casarem-se? Seja como for, a Sociologia tem uma vantagem: é que responde a este género de dúvidas.
Pedro Mexia perguntava-se, já há algumas semanas, por que é que num anúncio «íntimo» uma rapariga se anunciava como socióloga. Mas a condição de socióloga-prostituta ganhou um estatuto clássico já desde que Kubrick, em Eyes Wide Shut (1999), pôs um livro de Sociologia na estante da carinhosa e amável prostituta cuja casa Bill Hartford (Tom Cruise) visita quase no início da sua odisseia nocturna.


Socióloga, ou interessada no assunto
 
Epidemia
Já devem ter reparado: 80% dos rapazes da minha geração chamam-se Pedro. No post anterior, só no fim se conseguia perceber se eu estava a falar com o pedro, com o pedro, com o pedro, com o pedro ou até com o pedro. E hoje fui ao cinema com o pedro, e não era nenhum destes.
 
Não maldigas tanto a tua fiel companhia
Caro Pedro,
Quando um dia, há uns três anos, te disse «é o teu radicalismo que ainda te vai perder», nunca pensei vir a ter tanta razão, nem tão cedo. Agora que li - em vinte minutos - a Newsweek, considero a mera comparação com o Economist um ultraje. A Newsweek tem tanto de food for thought como o Expresso ou a Visão: não é só o grafismo que é um nojo; é que a leitura da revista toda é pura perda de tempo. Apesar das indisposições que sempre acabamos por ter com os cônjuges a quem somos fiéis ao fim de algum tempo - penso que foi isso que te aconteceu com o Economist -, espero agora que te retractes publicamente do que escreveste.
Não te peço o dinheiro de volta pela revista só porque é mais barata que o Economist.
abraço.
 

quarta-feira, novembro 19, 2003

Um dilema
Tenho um computador novo com um ecrã grande e magnífico. As fotografias que coloquei recentemente, a última de Emanuelle Béart e antes uma de Eyes Wide Shut, são tão bonitas e ficam tão bem no ecrã que eu nem desligo o computador, aberto nesta página. Se o leitor está a ler isto, é porque eu já borrei a pintura: cada post novo enterra o anterior na obscuridade. Béart e Kubrick mereciam melhor que isto.
 
Também tenho uma agenda - política
Estes rapazes andam com as prioridades trocadas e falam como se a única coisa que vai acontecer nos cinemas de Lisboa na sexta-feira fosse o novo filme do Clint Eastwood. E isto? Não será uma dica melhor para pensar sobre o que está «para além da esquerda e da direita»?


Les égarés, o novo filme de André Techiné, com Emanuelle Béart, estreia na sexta.
 
Not a personal question
Caro Pedro [texto teórico e aborrecido, 19/11],
Era apenas uma citação famosa, não percebeste?
Excuse me. If it's not a personal question: are you a virgin?


He's not the Messiah. He's just a very naughty boy.

(Já agora, o post Love, Love, Love era muito, muito bom).
 

terça-feira, novembro 18, 2003

No cinema
Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. (...)
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política.

[excerto de uma entrada do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, ed. Assírio e Alvim, p.255. Entrada completa aqui].
 

segunda-feira, novembro 17, 2003

Acontecer
A única coisa que me aconteceu fui eu próprio.

[Jacques Brel]
 

domingo, novembro 16, 2003

Eyes Wide Shut

One of the charms of marriage is that it makes deception a necessity for both parties.

Vi hoje pela quinta vez (quarta no cinema) Eyes Wide Shut, provavelmente o meu filme preferido de sempre. O projecto - adiado - é um dia conseguir escrever sobre ele.
 

sábado, novembro 15, 2003

Cuidado, Marcelo
Apareceu um sério competidor para o prémio «Pateta mas Muito Satisfeito».


Our own Mr Bean

Público - Lê vários livros ao mesmo tempo?
Guilherme Oliveira Martins - Não sei funcionar doutra maneira. Dou-lhe o exemplo da última semana: reli Guerra e Paz de Tolstoi para escrever um pequeno ensaio, regressei a Kierkegaard, e tenho em mãos Hermann Broch e Hoffmannsthal... E convivi com a magnífica colecção da 1ª série de O Tempo e o Modo (para preparar as comemorações dos 40 anos no CNC)... Além dos livros académicos...
 
Fantasmas
Temos fantasmas tão educados que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados de personagens do assombro.

[Natália Correia, «Queixa das almas jovens censuradas»]
 
Explicas depois
Quanto mais nos explicamos, menos nos entendemos.
 
A ilusão da transparência
A democracia transforma-se em tragédia quando se imagina que tudo se pode, ou se deve, explicar aos olhos de toda a gente; que alguém deva explicar numa linguagem compreensível e aceite por todos tudo o que pensa, que diz ou que faz. Ocorreu-me isto hoje a ver um filme do Kubrick, como me ocorre muitas vezes em que tenho conversa «de taxista», em que sinto que é totalmente impossível dizer ao meu interlocutor seja o que for que ele não esteja previamente preparado para ouvir - isto é, que ele não «saiba» já.
Os jornalistas são nas nossas sociedades os principais tradutores que escolhem o que deve ser apreciado por todos. Na semana passada o Público trazia uma notícia a partir de um post de Pedro Adão e Silva sobre a saída de António Ribeiro Ferreira da direcção do DN. O que me choca não é que o jornalista não tenha feito distinção entre o blogger e o dirigente político, nem mesmo que não se tenha dado conta da diferença de tom que existe entre um post e uma declaração ao jornal. O que sobretudo me inquieta é esta ideia do jornalista de que tudo o que um dirigente político comenta em tom de «boca» é ipso facto notícia no principal jornal de referência do país. A não ser do ponto de vista do propósito de construir uma caricatura do «radicalismo» da actual direcção do PS, não há porventura nada de mais irrelevante e ridículo do que a matéria de que esta suposta notícia se alimenta. Há jornalistas que procuram um mundo que não seja habitado por pessoas, mas por personagens de duas dimensões que caibam na novela da noite.
Eis a notícia - porque dentro em breve já não estará online:

Pedro Adão e Silva, membro do Secretariado Nacional do PS, afirmou ontem que a entrada de Fernando Lima para director do Diário de Notícias e a eventual saída de António Ribeiro Ferreira do cargo de director adjunto significa que o jornal muda de Voz do Texas para Povo Livre (nome do jornal do PSD). Numa breve nota no seu blogue (http://paisrelativo.blogspot.com) este dirigente nacional dos socialistas afirma: «Mesmo nas dimensões mais tristes da vida colectiva pode haver aspectos positivos. A ida de Fernando Lima para o DN até pode ter dois: significar uma viragem à esquerda e o abandono da tabloidização do jornal. Senão vejamos, a crer nos jornais de fim-de-semana, Ribeiro Ferreira vai à vida e com o seu despedimento com justa causa o DN muda de Voz do Texas para Povo Livre. Se nada mais, significa um passo no sentido da civilidade.» Os dirigentes do PS tinham até agora comentado com alguma contenção a substituição de Mário Bettencourt Resendes por Fernando Lima, ex-assessor do Cavaco Silva e, mais recentemente, do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Martins da Cruz, na direcção do DN.
 

sexta-feira, novembro 14, 2003

O egocêntrico relutante
 
Todo o que for será bem gasto
O multimilionário George Soros que já gastou milhões de dólares para promover a democracia no antigo bloco soviético, em África e na Ásia, tem agora um novo projecto: derrotar o Presidente George W. Bush. "É o foco central da minha vida" disse Soros ao Washington Post. As eleições presidenciais de 2004 transformaram-se para ele "numa questão de vida ou de morte". Ao todo, Soros já desembolsou 15,5 milhões de dólares para derrotar Bush. O dinheiro não vai directamente para o Partido Democrata (porque estes não podem receber o chamado "soft money") mas para organizações ligadas àquele partido que vão fazer campanha contra os republicanos.
[Público]
 
Honey, I'm home


Hoje e amanhã na Cinemateca.
 
A lei seca do véu
No Barnabé, o André e o Daniel retomam a velha e bizantina discussão sobre o foulard. Para o Daniel, as raparigas não podem ser autorizadas a usar véu na escola porque ele atenta contra «os direitos das mulheres» e o Daniel «recusa a ideia de uma escola neutra». Muito bem. Mas presumo que o Daniel também recusa um Estado neutro perante atentados aos direitos das mulheres. Donde, não vejo por que a escola há-de ser um lugar especial; se se trata de um atentado contra os direitos das mulheres, por que não proibir o uso do foulard também na rua?
 
O casamento (cont.)
O casamento ainda é a doença infantil dos nossos dias. Sobre a boda dos príncipes leram-se os mais rematados disparates, e apenas dois comentadores - ambos de direita - souberam olhar o assunto com olhos prosaicos e com ironia.
Vejo jovens saudáveis e até bem-parecidos procurando resolver o vazio interior e o da própria relação amorosa lançando-se sobre o abismo do casamento. Boa parte das bodas são suicídios cometidos a dois, com festa, sorrisos e a benção das famílias, praticados por jovens na flor da idade a quem a vida prometia tudo.
 
Unaccountable
Quase toda a gente tem muito mais medo de errar por elogiar exageradamente alguém do que de, vendo a árvore e não a floresta, se exceder na crítica.
Só conseguimos elogiar incondicionalmente os mortos, os velhos e as crianças.
E só as crianças sabem manifestar uma euforia sem reservas perante a chegada de alguém - sorrir, correr e abraçar-nos. Talvez porque saibam que estão no seu direito (porque nem sabem o que é um direito) e não terão ninguém a quem prestar contas se no dia seguinte, sem razão nenhuma, ignorarem olimpicamente aquele a quem abraçaram na véspera.

(Não fossem a Rita e a Laura como é que eu saberia isto?)
 

quinta-feira, novembro 13, 2003

Big Sur
Há meses descrevi um pesadelo que tive e pedi sugestões literárias que lhe dessem continuidade. Não pedi interpretações - que, claro, também recebi, e sobre sonhos que eu não tinha sonhado. Pedi livros, romances. Um leitor entendeu exactamente o espírito do meu pedido e sugeriu Jack Kerouac, Big Sur, «a quem o [meu] pesadelo poderia ter acontecido». Agora comprei-o, naturalmente, e vou lê-lo. Sobre o livro, Raquel Ribeiro escreveu no Público de terça:

Kerouac é agora um homem quase-velho, diante da maturidade, mas ainda incapaz de a enfrentar.
 
Já mete nojo
Já mete nojo tanto entusiasmo de hordas de adolescentes histéricos que tentam conhecer-me e verter toda a sua existência na minha.

[Jack Kerouac]
 
Mãe
Do Onion:

«Really, the blog is just a record of what I think about the world and how I spend my free time. In other words, exactly the sort of information that no 30-year-old wants his mom to have access to
Widmar said he imagines his inbox filling up with e-mails containing elaborate questions about an off-hand comment on Kill Bill—or, should he appear to have too much free time, requests for him to come and visit her.
«I know enough not to tell Mom that I'm seeing a girl until it's serious,» Widmar said. «Now, she's going to know exactly who I hang out with, where I go, and what I spend my time doing on a daily basis. I am so in hell right now.»
«God, my links alone contain unlimited fodder for Mom's neuroses. With the raw materials in my blog, she could actually construct an accurate picture of who I am. This is fucking serious
«To think that I was happy that Mom was e-mailing instead of calling ever since [Widmar's sister] Karen got her online last year,» he added. «I didn't see the danger.»
According to Widmar, there's «no fucking chance» that Lillian will simply give the site a cursory look and never return.
«Mom loves hearing every boring detail of her kids' lives,» he said. «She'd want to know what I'm eating for dinner every night, if she could. This blog is like porn for her.»
«Come to think of it, why do I sometimes write about what I ate for dinner?» Widmar asked.
Seeing his blog through his mother's eyes, Widmar said he knows there's no way the site can remain unchanged.
«I know Mom will instantly become the site's most avid reader and most vocal fan,» Widmar said. «As I write it, I'll think, 'How would Mom feel about this?' Even worse, I'm sure she'll give the address to all our relatives.»
All of the tactics Widmar has considered to divert his mother seem unworkable.
«I could take it down for a few weeks, but I know she wouldn't just forget about it,» Widmar said. «I could edit the site and send my other readers through a back door, to another blog just for them. But, I mean, that's just ridiculous.»

 
Extrema-esquerda
Eu sou tão de extrema-esquerda que a maioria das minhas opiniões são demasiado à direita para o meu próprio gosto.
 
That is the question


INTERROGAÇÕES: Dispenso pormenores sobre a boda. Passo os discursos públicos. Quero saber duas, três coisas realmente importantes. Quero saber quem vai bater em quem? Quem é a vítima? Quero saber quem ama menos? Sobretudo isto: quem ama menos? Em todo o conúbio amoroso há alguém que ama menos. O embeiçamento nunca é igual para quem se cruza.

[Pedro Lomba]
 

quarta-feira, novembro 12, 2003

O fim do Cristóvão
A pedido do autor, publica-se o seguinte comunicado:

Na dificuldade de o fazer por correio electrónico e na inviabilidade de qualquer outro meio, lamento informar todos os que me têm escrito ou falado que o Cristóvão de Moura acabou. É verdade. Tentei repô-lo em funcionamento ao fim do mês e meio em que esteve congelado mas por um problema qualquer que não consegui ultrapassar - e me apressei a considerar de origem divina -, não foi possível devolver à vida a palavra de passe e a identidade de utilizador. Tomo a coisa à letra: Deus recusa-me o re-acesso ao rito de passagem e à identidade na blogosfera. Deus sabe que quem deixa um blogue no mar alto da blogoesfera, abandonado, durante mais de um mês, o condena a ser o navio do Holandês Errante, para sempre vazio, tripulado por fantasmas.
Adeus Cristóvão de Moura. Boa viagem! Não sei o que te vai acontecer, se as tuas letras empalidecerão aos poucos sob a luz inumana dos écrans, se o teu tosco template se desformatará devagarinho na escuridão de monitores apagados em salas vazias, se os teus fragmentos decompostos flutuarão, anónimos e irreconhecíveis, no limbo dos computadores mortos.
Paulo Varela Gomes
 
Desviado do caminho do bem
Cuidado com os testes da bomba. Se não tiverem cuidado podem acabar como eu, retratados assim:


You are Cypher, from "The Matrix." Selfish, disllusioned, you are misguided at times. You deviate from the "right" path
 
Tudo vale a pena quando a arca não é pequena
Tenho estado desde sábado à espera que o Público disponibilize online alguns textos notavelmente interessantes que publicou: quatro páginas inteiras assinadas por Luís Miguel Queirós, um excelente jornalista literário, sobre as mais recentes publicações do espólio de Pessoa, e o óptimo artigo de Pedro Magalhães, aliás parcialmente em polémica com coisas escritas por Pacheco Pereira no Abrupto. Mas até agora nada.
 

terça-feira, novembro 11, 2003

Continuação de asl
E ai de quem acorda estremunhado
espreitando pela fresta a ver se é dia
a esse as ansiedades
ditam sentenças friamente ao ouvido
ruído
que a noite a seu costume transfigura

[Sérgio Godinho, "Lisboa que amanhece"]
 
Três vivas à blogosfera
Viva! Viva! E - sobretudo - Viva!
 
Vaidade
Grande vaidade é conseguir dizer coisas sobre o mundo - e nem precisar de falar sobre si mesmo.
 
Escrita enxuta
Procuro a escrita enxuta. Aborreço-me quando não sai assim.
 
Boda de príncipes
Uma Estória de Encantar
Por Eduardo Cintra Torres
Público, 10 de Novembro de 2003

Era uma vez um príncipe, muito alto e muito bonito, herdeiro de grande e poderoso reino. Chamava-se Filipe e tinha 35 anos. Há muito que o rei e a rainha andavam apoquentados por estar ele em idade casadoira e não haver meio de encontrar noiva a condizer consigo e com a próspera pátria. Era tão grande o desassossego que o reino quase todo já trocava os ii com os vv e dizia "novia" em vez de noiva.
Montando fogosos cavalos de ferro, voando em belos pássaros de fogo, Filipe procurava, incansável, no reino e no mundo, uma princesa que assentasse no sapatinho do seu poder. A todas ele experimentava, mas não, não era nunca a princesa encantada.
Os anos passavam. Havia muita consumição na família real e no reino, porque os príncipes precisam de princesas para procriar no casamento, como mandam fazer a seus súbditos. O príncipe sabia, ó se sabia, que a função biológica da procriação é a mais importante de todas as de um príncipe, porque se os príncipes não tiverem filhos acabam-se os príncipes, e, por arrasto, acabam-se os reis também. Mas sabia também da maldição que recaía sobre muitas famílias reais, em que não se consegue casar, ou procriar no casamento, ou ter mais filhos que a maioria das famílias vulgares que fazem coisas vulgares, incluindo as coisas que fazem nos pobres leitos conjugais.
Certa noite, inconsolável e arreliado, recolheu Filipe a seus aposentos logo depois da ceia sem mesmo dar aos que àquela hora servem ainda um príncipe herdeiro as boas noites (e ele, a dá-las, diria "buenas noches").
Depois de preparar uma antiga poção mágica escocesa contra o enfado (poção com 12 anos de idade que ele misturou com água borbulhante e duas pedras de gelo) sentou-se Filipe num sofá confortável - mais que um trono -, e pegou numa arma terrível que se espalhara muitos anos antes por todas as casas dos súbditos do reino. Um telecomando.
Enquanto bebericava, pôs-se o príncipe a praticar distraidamente o desporto favorito de seus súbditos, "el zapping". A poção mágica produzia um suave efeito conciliador nas suas emoções desencontradas, mas não tanto que o fizesse esquecer o grave problema que sobre a sua coroável cabeça pendia.
Saltitando de canal em canal, o príncipe dava por si a pensar quão pobres eram os cidadãos do seu país e os do mundo todo para entregarem tanto tempo a tamanha sensaboria. "Pobrecitos, pensava, não têm dinheiro para não verem televisão." E, ali no palácio dourado, magoava-o pensar que os seus concidadãos eram pobres.
A poção escocesa adocicava-lhe o corpo, enquanto o polegar carregava sem cessar na tecla mais do telecomando, fazendo do ecrã uma luz intermitente, tremeluzindo como os néons das cidades proibidas que o príncipe visitava longe dos jornalistas das revistas do coração, por não serem aquelas visitas visitas do coração.
O som dos canais chegava aos solavancos por causa de "el zapping". De um canal vinha a palavra "pues", de outro "esta", de outro "noche", de outro "hay", de outro "que resolver", de outro "un problemazo". No seu cérebro adormecido, se tal se pode dizer de um príncipe, pensava ele se seria a poção mágica ou a televisão que lhe dizia "pues esta noche hay que resolver un problemazo".
Tecla mais, mais, mais... Sempre os canais mudando, sempre a luz intermitente... o príncipe sentia-se agora bem. Olhando o ecrã sem o ver claramente visto, como que encantado pela luz, balbuciava para o televisor uma lengalenga de infância com que a rainha sua mãe o embalava: "Espelho meu, espelho assim, haverá no reino alguma princesa p'ra mim?" (1)
E, num repente, um tão de repente como nas outras estórias de príncipes, o príncipe viu no ecrã a sua princesa, como se a tivesse visto sempre, como se ela fosse ele e ele ela, os dois atraídos por aquela luz, unidos pela pele do ecrã, ele olhando-a embevecido como qualquer súbdito a olharia, ela do lado de lá olhando como se fosse só para ele. Era ela - e, ó alegria!, felizmente era no canal oficial do Reino!
O príncipe olhou a futura princesa, prendada na profissão de apresentadora de televisão, bonita, inteligente e com a grande mercê de já conhecer as coisas da vida, pois felizmente era divorciada. O príncipe percebeu que uma rainha é uma apresentadora da monarquia. Fulminado, escolheu-a. Ela era mais conhecida do povo que as filhas de condes e duques e mais intimamente amada que as das capas das revistas, pois ela era toda audiovisual, toda som e imagem em movimento, palavra e gesto.
Letizia de seu nome, nome latino significando jóia e bom augúrio, nome de deusa da abundância e da fertilidade, e não Letícia, por erro ou oráculo inconsciente dum funcionário do registo civil das Astúrias, ela, Letizia, assentava no sapatinho do poder. Das Astúrias veio como Borralheira, às Astúrias voltará sua princesa. O príncipe pensou: ela, a Letícia da televisão, será a notícia. E, assim, o príncipe casou com a televisão, como faz o povo todo.
Amaram-se, ele, que já a conhecia da televisão, ela, que já o conhecia da televisão. Encontrarem-se foi reverem-se. Juntarem-se os dois foi passarem da montagem em planos contíguos, ao mesmo plano televisivo e, quiçá?, quiçá?, a quartos contíguos. Ele, que era príncipe, rei será. E ela antes de ser rainha já o era da televisão. O povo aprovou. Foram felizes para todo o sempre, sendo este sempre o momento em que se conta a estória, pois nunca digas desta Diana não beberei.
Entretanto, num pequeno país ao lado, o povo vivia sem estórias de príncipes nem princesas e oprimido por políticas comunicacionais do Governo e do presidente a fazer lembrar a da bruxa má. Nesse pequeno e pobre país as apresentadoras de televisão não tinham as mesmas hipóteses de sonhar das Letizias do reino ao lado. Não podiam, como Letizia, sonhar com El Gordo, porque El Gordo não havia, só a Taluda. E, assim, o máximo que conseguiam era uma ligação com um presidente dum clube de futebol ou um casamento com um autarca comentador da bola ou com um ministro da Cultura depois comentador. Coisas de repúblicas.
Nesse pequeno país, vivia-se por empréstimo, quem sabe se a crédito, a estória encantada do príncipe do reino vizinho. Aprovava-se a escolha de Filipe e augurava-se-lhe um grande e feliz reinado. Desde que ele não tentasse ser Filipe IV de Portugal.

(1) Traduzido do grego pelo autor.
 

segunda-feira, novembro 10, 2003

Alguém lhe perguntou alguma coisa?
Parece que não; vai daí, não foi de modas e perguntou-se a si próprio. O professor universitário Fernando Lobo inaugura a curiosa modalidade da auto-entrevista e o Público de hoje publica-o. São pérolas destas:

"O que acontece é o seguinte. Dez por cento dos alunos têm realmente interesse em aprender. Dos outros 90%, uma parte anda na vadiagem e a outra parte até se esforça, mas não vai lá. Como lhe disse, alguns chegam à universidade sem saber que 2+2=4. É impossível transformar esses alunos em bons engenheiros."

Não é só a visão alucinada do mundo que me impressiona. É a depressão: como é que consegue dar aulas acreditando nisto?
Diz que os colegas olham para ele como se fosse «um extraterrestre». Mas são gentis.

PS. Chorei a rir com o post do Daniel sobre este assunto.
 
Lolita


Não sou um grande fã do Lolita do Nabokov; sou um grande fã do Lolita do Kubrick, que passa hoje e amanhã na cinemateca e que eu não poderei ver por não estar em Lisboa.
 
Onde está o PREC?
Pede-se à Direcção-Geral da AAC o favor de enviar um delegado à Av. Dias da Silva de forma a trancar as portas da Faculdade de Economia. Há quase uma semana que, pelo que ouço dizer, o ensino superior está em pleno PREC e o epicentro é Coimbra. Por aqui, uma calma celestial, aulas cheias de alunos que fazem perguntas. Já falhei o PREC (estava a mamar - em sentido literal) e agora sou privado destas folgas. Os meus colegas lá de baixo sabem a sorte que têm.
 
Que tivesse paciência
A poesia nunca disse a ninguém que tivesse paciência.
[Sophia de Melo Breyner Andresen]
 
Edição de autor
Este blog pode não ser grande coisa, mas também é edição de autor.
 

domingo, novembro 09, 2003

Glória vã
Saudemos Maria José Oliveira, blogger do Glória Fácil, que ontem se estreou como colunista política do Público. É certo que foi na secção de notícias, mas estou certo de que se tratou de um erro de paginação. Eis a prosa:

Um Partido à Beira de Um Ataque de Nervos
Por Maria José Oliveira
Público, 08 de Novembro de 2003

Ferro Rodrigues pediu tempo. Volvidos os períodos mais conturbados da crise interna do Partido Socialista (PS), vividos após a detenção do seu ex-porta-voz, Paulo Pedroso, o líder decidiu dar o exemplo: remeteu-se ao silêncio e dispôs-se a uma reflexão individual sobre a acção política do partido nos últimos meses.
As críticas e as acusações que ouviu na última reunião da comissão nacional, realizada a 23 de Outubro, precisavam de ser dissecadas e analisadas. Desde então, o tempo suspendeu-se. O secretário-geral fechou-se em copas e o partido ressentiu-se da orfandade, agindo sob um nervosismo desmesurado. Os dirigentes do PS negam os factos, mas a opinião pública foi consensual: as recentes actuações políticas do maior partido da oposição reproduziram ecos débeis. Resta saber se isso não deixará sequelas.
As atenções dos socialistas centraram-se totalmente nas expectativas em torno do silêncio de Ferro Rodrigues, mas, para espanto geral, o nervoso miudinho teve a sua génese precisamente no núcleo directivo mais próximo do secretário-geral. Isto mesmo foi desvendado a partir das reacções às notícias que têm vindo a ser divulgadas na comunicação social, nomeadamente aquela que deu conta da eventual candidatura de João Soares à liderança do PS (ver Público do dia 4).
A notícia teve um duplo efeito: as dúvidas sobre a permanência de Ferro na direcção socialista aumentaram e a "entourage" do líder ficou com os nervos em franja quando João Soares telefonou para o Rato e acusou os membros do gabinete do secretário-geral de terem veiculado aquele "boato". O episódio não é inédito: submerso em movimentações e intrigas internas, o PS quedou-se num clima de desmotivação e desconfiança que atingiu sobretudo os dirigentes próximos do líder, mais interessados em descobrir as fontes da comunicação social do que em reformular os programas políticos.
Ferro Rodrigues contribuiu para isso: arrastou o partido para um grau de alheamento político sem precedentes e abriu a porta à multiplicação de especulações sobre a liderança socialista. A estagnação do PS deixou muitos dirigentes nacionais à beira de um ataque de nervos, mas as indefinições de Ferro impossibilitaram quaisquer avanços.
Resta saber se, durante o dia de hoje, na reunião da comissão nacional, alguma coisa vai mudar. É já certo que Ferro Rodrigues manter-se-á à frente da direcção, mas o facto de esta decisão resultar também do temor de ser acusado de abandonar o partido num momento de crise é revelador de uma liderança a prazo.
 
Nature Boy
There was a boy
A very strange enchanted boy
They say he wandered very far, very far
Over land and sea
A little shy and sad of eye
But very wise was he

And then one day
A magic day
he passed my way
And while we spoke
of many things
Fools and kings
This he said to me

«The greatest thing
you'll ever learn
Is just to love
and be loved in return»
 
Vinícius de todos os vícios


Ele errava com uma confiança incrível.
[Chico Buarque sobre Vinícius de Moraes]

O Vinícius era múltiplo. Como o Sérgio Porto dizia: senão ele seria Viníciu de Moral, e ele não era - ele era o Vinícius de Moraes.
[António Carlos Jobim]

Está sentado à mesa com a geração mais nova - distinguem-se o Caetano e o Gilberto Gil - como se fosse a dele. Está a fazer parte daquilo que ele ainda não sabe bem o que é, não como quem ensina, mas como quem participa. E é por isso mesmo, exactamente nisso, que ensina.
Não estou a falar do Vinícius de Moraes, claro - embora pudesse. Estou a falar para falar deste blogger. E se falo deste blogger - que calha (e isso - é verdade - é sorte) ser meu avô - também não é agora essencialmente para exprimir um afecto pessoal. Agora falo do blogger enquanto blogger, até porque, muito graças à ajuda do Barnabé, muitas pessoas - muitas mesmo - já perceberam que este blogger tem significado não só para os próximos mas para a blogosfera. (Agradeço ao Barnabé por isso).
O seu menor defeito e principal virtude é ser um péssimo juiz do carácter das pessoas. Péssimo, péssimo, horrível. E falo por mim: se é certo que me vejo como sendo um tipo muito decente, sei bem como é distorcidamente exagerada, exageradamente generosa e idealista, a imagem que ele faz de mim. Não é só de mim.
E não é uma generosidade beata. É uma generosidade obtusamente desprovida de autoconsciência: ele nem consciência tem de como é generoso. Se isso for uma forma de burrice, é uma burrice muito inteligente.
Noto - parece-me notar - que há dois tipos de posts que eu escrevo que incomodam as pessoas. Um são aqueles em que falo de mim. Neste momento não me interessa pensar sobre isso: de há uns tempos para cá estabeleci uma espécie de trégua nessa discussão, que é declarar-me, como quem declara bens na alfândega ou rendimentos nos impostos, como sendo vaidoso. Pago o meu tributo e deixam-me seguir caminho. O segundo tipo de posts que genuinamente cria incomodidade e perplexidade às pessoas é aquele em que eu faço elogios sem reservas a outros.
Às vezes, se calhar, exagero. (Não acredito nisto - mas pouco importa). Gosto, gosto sinceramente, gosto francamente de certas coisas que leio na blogosfera. Chego a gostar das pessoas que as escrevem - e, o que é mais e, ao que parece, menos comum, é que fico entusiasmado e não envergonhado por isso. Tenho heróis. Nem só o Brel, nem só o Vinícius, nem só o Calvin - nem só os mortos. Nem só as mulheres inatingíveis.
Lembro-me bem de me terem explicado quando era pequeno que não se dá nomes de ruas a pessoas vivas porque nunca se sabe os disparates que podem fazer a seguir.
Mas reparem numa coisa - ou melhor: reparem em duas. Primeiro: aquele blogger, como outros, como nós, como todos, é uma pessoa: temos limitações estreitas e às vezes defeitos até ridículos. A questão não é ser santo. Aquele blogger nem sequer tem uma visão beata sobre as pessoas, sobre o mundo ou sobre a vida: farta-se de constatar e lamentar a sua indecência. O que importa é que o desencanto não o impede de continuar a errar, não o incapacita para gostar exageradamente, sem sequer uma consciência lúcida sobre o exagero. Ser desconfiado é talvez o pior dos defeitos. Ser capaz de confiar é mais importante do que ter razão.
Segundo: os elogios muitas vezes não se destinam essencialmente aos elogiados. Raramente agradeço elogios, raramente mos agradecem: está bem assim. Não peço ao Mexia, ou ao Lomba, ou ao meu avô, por exemplo, nada em troca. Sublinho, destaco, como quem reproduz um poema do Vinícius, coisas que eles puseram cá para fora e se tornaram nossas. Acrescento alguma coisa só no facto de elogiar ou de citar: acrescento que é aquilo que me interessa.
Termino com um dos posts de que mais gostei. Não sei se o que nele o Mexia diz também tem que ver com isto, ou se sou eu que misturo as coisas todas:

Q & A: - Já perdeste amigos por causa do blog?
- Já. Mas não foi por causa do blog.
 

sábado, novembro 08, 2003

Vinícius
(ao buba, novamente).

O haver
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
Perdoai-os: porque eles não têm culpa de ter nascido.

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe
.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.


Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só
Vinícius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas
, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil
.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil

E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã
dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança
.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada.

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens
.

[15-04-1962]
Este poema tem uma segunda versão, gravada em disco, que se encontra transcrita aqui.
Um excelente site dedicado ao Vinícius é este.
 

sexta-feira, novembro 07, 2003

Seis milhões
E menos sócios votantes do que eleitores da Política XXI em 1994. Até o mais estúpido e apático dos cidadãos já percebeu que, ao contrário do que se diz, as eleições para o Benfica são muito menos relevantes que a política.
 
Por que adoro o Benfica

Não sou ingrato: ultimamente é o único clube que me dá alegrias.
 
Definição ideológica
Deus, Pátria, Rei e o Benfica. Da rejeição destas quatro coisas se compõe a minha ideologia.
 
Credenciação
Miguel Portas é economista. Paulo Portas é jurista.
 
ub(m-)l
Na inteligência e na subtileza do argumentário político de 90% dos membros da ubl, ela é herdeira de uma tradição reconhecida. No meio daquilo, o Luciano Amaral é o Raymond Aron em pessoa; o Pacheco é nada menos que o Max Weber.
 
«Coisas» para dizer?
Por muito vaidoso que seja, a maior parte das minhas opiniões dá-me tédio.
 

quinta-feira, novembro 06, 2003

1, 2, 3... experiência
Como o estimado leitor terá reparado, estive vários dias sem escrever no blog. Há razões para isto - nem todas boas, nem todas más. Em todo o caso, se o meu silêncio não foi activamente procurado, teve efeitos colaterais positivos e interessantes. A primeira coisa que me agrada é que, ao fim de dois dias sem escrever no blog, a vontade de escrever torna-se sempre enorme. Se ando em dias muito ocupados, nos momentos em que a cabeça está mais ou menos livre - quando ando pela rua e antes de adormecer - multiplicam-se ideias para posts ou até textos mentalmente escritos por inteiro. Esses textos obviamente nunca chegam a existir. Aliás, na minha experiência não existem textos mentais, pelo menos não de mais de um parágrafo. A experiência de escrever é uma experiência distinta e cria a sua própria dinâmica: é impossível escrever o que tinha pensado, porque a escrever criam-se novas ideias. Não há estrutura nem ordem predeterminadas.
Que ia eu dizer, então, que me perdi? A melhor coisa do silêncio foi ter pensado sobre o sitemeter de que me tornei escravo. Não muito escravo, não doentiamente escravo, não obsessivamente escravo - mas escravo: meti na cabeça que há não sei quantas pessoas por dia que estão à espera que eu escreva qualquer coisa, ao que acresce a preocupação de pelo menos manter, ou se possível fazer crescer, o número de pessoas que me lêem. Em suma, gosto que estejam desse lado. Mas, com o devido respeito, não é para vocês que escrevo. Eu explico.
Disse o Mexia, parece que num encontro de bloggers - não vou fazer link porque agora não me apetece andar à procura da frase, que quase de certeza li na blogosfera -, que nós escrevemos para sermos lidos e que quem escreve pensa que tem coisas para dizer. Está bem: também. Mas não essencialmente, não no meu caso, não pelo menos no início quando comecei este blog e redescobri o prazer da escrita de uma forma livre e intensa que tinha perdido há - não exagero - bem uma década. Escrevo para que me leiam, sim - pois que se não escrevia um diário íntimo, e para isso tenho pouca pachorra. Mas escrevo - e isto é que é o fundamental - para experimentar.
Este blog é antes do mais um laboratório. Vou experimentando com as palavras, vou experimentando com as ideias e - sobretudo - vou experimentando com o que se pode e não pode dizer. Da experiência - como de todas as experiências - às vezes saem coisas boas, coisas que francamente desejo que sejam lidas por alguém, ou por muitos, ou por todos se possível. Também sai lixo. E - isto é crucial - sai também a minha - e também a vossa - incapacidade para discernir inteiramente o que é bom e o que é lixo.
Escrevo portanto para experimentar. Nos últimos meses - com o sitemeter, com os comentários, com tudo - experimento cada vez menos e «comunico» (como se tivesse alguma coisa para dizer) cada vez mais. Há realmente momentos em que tenho coisas para dizer - sobre o caso Casa Pia, por exemplo. E há blogs de que gosto muito, de que não perco uma linha, cuja característica quase exclusiva é terem coisas para dizer. Mas aquilo que eu tenho sobretudo, que eu tenho antes disso e que eu gosto sobretudo na Praia, é ter coisas para experimentar.
Assim, se gosto do Barnabé por ter coisas para dizer, se gosto do Diabo por ter coisas para dizer, também gosto - muito, muito - do blog do meu avô que anda muito inspirado e da Obsessão do Lomba que permanentemente circula entre os territórios da mensagem política - «ter coisas para dizer» - e das coisas para experimentar, em que não sabemos se ele acredita no que está a dizer, nem por que o escreve, e no entanto retiramos muito gozo de ler o que ele escreveu. E é difícil, se não impossível, saber onde está a fronteira que demarca esses dois territórios. Como aqui:

DIA-A-DIA: Regresso a casa. Conduzo sem pressas. Não apanho trânsito. Para minha surpresa, os meus compatriotas fazem o mesmo. Circulam normalmente. Usam o pisca. Não ultrapassam nas curvas. Por uma vez, não são idiotas. Tudo seria melhor se os portugueses percebessem o que têm de fazer. Levantar cedo, pôr a filharada na escola, trabalhar, encher o bucho, trabalhar outra vez, buscar os filhos, regressar a casa a 70 Km hora, comer outra vez, ver televisão, dormir. No outro dia, repetir a dose.
 
Jardim do Salazar


Passo por uns miúdos - nove, dez, onze, doze anos - que jogam à bola no mesmo lugar onde eu jogava quando tinha a idade deles. Aos onze anos não havia para mim nada de estranho em chamarmos ao lugar o «jardim do Salazar». Será que ainda lhe chamam assim? Será o do Cavaco? O do Guterres? O do Durão? É aquele jardim ao lado da residência oficial do primeiro-ministro, que hoje está muito mais bem tratado do que no meu tempo. Mas o jogo dos miúdos - parei e fiquei a ver - é igual ao que era: mais gritaria que talento, os miúdos naquela idade parecem meio desengonçados e pequenos demais para o tamanho e o peso da bola.
No entanto, entre nós havia uma estrela, o Hugo Porfírio - que depois jogaria no Sporting, no Benfica, em Inglaterra, em Espanha e, da última vez que li num jornal desportivo, em Chicago. O Hugo não era só incrivelmente talentoso para os nossos padrões; mesmo entre os futebolistas profissionais deve ter sido dos mais talentosos que apareceram nos últimos quinze anos. O que é curioso é que, ao contrário do que se possa imaginar, para jogar bem futebol não basta saber fintar e, embora o Hugo tivesse um talento quase inexcedível nesse aspecto (o Dominguez, que andou no meu liceu, também tinha), como jogador não chegou a grande coisa (ainda que tenha sido o mais jovem convocado da selecção nacional no Europeu de Inglaterra, em 1996).
Acho que o problema é que o Hugo não gostava - não gosta - particularmente de jogar à bola. Lembro-me de termos dez, onze anos e ele gozar com a minha paixão exagerada pelo futebol. Ele tinha um talento desmedido para a finta - e não só no futebol, mas também no andebol, que jogámos federados, no Pedro Nunes. Quando tinha dez anos, eu ia com o Filipe Hasse Ferreira à tarde para a escola só para assistir aos jogos da turma do Hugo e do Gil. O Gil, se não me engano, nem chegou a ir estudar para o secundário nem se tornou futebolista - tinha muito talento mas foi ajudar o pai na loja, ou coisa parecida. O Hugo foi meu colega mais tarde também no Pedro Nunes.
No ano em que vivi em Inglaterra o Hugo Porfírio estava a jogar no West Ham e lembro-me bem do primeiro jogo dele que fui ver - que foi também, se não estou em erro, o último jogo da carreira do Futre, que tinha sido o nosso herói de infância quando fomos colegas. O Estádio do West Ham vinha abaixo com o público a gritar «Hugo! Hugo!». Os ingleses estavam malucos com as fintas daquele português que tinha chegado havia poucas semanas. Mas por isso mesmo: porque tinham sido poucas semanas. Dois meses depois e, embora fosse a estrela da equipa, já nem convocado era, presumo que por ser incorrigivelmente insubordinado e não se dar ao trabalho de correr nem defender. A história repetir-se-ia em Espanha, no Racing Santander, onde o Hugo recebia para aí o dobro do segundo jogador mais bem pago do clube e se tornou reservista ao fim de uns meses, e também no Benfica.
Tenho pena que ele não tenha chegado a ser um grande jogador. Em compensação, fez mais dinheiro do que eu alguma vez poderei sonhar e agora possivelmente vive em Chicago, sem muito trabalho. No final das contas, quem gostava mesmo de jogar à bola não era ele, era eu.
 
Agora escala rochedos
 

quarta-feira, novembro 05, 2003

Imagens

The mystery of the world is the visible, not the invisible. [Oscar Wilde]

Links

Verões passados

A Coluna Infame | Barnabé | Caderneta da Bola | Cristóvão de Moura | Fora do Mundo | Gato Fedorento | País Relativo | Super Mário | Umbigo

Para depois da praia

Archives

julho 2003 agosto 2003 setembro 2003 outubro 2003 novembro 2003 dezembro 2003 janeiro 2004 fevereiro 2004 março 2004 abril 2004 maio 2004 junho 2004 julho 2004 agosto 2004 setembro 2004 outubro 2004 novembro 2004 dezembro 2004 janeiro 2005 fevereiro 2005 março 2005 abril 2005 maio 2005 junho 2005 julho 2005 agosto 2005 setembro 2005 outubro 2005 novembro 2005 dezembro 2005 janeiro 2006 fevereiro 2006 março 2006 abril 2006 maio 2006 junho 2006 julho 2006 setembro 2006 outubro 2006 novembro 2006 dezembro 2006 janeiro 2007 fevereiro 2007 maio 2007 janeiro 2017

[Powered by Blogger]